Quem? O sentido da Autogenia

Autogenia. Uma aproximação da questão: “quem é esta pessoa”

Autogenia  não é uma palavra corrente, na filosofia, na clínica e, pouco usada nas ciências,  daí ser prudente defini-la  para os propósitos deste texto.

A palavra grega “auto” traz o sentido daquilo que é próprio e, “genos”- também do grego – o de origem ou nascimento. De maneira simples, autogenia pode ser entendida como a qualidade daquilo originado por si mesmo, independente de força ou recurso externo a si.

E como essa palavra autogenia participa no mundo  da filosofia clínica?

Autogenia pode ser considerado como um retrato existencial desta pessoa à frente do clínico. Como ela se constituiu, se tornou o que é.  Ela se vincula a uma idéia de totalidade da pessoa, próxima de certa forma da noção de personalidade ou de caráter usado pelas psicologias e por algumas psicanálises. Na filosofia clínica ela deve ser resultado de um minucioso processo de construção, sempre vivo e reconstruído. Autogenia se aproxima de uma questão muito esquecida e fundamental da clínica: quem é essa pessoa que está aí? Questão filosófica vivida na clínica.  

Heidegger ao tomar como tema o quem, escreveu: “é cada vez um eu e não algo distinto” (Ser eTempo pg 333). “Cada vez um eu”, portanto, um “eu”, um alguém que muda a cada vez que é observado e simultaneamente “não algo distinto”, isto é, um algo ou alguém que não é diferente de si, que é o mesmo. Nessa tensão entre mudança (Heráclito) e permanência (Parmênides) estaria o lugar para alguma consideração da questão quem é essa pessoa, esse ser-aí, à frente .

Quem? “Cada vez um eu e não algo distinto”.

Mas o que é“eu”? É uma palavra que se refere a quem fala, designa a pessoa que enuncia. Mas não a descreve, não dá qualquer predicado dela.  Na gramática da língua, “eu” é um pronome, por definição, algo que vai em direção a um nome, mas não nomeia uma coisa. Pronome pessoal “eu” só indica a pessoa que fala, portanto, é (só?) um fenômeno de linguagem. “Eu” se funda, se re-inaugura em cada fala. Em cada uma, na sua, na minha, na dele. “Eu” existe através da fala da pessoa que a profere. E, algo – o “eu”- fala por intermédio da pessoa. Esse “algo-eu” que fala é alguémAlguém fala: um “eu”. Quem?

 No âmbito existencial o “eu”, na vivência de uma pessoa, é sempre presente para si.   E também um observador eterno de si, afinal  sou sempre eu que vejo, penso, percebo, sinto   “a mim”, “a mim mesmo”. Então há algo na base do “eu”. O “eu”, entretanto, não é uma coisa no mundo, um ente. E ao mesmo tempo há um fenômeno “eu” que existe para mim enquanto eu sou consciente de mim. Então “eu” serve para eu me referir a mim. O que é  alguém e não se refere a mim não é “eu”, é “outro”. Eu” é a palavra que  indica aquele q designa a si na fala.

Quando alguém usa “eu” já traz também pressuposto alguém diante de si, um tu ou um você.  E pressupõe também um “eu” desse interlocutor. Eu compreendo quando uma outra pessoa fala “eu”, eu sei  que ela se refere ao “eu” dela, o “eu” do “outro” que é ela, para mim. Isso, essa compreensão, é condição para a clínica. Ela e eu, cada um a partir de si, sabe que há um “eu” meu e um ”eu” dela. Curioso: sabe-se, mas é um saber de natureza frágil, meio por aproximação. Não há um saber certo, firme, fundado, nisto que é tão comum, corriqueiro, vivido por qualquer um. Um saber-sabido-desconhecido.

Quem? Essa pessoa que fala cria um mundo a partir de si. Cada “eu” pode ser definido razoavelmente  como um centro de experiências de mundos vividos por uma pessoa e, um centro de perspectivas de mundos seus a viver. O clínico – este “eu” que escuta – deixa este mundo do outro “eu” se estabelecer próximo a si. Talvez o lugar propriamente em que esse mundo do outro “eu” se estabelece é na interseção  entre estes dois “eus”. A clínica se dá entre.

A pessoa não é um conteúdo do mundo que cria, ela é a referência, a base, o ponto de apoio. Mesmo frágil.  Esse “eu” fala algo, aqui e agora para um outro “eu” aqui e agora, que escuta, cada qual numa posição insubstituível. A pessoa que traz o seu mundo é um limite desse seu mundo, não está dentro nem fora desse mundo. Não está dentro porque está aqui “fora” falando e não está fora porque fala de “dentro” de si, a partir de seu “eu”. Como um “eu – criador” está no limiar, entre o dentro e o fora [como notou  Wittgenstein]. No mundo existencial, não há  sujeito, nem objeto. Não há objetivação possível do sujeito.

Quem?  A pessoa não é somente esse “eu” que fala: ela se compõe de uma corporeidade. Ela também é um corpo. Ela existe também num âmbito material. E cada pessoa tem um corpo diferente da outra.  Se ela e só ela pode se identificar com o corpo que ela habita, então este corpo é seu, só seu: este corpo é o lugar do seu “eu”. Compõe o “eu”. E, alem disso, o meu corpo, desse outro que sou para ela, pode ser entendido por ela como “eu”.  Em outras palavras, do ponto de vista espacial, o corpo como critério de identidade do “eu” parece dar uma resposta mais firme. Ao menos para um universo cultural tomado predominantemente  por critérios materiais A pessoa parece poder ser identificada pelo seu corpo. E assim se faz socialmente. A sua identidade é atestada pelo reconhecimento do desenho de seus dedos. A convicção inquestionável da singularidade dos traços corporais está aqui pressuposta.

O corpo ainda responde a um outro critério importante de identidade da pessoa que é a possibilidade de ser reconhecível pelos outros. Este corpo que contém um “eu” pode ser percebido em dois momentos diferentes  e ser considerado ainda como a mesma pessoa. Há uma permanência, ainda que provisória da fisionomia da pessoa, por exemplo. A pessoa passa a ser reconhecida por aquele rosto ou por aquele corpo que trans-porta esse “eu”. O curioso é q muitas vezes, encontra-se  alguém que se reconhece não por seus traços físicos, mas pelo seu jeitão, por uma expressão, por um sorriso, pela voz, pelo seus modos de se movimentar, um modo de olhar. Pela voz.  Mas de qualquer forma o corpo como critério de identidade parece funcionar razoavelmente, para as necessidades das relações sociais.  Mas…

Quem é essa pessoa? “Cada vez um eu, não algo distinto”.

 O mesmo algo, aquilo que não é diferente, que parece repetir um conhecimento que já se teve. Nesse lugar incomum, difícil de perceber, que é a cada vez de um modo e que permanece com alguma propriedade comum, parecida. Daqui não se pode falar que é o mesmo – já que de cada vez é um “eu” – e que ao mesmo tempo mantém alguma coisa que lhe é própria, e pela qual pode ser reconhecida,  o corpo.

Quando eu me refiro ao “meu” corpo eu tenho uma referência de um mundo em que há outros corpos.  Foi na minha relação com outro corpo q eu pude constituir a idéia de um corpo meu. Este movimento de me constituir como um corpo diferente, me possibilita e me exige ver a mim quase como um terceiro, isto é, de “eu” através da percepção de um “outro”. Mas como sou “eu” que indico a mim mesmo esse “eu”, há um movimento reflexivo, quer dizer, há um desvio da minha direção inicial – indo em direção ao outro – que me faz voltar para trás, me faz recair em mim [esse “mim” é um pronome obliquo reflexivo da 1ª pessoa do singular- refere-se a “eu”, mas não é “eu”]. Há quase um olhar em terceira pessoa para o meu “eu”, mas um olhar que também não se realiza plenamente, ou pelo menos que me dá pouca possibilidade de alteridade (externalidade?) desse “eu”, que me permitisse perceber esse “eu” como a um estranho.   Mas isso não se realiza porque o “eu” permanece em meu corpo e me percebo como uma única pessoa. E sou eu que digo “eu”.

A reflexão do parágrafo anterior está no campo do pensamento clínico, tem sua referência  no âmbito existencial e não epistemológico.

Quem? A noção de pessoa se constitui a partir dos predicados que se atribui a ela.  Na cultura ocidental contemporânea os predicados mais aceitos são os de que uma pessoa é composta de um aspecto físico e outro espiritual ou psíquico. Quando se está frente ao corpo de alguém morto, por exemplo,  há algo da pessoa presente e algo ausente. A pessoa não está mais ali, só seu corpo. O corpo, uma coisa no mundo, mas ainda como memória do ausente.  A pessoa na sua inteireza material-psíquica tem como sua natureza, portanto, o  estar presente, ser presença. Mas isso não a predica, não fala nada dela.

Quando se busca a identidade da pessoa –  ela como idêntica a ela mesma – surge de novo a dificuldade. Cada pessoa é um “eu” distinto num corpo distinto. O que distingue um corpo de outro é sua aparência física, seu volume, suas formas que se conhecem a partir da percepção. Mas como distinguir as características psíquicas de uma pessoa?

Na clínica a pessoa se encontra numa situação em que fala e escuta  e é ouvida por outra pessoa que também fala. Nessa circunstância ela usa a língua e vários recursos de linguagem para expor para alguém, de algum modo presente, as suas experiências. Uma situação de interlocução que tem valor de instituição de acontecimento. Está em cena, através de um discurso, corpo e psique frente a corpo e psique, alma, carne e osso, ainda que mediada por aparelhos (plataforma, internet, celular) trazendo a sua experiência do mundo, sua perspectiva, q não pode ser substituída.

Quando eu digo “eu estou feliz” não é a mesma coisa do que se eu dissesse “a pessoa q está falando está contente”. Há um ponto de referência diferente: quando eu digo “eu” estou dando o ponto de referência, tem um certo peso existencial,  no outro caso eu sou descrito como uma 3ª pessoa, quase não é uma pessoa.  Quem é essa pessoa? Como predicá-la? Como estabelecer suas propriedades, o que lhe é próprio?

Mas isso ainda está muito vago. O que é isso – o “eu” – que eu sei q existe porque vivo em mim e percebo viver no outro?  Eu sei que o que vivo em mim é diferente do que ele vive nele. Então há algo de próprio neste “eu” meu e no “eu” dele, do outro. Há uma diferença entre ele e eu.  Há um próprio a mim e um próprio a ele. Como se produz isso que é próprio a cada um? Como se deram essas Autogenias?

O recurso chamado EP

A Filosofia Clinica busca enfrentar esse desafio através de um artifício próprio, de um elemento simbólico, chamado de “estrutura de pensamento” – “EP”. Ela tem uma natureza operatória. A grosso modo ela pode ser vista como um modelo, um “artifício de montagem”, que facilita formar um quadro para o clínico dos modos constitutivos dessa pessoa, de forma explicitamente aproximada, com alguma estabilidade. O sentido é de um quem  utilitário e não tem nada a ver com um quem ontológico (que estabeleceria o ser dessa pessoa) .

Ao criar uma certa permanência artificial, a EP possibilita ao clínico um certo afastamento da experiencia imediata da escuta vivida na interseção com o partilhante. Dá-lhe a oportunidade de pensar, comparar momentos distintos, observar seus movimentos, fazer relações, formar hipóteses para procedimentos, planejar ações clínicas. Mesmo quando não está na presença física do “outro”, do partilhante, pode ainda pensar e refletir, respeitando seu próprio ritmo de pensamento, numa espécie de “re-escuta”, observando aspectos que talvez lhe escapariam sem isso. Além disso, permite-lhe, também, criar a possibilidade de um certo afastamento dos efeitos das suas próprias idiossincrasias, elaborar os seus preconceitos – específicos  desta relação ou não.  

Nessa estabilidade artificial impregnada na EP está uma série de apropriações de sentido produzidas através da escuta realizada pelo clínico das falas faladas do partilhante. Ela é um modo que possibilita um afastamento da memória  do vivido, numa tentativa de mantê-la  “presente” em seus sentidos. Isso não é pouco quando se trata de se aproximar do que é próprio a essa outra pessoa.

Quem? Talvez não seja conveniente pensar a EP como uma “representação da pessoa”. Representação  tem sentidos bastante vinculados a certas tradições filosóficas, não sendo recomendado, aqui, utilizá-la para evitar más interpretações. Será melhor caracterizar a EP de modo menos preciso, mais aberto e próximo de seu próprio sentido, como sendo “o jeito da pessoa”, ou “o modo como a pessoa está existencialmente no ambiente” .

O conhecimento de uma EP será sempre “trabalho realizado”, síntese organizada de observações feitas pelo clinico, a partir de sua relação com essa pessoa que vem partilhar as suas vivências. Como assinala Lúcio Packter,  ela só poderá ser determinada “após o exercício existencial da pessoa” [packter; caderno B pg 8] e deve ser tomada “como um preconceito e não como um a priori”. Não é um saber que venha constituído por uma razão transcendental ou metafísica. É um registro, em línguagem própria, do processo autogênico da pessoa. O quem em outra língua.

Um resumo do processo metodológico de formação da EP mostraria que o partilhante narra sua história, atualiza suas vivencias, enquanto o clínico busca, pela escuta, apreende-las, fazendo  uma coleta do que ouve a partir de categorias,  aprimorando essa colheita propondo “divisões” temporais na história narrada e buscando especificar, discriminar o que  lhe permanece obscuro, fazendo processos de “enraizamento”. Com esse material atualiza, “monta”, constrói, “preenche”,”encarna” a EP dessa pessoa. Das múltiplas vivencias narradas, de tudo o que ouve, busca recolher seus sentidos e traduz, canaliza, traz para dutos pertinentes, para colocá-lo em modos que facilitem a absorção  pela EP.

A EP só estará constituída quando já estiver estabelecida como uma totalidade. E, como qualquer totalidade, a EP é composta de elementos – os “tópicos” – que se relacionam e se articulam mutuamente. Cada EP será um arranjo singular de pesos e importâncias desses tópicos inter-relacionados e de suas possibilidades. Mas só será EP quando for uma totalidade constituída, ainda que transitória.

Sempre tomada como totalidade, uma EP tem momentos estruturais que podem ser muito diferentes entre si. São relações ou arranjos tópicos (autogenias) diferentes que, às vezes, podem até dar a impressão de se tratar de outra estrutura. Mas é isso que caracteriza essa própria EP: essas diferenças são apenas a expressão da variedade de seus modos próprios de existir, e que, precisamente,  a definem e a distinguem.

A um tempo a EP poderá ser tomada como uma totalidade unitária, como conjunto e,  de outro como uma série de totalidades momentâneas, circunstanciadas. Em outros termos, a EP pode ser tomada sincronicamente: o tópico Autogenia, procura dar conta disto. E pode ser vista diacronicamente e, então será a vez da Autogenia como submodo. Como tópico há uma espécie de “congelamento do tempo” enquanto como submodo é “posta no tempo”. Portanto, na dependência da perspectiva ou do momento de quem observa, a EP pode ser tomada como uma unidade a ser investigada em suas relações constitutivas  ou também como uma unidade a ser investigada em seus movimentos e suas relações com o mundo, com os outros.

 A EP é este modo muito próprio de exercício que contribui para a possibilidade de responder  temporariamente, quem é esta pessoa. Autogenia, são dois modos de descrever como se produz esse quem.  E através do tópico Matemática Simbólica possibilitar modos de mudanças dessa pessoa. Esse quem se tornar um quem adequado a si. Por seus critérios.

Há todo um modo próprio de  prática clínica  a partir da Autogenia. Aqui é pressuposto sempre não perder o sentido da própria idéia de Autogenia desenvolvida acima, e as reflexões sobre o “eu” e ainda a natureza da EP. Isso não foi feito por acaso. Em outras palavras, manter presente a idéia de que o que se está fazendo é co-laborar com o modo singular desta pessoa se mover, gerar a si própria, tornar-se o que está sendo, o que quer vir-a-ser. Esse movimento envolvendo seu ter-sido, seu vir-a-ser, sua presença.

A matemática simbólica

A EP  não é uma forma que o clínico possa  perceber por seus recursos perceptivos ou sensoriais,  e também não tem uma essência que seja possível  apreender por meio do entendimento. A sua natureza seria mais próxima do campo dos símbolos. Eis porque Matemática Sinbólica. Na descrição disponível,   “o conjunto simbólico que tem por função ir desfazendo a linguagem verbal…e [que] gradativamente associa e substitui o atendimento verbal por outro que utiliza equações e conceitos” [pg 9 do Caderno de Mat Simbólica].

Pelas dificuldades do autor, talvez isto fique melhor expresso dizendo que a Matemática Simbólica é um outro modo de exercer a Filosofia Clínica, tomando por base a Autogenia já realizada de uma EP, reduzindo a ênfase da linguagem verbal, aumentando a importancia de outros recursos simbólicos. Vale dizer, tomar a pessoa como um todo e, a partir desta perspectiva, acompanhar suas relações existenciais com os outros, com as coisas, com as suas circunstancias.  

 Este modo de clinicar permite pensar a EP de alguém como um modo mais qualificado de “eu” – porque ela é passível de predicações existenciais. Não se predica a pessoa, mas esta espécie de símbolo dela, com elementos (predicados) existenciais.  Observar a EP de alguém é acompanhar um modo  que tem uma boa dose de  verossimilhança com as suas – da pessoa –  próprias vivências  existenciais, sem contudo confundi-las – a pessoa e sua EP.   A EP tem seu movimento, é informada e constituída pelo que a pessoa  experimenta, mas não é ela, não se funde com ela. É apenas  um artifício, um símbolo generalizante dela.  Esta abordagem é um modo clínico possível na Filosofia Clínica, que nasce e se realiza precisamente a partir das possibilidades abertas pelas características do tópico Matemática Simbólica. E será avaliada, caso a caso, pelo clínico, a oportunidade de seu uso. Ela  pode ser uma via para trazer bons resultados, frente aos Assuntos trazidos pelo partilhante.

Esse alguém que vem à clínica tem a sua constituição, sua composição existencial própria, que faz ele ser  como  ele é. A composição dos tópicos na sua EP, como eles se interligam entre si, e quais são e quais não são importantes define sua Autogenia [como tópico]: aquilo é próprio a si e a origem dessa sua propriedade.  A EP busca trazer o que é o mais próprio dessa pessoa,  em uma dimensão diferente, virtual, em que se pode compreender as origens dessa composição existencial que é só sua, diferenciando ou aproximando de outros momentos estruturais de sua vida.  A EP dessa pessoa anos atrás pode ter tido uma configuração quase irreconhecível, frente ao que apresenta hoje. ´

Num exercício de imaginação seria possível notar como as circunstâncias vividas nesse período alteraram sua EP, sua Autogenia, compuseram suas muitas configurações autogênicas. Alguns tópicos perderam a importância relativa que tinham e deram espaço para a proeminência  de outros, de novas relações, variações, surgindo arranjos, inter-relações muito diferentes. Mas suas configurações sempre são próprias, sempre são suas, como modos de se relacionar com os assuntos que tratou e cuidou nesse período, o jeito que se relacionou  com o tempo, os lugares existenciais em que habitou, as coisas, as pessoas com que conviveu. E sempre foi ela quem gerou isso que ela foi sendo. Suas diversas autogenias, nestes anos. Com algum grau de independência de sua vontade, de sua consciência, de suas intenções. 

A pessoa deixa de ser propriamente ela mesma quando age de modo diverso daquilo que parece lhe ser próprio? Mas este modo que parece impróprio, inautêntico, não é propriamente aquilo mesmo que lhe é próprio? Há estado de inautenticidade, do ponto de vista estritamente existencial? Este é um aspecto que pede muita discussão. Não é, entretanto, o tema deste texto. Fica a provocação.

Um certo modo de exercício

Um exercício imaginário que se poderia fazer seria observar como a  EP de alguém  se relacionou com os infindáveis contextos em que a pessoa  esteve envolvida. Como foi que se comportou, se movimentou? Talvez tenha havido momentos de intenso constrangimento, em que a sua sobrevivência física ou de algum de seus próximos foi quase que a sua única preocupação. E outras em que numas férias naquela praia, caminhando plena de um vazio aconchegante  reencontra inesperadamente aquela que foi e virá novamente a ser sua grande companheira de trocas existenciais.

Nessas 2 circunstancias tão contrastantes como foi sua relação com sua consciência, com seus impulsos? Deixou sua EP, por si só procurar seu caminho ou havia intenção, vontade nisso? Confiou em seus recursos desconhecidos, não racionais, inconscientes?   E o clínico que a acompanhava, com o que podia contar?

A Autogenia oferece  um modo característico e diferente de  prática clínica. Para não perder  o seu sentido é importante o leitor ter em mente  as reflexões sobre o “eu”e , a natureza da EP, desenvolvidas anteriormente. Isso não foi feito por acaso. Em outras palavras, fique sempre conectado com a idéia que o que se está fazendo é tentar descrever um modo clínico que não deixa de lado a questão: quem é essa pessoa, autogenicamente. Como o clínico pode co-laborar com o modo próprio dessa pessoa se mover, fazer a si, tornar-se.

Este é um campo com poucas referências. Sem certezas. Com o que se pode contar talvez seja esse movimento que envolve seu ter-sido, seu vir-a-ser, sua presença. E será por isso que a atenção para os contextos vividos pela pessoa são tão importantes.  Perceber qual é o momento vivido, quais suas bases categoriais, quais são seus vizinhos, que papel exercem em sua vida. Hstoricidade, bases categoriais.

Esta pessoa talvez tenha se dado bem em algumas circunstancias  “ao se jogar” ao que lhe fazia sentido, mesmo com ampla resistência das pessoas com as quais convivia. Havia só umas poucas que apoiavam seu movimento.  Foi muito expressiva sua experiência de se lançar ao desconhecido, sua vida se modificou, passou a viver uma ampliação de horizontes com que nunca sonhara.

Para o clínico essa pode ser a tarefa. Pesquisar como ela fez em outros momentos de sua vida e quais elementos foi possível perceber no processo de historicidade que trouxe esses elementos. Às vezes  é  possível retomar algum momento, conversar um pouco, rememorar, desdobrar aspectos ainda pouco claros, trazer recursos para fortalecer seus vínculos com novos vizinhos, buscar composições com elementos que estejam no horizonte de possíveis. Reparar como foi para ela as experiências passadas, perceber se ela coloca mais atenção nos ganhos  possíveis ou nas possibilidades de fracasso.  Ao olhar para trás a pessoa vê os bons momentos ou o que não quer mais viver. Reparar o que lhe importa nessa experiência, o que lhe impulsiona, qual o peso de seu desejo, de sua intenção. Talvez aqui ela não esteja mais “solta”. Sua EP já não estará condicionada. Ao  ter uma intenção, já não tem uma espécie de pré-controle do futuro?

Ao imaginar  ir em direção a um ganho autogênico,  não é incomum  a pessoa já sentir falta de  pessoas, coisas, hábitos,  por antecipação.  E aqui, também, quando ela começa a pesar perdas e ganhos, já volta a uma predominância de referências estabilizadas, fazendo uma espécie de contabilidade existencial. Muito razoável, no mundo estabelecido, porém, talvez contraproducente no universo das Autogenias com movimento verticais. Esse é um  movimento característico de autogenia horizontal.

A  pessoa em movimento vertical ao conseguir atingir certos estágios  autogênicos [na Filosofia Clínica esses “estágios” são chamados de “patamares”, para evitar a idéia de sequencia]  e  passar a viver num ambiente bem diferente daquele que vivia,  pode  ser que  sofra pela falta da vizinhança com a qual tinha grande familiaridade. O surgimento de novos vizinhos, novos hábitos, novos lugares com que ainda não tem familiaridade pode ser temporariamente difícil.  Nesses movimentos alguns elementos de sua base original podem se refazer no novo ambiente, mas isso nem sempre é assim.  Pode se formar  uma nova turma, uma nova família, mas, pode ser que isso não aconteça  e a pessoa continue fixada no momento  existencial anterior.

Para poder lidar com isso o clínico ao acompanhar os movimentos da pessoa deverá estar especialmente atento à importância que vinha sendo dada às suas novas vizinhanças. Este é um modo em que é possível estar próximo das novas circunstancias vividas e poder perceber como as coisas estão andando, com quem ela está se relacionando, de que modo e assim por diante. Algumas vezes a pessoa ao mudar de patamar autogênico, mantém relações com seu ambiente anterior, porém, não é raro que a maneira como essa relação passa a se dar, se modifica. Se antes havia uma identificação de papéis existenciais, por exemplo, é possível que isto desapareça, mas que a relação de amizade, por conta de outros atributos da relação – como a memória de emoções vividas – se refaça. 

Certamente haverá muita incompreensão de parte a parte quando buscar argumentar ou decidir algo já a partir de seus novos modos de ver, e se defrontar com aquele ambiente, que continua a operar nos moldes anteriores. Querer permanecer obedecendo aos mesmos critérios e obter aquilo que só está disponível em outro ambiente que tem suas próprias regras é algo com pouca probabilidade de bons resultados. Não dá para mudar permanecendo onde se está, existencialmente.  Os livros de auto-ajuda, algumas linhas de terapia de base comportamental vendem essa ilusão:  seria possível mudar seu comportamento sem todo um movimento existencial complexo, que implica perdas, riscos etc. E é por isso que as mudanças provindas desses recursos são só temporárias. Quando chegam  as exigências dos novos lugares existenciais, não há força, critérios desenvolvidos, convicções amadurecidas, sentidos experimentados e conectados com os processos autogenicos .Não se alterou o modo de produzir a si próprio. 

Na Filosofia Clínica a aproximação feita pelo clínico aos mundos da pessoa é feito via EP, espécie de consolidação simbólica dos principais traços provindos da sua historicidade. E por ela que é possível acompanhar seus principais movimentos existenciais, seja de crescimento, de queda, de estagnação.  Ao trocar os vizinhos pode ser que esteja mudando seu patamar autogênico. Às vezes não é isso, mas é apenas  um movimento  pontual, de mudar certas contingências, certos hábitos, certas relações. Na clínica o caminhar do terapeuta deve ser sereno e atento.

A movimentação autogênica pode ser instável. A pessoa pode estar se sentindo bem, e no momento seguinte está no maior baixo astral, pode estar animadíssima ou entediada, deprimida ou motivada. O critério clínico será sempre a base categorial da pessoa, suas tonalidades afetivas predominantes e não  seus estados emocionais atuais. A avaliação deve ser pela escuta das circunstancias recentes vividas, vinculadas com sua EP, e não seus “estados”.

Nos pocessos clínicos exercidos via Matemática Simbólica, no ambiente autogênico da pessoa, a atenção do clinico deve estar também nos critérios usados pela pessoa. Não é raro a pessoa  chegar  numa determinada consulta, durante o processo,  com referencias, valores e opiniões muito diferentes de seu hábito. Isso pode ser observado comparando o que ela está vivendo com seus novos vizinhos. Estes são valores, referencias desse mundo q ela passou a freqüentar ou é parte de um mundo criado por ela. E o clínico deve reparar também se há uma certa estabilidade nessas novas referências  Quando a pessoa está em mudança pode ocorrer que  seus parâmetros mudem só temporariamente. É observando os vizinhos q é possível verificar se a pessoa está em movimento de criação de “novos mundos” (ascendente, de riscos, vertical) ou de estabilidade (tranquilidade, segurança, horizontal). Se for um momento de criação os vizinhos atuais provavelmente não conversam com os vizinhos anteriores, enquanto q se o movimento for de sossego as referencias dos vizinhos tendem a permanecer as mesmas. Em certos momentos criativos o rompimento com padrões anteriores pode ser muito forte a ponto da pessoa eliminar de sua vida certos elementos que até então eram os mais importantes,  determinantes: um namorado, a família, um emprego. Com fortes vínculos com seus novos vizinhos a pessoa pode não querer  mais voltar ao mundo em que vivia. É claro que há sempre risco. E é claro que deve ser observado o que é específico deste caso, singular a esta pessoa em atendimento. 

Ainda outros aspectos

Com o risco de se tornar monótono, o autor não pode deixar de ressaltar mais uma vez a  importância predominante da atenção para as bases categorias, para o mundo de onde a pessoa vem, para onde se dirige, onde está. Secundariamente, durante os momentos de reflexão e planejamento, o clínico pode fazer, para si,  certas aproximações, levantar  hipóteses, para observar as movimentações nas relações e pesos tópicos, que estejam ocorrendo.  Certas coisas podem estar se modificando ou deixando de ter validade (“não acredito mais que a virgindade é sinal de integridade pessoal”). Nunca é demais lembrar: aquilo q constitui a EP está vivo, em conversação permanente, com as coisas do mundo, as pessoas, consigo etc.

Ao filósofo clínico compete acompanhar esses movimentos existenciais, conversar sobre as novas vizinhanças,  sempre garantindo proximidade com a pessoa. Caminhar com ela onde e como ela estiver. Respeitar seus modos de expressão, de ódio, de amor, de indiferença. Certos modos da pessoa podem estar muito distantes daqueles já vistos pelo clínico, porém, fazem parte de seu ofício procurar compreender  os modos diversos, diferentes de viver e de se expressar que a  pessoa experimenta.  Se o clínico não tem referências em suas experiências pessoais pode explorar um pouco a historicidade da pessoa para ir se aproximando desses mundos de referências.

 Como diferenciar quando se deve interromper uma clínica que está se fazendo por esses movimentos  autogênicos e buscar uma intervenção tópica? Talvez quando o clínico começar a perceber que os movimentos da EP nos seus mundos circundantes, nos contextos de convivências, começam a não fluir como de hábito. São indicações que surgem nos seus relatos, nas suas expressões corporais, faciais, em gestos incomuns, o surgimento de fatores existenciais novos. O modo de lidar com isso pode ser retomar vínculos com momentos da historicidade, procurar indicações de intervenções clínicas já feitas e provocar situações que pelas reações possam dar alguma indicação do que está ocorrendo.

Uma maneira que pode ser útil, em alguns casos, é atentar para os modos como essa pessoa trabalha a si própria. Como é sua autogenia, até aqui?  Quando algo novo surge na sua vida, como ela age? Se for um problema de difícil solução, ela se desespera ou age no modo “Rita Lee” (“tire isso da cabeça, põe o resto no lugar..”). Há casos em q a pessoa permite que sua EP como um todo, dê um jeito de se reorganizar. O modo de clínica via Autogenia, através da Matemática Simbólica, abre espaço para eventual legitimidade de “conhecimentos-desconhecidos”, de base não racionalista, apoiados em saberes intuitivos. E isso não implica irresponsabilidade, antes, reconhece os limites do conhecimento no campo humano.  Este modo de trabalhar, entretanto, é para algumas pessoas, alguns modos de organização estrutural.

Com uma  EP com bom funcionamento nas relações tópicas – sem grandes conflitos e choques  – essa própria configuração inclina a EP para lugares  existenciais adequados. Uma EP assim pode se encontrar, circunstancialmente isolada em um ambiente desconhecido, mas tende a encontrar rapidamente modos de ajustes e formas de comunicação com os vizinhos que vão se apresentando. Não há como a priori saber se um novo elemento vai permanecer e se incorporar à sua vida ou se é um elemento apenas de passagem. 

Num momento de grandes mudanças, sempre se diz que há riscos e oportunidades, ameaças e possibilidade de ganhos e reconhecimento. Uma EP com boa fluidez,  pode assimilar uma série de recursos que não se dão a observar, a perceber, na vida corrente. Estando livre das principais contingências existenciais, pode aproveitar modos de apreensão que podem lhe facilitar decisões de vida, impensáveis em seu modo cotidiano habitual.

Não é raro nestes momentos em que a pessoa tem que tomar alguma decisão importante, que ela crie uma porção de limites imaginários e barreiras psíquicas que se tornam insuperáveis.  Fazendo isso abre mão de possibilidades que, talvez,  a sua força estrutural poderia lhe trazer.  Esse caminho de soltar-se à sua força “estrutural”, deixar que “sua EP” (esse modo de fazer-se a si, do tornar-se- si-próprio, que levou toda a vida construindo) faça o papel que já é dela. Como se observa em certas pessoas que parecem portadora de uma força excepcional nesses momentos, ou ainda aquelas pessoas das quais se diz “puxa, como ela é auto confiante …como é que consegue fazer isso, nessas circunstancias!”. Mas ao clínico resta a questão de como proceder, como saber se a “EP”  desta pessoa não vai encaminhá-la  para um caminho perigoso? Aqui se volta ao começo e ao sentido deste trabalho. Quem é esta pessoa? O que é próprio a ela? Como ela produz e se torna o que é?

 Uma pessoa “solta”, auto-confiante, possivelmente (mas, não obrigatoriamente) tem sua organização estrutural para direcioná-la, algo como o “submodo Zéca Pagodinho”: “deixa a vida me levar, vida, leva eu…” E isso pode não ser  uma “loucura” mas, algo sensato. Afinal,  esses  caminhos já podem estar como que  previamente estabelecidos, pela fluência com que a pessoa se relaciona com suas  vizinhanças conhecidas ou próximas.

Vizinho é um nome que se usa nestes procedimentos de clínica autogênica para os chamados  fatores  de similitude,  que são elementos que podem interferir, reparar, encaminhar para as coisas e lugares, próximos, familiares. Vivências anteriores podem se propagar e conversar, se relacionar com vivências atuais, surgentes, sem que a pessoa se dê conta. O curioso é que isso é quase uma circunstancia comum, ordinária da vida, um recurso do ser humano, que é desprezado, deslegitimado pelo modo de conhecimento predominante. Na clínica quando é possível um direcionamento com esta base, é dos melhores destinos existenciais possíveis à pessoa.

Uma caso inventado de procedimento baseado na autogenia

Dá pra imaginar q Hanna deixou sua EP vagar livremente, a ponto de lhe trazer uma perspectiva absolutamente diferente daquelas que suas vizinhanças habituais lhe trariam.  Se não for assim, como compreender o surgimento dessa nova perspectiva de seu olhar, tão distante dos critérios, das referências culturais, epistemológicas, sociais, axiológicas de seu ambiente intelectual e existencial, predominante naquela Nova York, de então.

Mas como isso foi possível?  Tudo indicava um desdobramento completamente diferente. No seu mundo circundante este modo de enxergar as coisas era algo simplesmente inconcebível, inaceitável.  Mas algo lhe passara na mente e ela teve a sorte da proximidade de Malcolm, seu filósofo clínico. Mesmo este, acostumado ao flutuar dos movimentos da EP de Hanna, ficou muito espantado. Percebeu que se tratava de uma poderosa intuição que lhe visitara. Uma forte transversalidade, na sua linguagem da Matemática Simbólica. Não era um movimento existencial vertical /ascendente, nem horizontal/ estabilizado.

Mas uma coisa é reconhecer o fenômeno, na clínica e outra é como lidar, acompanhar e ajudar sua partilhante a lidar com ele.   Ela sabia que havia alguma coisa naquela situação que fazia um sentido completamente diferente do habitual para ela. Como é que ela pôde passar a ver naquele homem que admitia com a maior naturalidade, sem qualquer culpa ou constrangimento, ter sido o agente das maiores atrocidades frente a um numero enorme de pessoas? Como ver um homem atrás disso? Como prestar atenção e ponderar suas “razões”? Razões?

Neste texto não importa a questão propriamente, mas como foi possível a Hanna lidar com ela e como Malcolm procedeu como clínico.  Isto é só um exemplo, inventado.

 Ali havia um fenômeno que ela vislumbrou e que a sua vizinhança atual não lhe dava permissão nem de considerar. Malcolm lembrou-se do relato que ela lhe havia feito, muito tempo atrás, de sua experiência de sair da casa de seus pais, com menos de 20 anos para seguir uma intuição poderosa, de estudar filosofia, nos confins da Alemanha, com um jovem professor que vinha impressionando o mundo intelectual por suas teses revolucionárias, na fenomenologia, vinculando existência e ontologia.

Aquelas circunstâncias, vividas quase 50 anos antes, mudaram por completo o sentido de sua vida. E de tal forma que direcionou praticamente todos os aspectos de sua existência. Esse modo de confiar e seguir as intuições que lhe visitavam foi seu modo pela vida afora, nos momentos das grandes decisões. Nela, uma exímia intelectual.  É claro que isso aconteceu, com intensidade menor, com menores repercussões, mas, sempre com resultados favoráveis.

Desta vez, entretanto, a dimensão era incomensurável: a sua própria identidade estava ameaçada; tinha o risco de perder o trabalho na universidade – que adorava – seu prestígio na imprensa e na intelectualidade, seu reconhecimento público, social, seus amigos etc. Mas talvez fosse mais uma vez uma oportunidade de ampliar os sentidos de sua vida própria, de si mesma. De des-mesmificar o seu si próprio. Bem no cerne de sua Autogenia, de suas relações tópicas, do peso de cada uma neste re-arranjo.

É claro que essas reflexões foram feitas por Malcolm. Que pouco a pouco foi pesquisando modos de apoiar os passos de Hanna na direção que ela vinha traçando.  E não deu outra: com o apoio aos movimentos com vistas a reforçar seus vínculos com os novos vizinhos que se apresentavam, ajudou-a a criar um bom afastamento das vizinhanças que lhe pareciam perniciosas e dificultantes para o desdobrar dos desafios que a nova configuração exigiria dela. Não é preciso dizer, leitor, como, depois da situação passar, Hanna, consigo mesma, com Mary, e com outros poucos, pôde viver uma ampliação de seu ambiente existencial inimaginável, a princípio, para uma pessoa de sua idade e já tão consolidada.

Ainda algumas considerações

Como compreender que uma EP pode oferecer para a pessoa uma maneira de observação sobre si, tão diferente? É quase certo que por raciocínios e relações habituais a pessoa não chegaria a tantas possibilidades. Os caminhos podem ocorrer por transversalidades, mas também podem ser traçados pela pessoa  por horizontalidades ou  verticalidades. Um modo é construir novas vizinhanças.  Os elementos horizontais são os que estão na mesma base existencial, na mesma “realidade”, no mesmo campo.  Quando a pessoa quer sair dessa “realidade” é uma indicação de movimento com vetor para verticalidade.

O elemento que mais dificulta qualquer movimento autogênico é  a intenção e controle. Se a pessoa quer mudar mas quer garantia, certeza etc, tende a não mudar. Esse é o grande freio para o movimento autogênico, vale dizer, para criar condições para q o próprio se engendre de uma nova maneira para si.

Há muitos aspectos da vida que são incompreensíveis para a base categorial em que se vive. Uma das mais constantes é expressa pela idéia de “coincidência”, como se a “incidência” de algo comum não pudesse ter sido produzida, gerada com alguma relação com alguma outra coisa. Não é preciso entrar no mundo racional de causa-efeito, para poder observar certas relações – de natureza ainda não referenciada e admitida como corrente – que relacionam elementos que incidem juntos.

Em todo o ambiente da Autogenia, da aproximação da origem e modificações daquilo que é próprio a alguém, do modo como se pode ter certos vislumbres de quem é essa pessoa  será sempre imprescindível a historicidade da pessoa, os exames das categorias e a formulação da  EP. Sem isso não há Filosofia Clínica. O âmbito aberto pela Autogenia traz possibilidades e recursos importantes para o desenvolvimento da clínica. Mas há que se ir com prudência e serenidade, porque sendo campo de pesquisa e envolvendo muito de perto destinos humanos, a possibilidade de interpretações esquisitas é muito grande. Não é raro observar colegas – aderindo ou rechaçando –  que entendem o trafegar neste campo delicado de conhecimento-desconhecido, em que se dá boa parte de nossa experiência humana, como justificação de  compreensões esotéricas, religiosas ou delirantes. Nada mais longe do que se propõe como Autogenia.  Leitor, faça o seu percurso. A caminhada, só ela, já vale a pena.

Afinal, permanece a questão:  quem é esta pessoa?  

2 textos: “Desconstrução” e “Filosofia Clínica: Terapia como espaço criativo”

                                                    Tatiana Borges Carvalho*

      Desconstrução                              

Primeiramente gostaria de agradecer a todos por dispenderem um pouco de seu tempo nesta leitura. Na realidade gosto de pensar que estamos juntos, em um gostoso bate papo, em que ideias fluem e experiências são trocadas.

Irei compartilhar um pouco mais de minhas vivências como Filósofa Clínica no acolhimento de partilhantes. Em meus textos, busco me distanciar um pouco de terminologias acadêmicas ou nomenclaturas da Filosofia Clínica e assim me aproximar de outros universos e realidades.

Diversos são os motivos pelos quais uma pessoa busca pela terapia, mas hoje gostaria de falar um pouco sobre os aspectos negativos das convenções sociais e como elas podem afetar nosso desenvolvimento.

Nascemos e a partir deste momento nos tornamos parte da sociedade. Somos educados por nossos pais, familiares, escola, etc. Somos fragmentos de valores e crenças que não partiram de nossas próprias escolhas.  Para algumas pessoas está tudo certo! Não há incômodos, inquietações ou buscas e elas devem ser respeitadas.  Porém para outras é completamente diferente. Essas pessoas sentem-se incomodadas e decididas a mudar algo, mas nem sempre sabem por onde começar,gerando uma grande crise existencial.

Durante o caminhar terapêutico, após termos realizados todos os procedimentos necessários, sempre com muito amor e ética, o(a) partilhante vai ganhando confiança em si mesmo(a). Aprende a se auto acolher, cuidar de si e ter domínio sobre sua vida, sem ser afetado(a) diretamente pelo meio social. Desenvolve formas de lidar em situações mais complexas com seus próprios modos.  As convenções sociais e imposições são descontruídas para que novas construções sejam erguidas.

Irei compartilhar duas experiências clínicas para refletirmos juntos.

Maria (nome fictício) – 30 anos

Criada em uma família tradicional católica, em que sempre foi dito que ela nunca poderia discordar dos pais. Qualquer manifestação de pensamento pessoal ou questionamento eram motivos para apanhar ou ficar de castigo. O pensar e questionar não faziam parte de sua educação, somente obedecer.  Ela cresceu, casou e teve uma filha. Porém a criança é extremamente questionadora, envolta a tecnologias etc. Maria vem para a clínica com certo desespero sobre como ter uma relação mais amorosa e compreensiva com sua filha. No caso dela, após profunda análise, foi totalmente necessária a desconstrução dos antigos valores e crenças. A primeira desconstrução foi mostrar que ela poderia falar sobre seus pais sem ser julgada ou repreendida (neste momento, a partilhante inclusive diminuía o tom de voz, sempre que iria contar sobre seus pais, como se eles pudessem ouvi-la). Também foi importante descontruir a ideia de que falar sobre os pais na terapia não significava falta de amor ou falta de respeito.

Valquíria (nome fictício) – 18 anos

Criada em uma família mais liberal, com pensamentos livres, sem convenções sociais. A família tinha seus próprios modos e pensamentos (filha de um artista plástico e uma filósofa). Valquíria podia escolher a cor de seus cabelos, colocar piercings, ter tatuagens, ou seja, sua estética não seguia os padrões convencionais. Seus pais sempre diziam: “Seja sempre você mesma, não mude para agradar alguém ou para se enquadrar socialmente”. 

Viviam muito bem financeiramente, porém por motivos de doença, houve uma grande mudança e Valquíria se viu diante de outra realidade. Bem, agora Valquíria estaria diante de umas das decisões mais difíceis de sua vida. Ela busca por um emprego e o encontra, porém no momento da entrevista é imposta a seguinte condição: Valquíria gostamos muito do seu desempenho no processo seletivo, porém para que possamos te contratar você terá que mudar a cor de seus cabelos e retirar os piercings. Quanto as tatuagens, como ficarão cobertas não há problemas.

Ela retorna para sua casa extremamente triste, sentindo-se violentada… parecia que estava sem ar, precisava falar com alguém… em um momento de desespero comenta sobre o acontecido e como estava se sentindo com uma conhecida e recebe a seguinte resposta: Mas Valquíria, é somente um cabelo e um piercing, não é nada demais!!!!!!! Neste momento um sentimento de solidão profunda invade o ser de Valquíria. Ela aceita as condições de trabalho por necessidade, mas é existencialmente destruída. Não era apenas uma cor de cabelo e um piercing. Era sua vida, sua existência, seus valores e crenças mais preciosos. Tudo isso era comunicado através de sua estética, não era apenas uma modinha, um embalo. Foram 10 anos de desconforto interior, perda de si e busca por seu lugar existencial. Na terapia ela pode trazer essas questões e se reencontrar de uma forma linda!

Penso que seja importante compartilhar vivências. Quanto podemos aprender… Através delas temos a oportunidade de refletirmos sobre nós mesmos, sobre os outros, sobre como podemos acolher e respeitar as singularidades.

Talvez uma das grandes belezas da vida seja sermos quem realmente desejamos SER!!! A Filosofia Clínica é umas das possibilidades que podem contribuir nesta desconstrução/construção de si.

   

FILOSOFIA CLÍNICA – Terapia como espaço criativo

Certamente muitos de nós já ouvimos comentários do tipo: Terapia para quê? Terapia é para quem tem algum problema. Em alguns casos as adjetivações são mais extremas…

Em Filosofia Clínica os rótulos são desconsiderados em respeito ao partilhante. Uma pessoa não deve ser definida por algum tipo de diagnóstico. O ser está para além de rótulos e diagnósticos.

Gostaria de convidá-los a refletirmos juntos sobre as colocações acima.

Permitam-me compartilhar de forma mais resumida duas belas partilhas ocorridas durante alguns encontros terapêuticos. São trechos resumidos de encontros com dois partilhantes: Denise e Pedro (nomes fictícios).

Denise

Denise foi casada por 20 anos e sempre teve sua própria renda (dividida entre a aposentadoria e, vez por outra, artesanato), quando casada, os custos fixos da casa ficavam por conta de seu companheiro. Após a separação ela se viu sozinha, tendo que retornar a residir em um local indesejado que trazia lembranças não muito positivas de sua infância, mas não havia escolha, por ora seria o melhor a ser feito. A partir deste momento, a relação com seus filhos, amigos e familiares sofrerá mudanças. Dentre todas as mudanças, a forma de lidar com uma em especial será determinante em suas novas escolhas, buscas, objetivos, modos de ser e lidar com situações. Agora ela contava apenas com sua aposentadoria, precisava ter outra fonte de renda e assim ter mais tranquilidade. Neste período de inversão a partilhante é deslocada de seu atual lugar existencial e alguns pensamentos e sentimentos vem à tona como: “será que eu ainda amo ele? Se eu estivesse com ele não estaria passando por isso! Todos os nossos amigos comentam, até plano de saúde eu tinha!” Ela é tomada por um sentimento de incapacidade total. Como estamos juntas nessa caminhada há um longo tempo e temos muitos princípios de verdade que contribuem positivamente na terapia e, com base na historicidade desta partilhante, senti que possivelmente ela não estava arrependida de ter se separado ou que ainda amava o ex companheiro, mas que se sentia dependente financeiramente dele e a partir de agora teria que encarar este novo momento. Fomos dialogando, caminhando e o melhor para ela acontece: Denise passa a entender e sente que estava com medo de encarar a sua própria existência (nova), existir por ela e para ela, com seus modos, olhares, entendimentos, valores…. Busquei em sua história a lembrança do crochê, de como ela dizia ser algo prazeroso e tranquilizador. Ela dizia que a cada ponto esquecia dos problemas, não sentia o tempo passar… a lembrança se tornou viva e então surge a possibilidade do crochê como a renda extra que tanto buscava! Trouxe este trecho da historicidade desta partilhante para pensarmos juntos sobre como a terapia pode ser um lugar de possibilidades criativas!!!! Ela está feliz, realizada, segura, em paz consigo e nas relações.

Nem sempre a busca pela terapia terá um assunto imediato, algum tipo de problema psíquico ou psicológico. Alguns buscam a terapia para partilhar suas ideias ou ter ideias, criações, alegrias, tristezas, conquistas ou apenas para bater um bom papo. A terapia é um lugar em que cada pessoa pode se expressar sem ser julgada. Na metodologia proposta pela Filosofia Clínica aprendemos a suspender os juízos diante de nossos partilhantes. A escuta deverá ser pautada pelo respeito à singularidade de cada ser, acolhimento amoroso e ético. Este processo de troca entre o filósofo clínico e partilhante pode ser profundamente construtivo para ambos. Importante lembrar que as formas que buscamos para auxiliar nesta construção sempre é baseada na historicidade. A forma que a clínica será conduzida dependerá desta singularidade. Assim, foi identificado em Denise que utilizar a produção do crochê para venda seria importante não só pelo aspecto material, mas também subjetivo e existencial.

Pedro

Pedro era um   jovem que sonhava em ser um grande artista, mas que se via obrigado a trabalhar de forma convencional por motivos familiares. À medida que os encontros foram acontecendo ele teve uma lembrança de quando era jovem e havia ganho um concurso de desenho. A terapia foi extremamente importante na reconstrução de seus processos criativos e consequentemente existenciais. A cada partilha finalizada ele se sentia inspirado em escrever mais e mais… e o desejo de viver como artista foi tomando conta de seu ser ao ponto de começar a criar planos para que esse sonho fosse realizado.

Caros leitores, através das partilhas acima observamos que a terapia pode ser um lugar de transformação interior e possibilidade criativa. Faz-se necessário educarmos nossos pensamentos, desconstruirmos certos conceitos sociais que impeçam ou reduzam as possibilidades de conhecer a si mesmo e sermos quem desejamos ser!

A Filosofia Clínica está aberta a todos que desejam passar por esta bela vivência interior!!!

                                                                                               Tatiana Borges Carvalho

                          

Poesia e Atenção

   Poesia e atenção são fenômenos coextensivos. É basicamente disso que trata o livro de Lucy Alford ( Forms of Poetic Attention – Columbia University Press), e a partir do qual tentarei uma aproximação entre poesia e clínica; mais propriamente, entre poesia e a escuta em clínica.

   Uma clínica que se pretende não violenta, que possibilite a abertura do campo de linguagem e de relação com o mínimo de violência, resistindo ao englobamento e metabolização significativa do discurso do outro, é a clínica da escuta intransitiva. Uma escuta amplamente aberta, concentrada na atenção antes do surgimento dos objetos da atenção. Uma escuta por meio da qual as palavras não são objetificadas e concretizadas a partir do discurso, mas sim uma espécie de escuta intencional, na qual nos situamos junto ao dizer do outro sem o englobamento do dito, possibilitando a manutenção da abertura do dizer inaugural sempre a cada vez mais uma vez. O singular é o diferente diferenciando-se no tempo finito de ser. Nunca o alcançamos. Falamos com o singular sempre em uma relação de distância abissal. A clínica é sempre a clínica diante do abismo que nos separa do outro. O outro é o abismo insondável.

   A poesia se refere a uma certa forma de atenção, em sentido essencial. Não apenas como condição para apreender ou imaginar o mundo por meio de objetos intencionais; poemas lidam com a produção, o treino e a prática da atenção. A poesia, em sua forma particular de atenção, produz presentificação e, em seu ritmo, pode produzir e invocar a imagem, a sensação, a memória, mantendo viva a presença, performando aquilo que descreve, oferecendo-nos uma oposição a uma apropriação de mundo orientada por conceitos.

   O poema pode modificar o estado de espírito dos leitores, produzir uma impressão de tempo em suspenso, fornecendo uma abertura por meio da qual o que está ausente e remoto se torna presente; uma espécie de presentificação poética que é também um acontecimento da verdade: desvelamento do Ser. Desvelamento do Ser refere-se a uma situação que permite que as coisas sejam experimentadas de uma forma absoluta, “nelas e por elas mesmas”. Buscar uma forma de atenção intransitiva é também evitar qualquer atitude mais forçosa e ativa, o que levaria o Ser de volta à soleira que ele precisa atravessar a fim de se mostrar, impedindo a imaginação de emergir. Podemos retomar aqui a diferenciação entre as formas de cuidado de Heidegger: cuidado próprio, no qual sustentamos, em seu peso e medida específicos, o campo que se abre a partir da relação com o outro, não englobando-o significativamente, e cuidado impróprio, quando invadimos e norteamos os caminhos que são sempre os caminhos do outro, os caminhos da diferença. A existência é intransferível e contra isso não podemos ir de encontro sem que ao mesmo tempo tal intransferibilidade não se anuncie com mais força e nitidez.  

   A produção de imagens na consciência humana é normalmente filtrada por conceitos e padrões discursivos enraizados a partir da tradição. É essa operação que reduz nossa imaginação à significados discursivos e produção de sentidos. Segundo a autora, a linguagem poética (em especial em sua forma prosódica) “previne esse nível e função elevados da consciência humana emergir, diminuindo o nível de tensão da consciência (Husserl). Contra o pano de fundo da evolução, seriam “regressivos”, propiciando a presentificação em uma dimensão ontológica da imaginação em vez de ocorrer na dimensão do sentido”. A diferença entre sentido e imaginação pode ser a origem e a razão para a impressão geral de que poemas têm um impacto mais intenso e emocional (são mais próximos da nossa percepção e do nosso corpo) do que textos escritos e recitados em prosa.

   A atenção não é apenas uma entre as múltiplas funções e condições que constituem a base da poesia; antes é, na verdade, aquela dimensão central da consciência humana que a poesia, devido à sua estrutura específica, é capaz de desafiar em um nível particular de complexidade e é, assim, capaz de desenvolver e expandir. Nesse sentido, poesia tanto pressupõe quanto contribui para a formação de uma capacidade de atenção mais complexa e potente.

   Nesse sentido, o desafio que as formas poéticas impõem às nossas formas de atenção   podem contribuir para uma espécie de refinamento do exercício da escuta do outro. Na medida em que essas formas nos desafiam a permanecer na fenomenalidade própria do fenômeno, habitando, no limite, o que se deixa desvelar no tempo próprio do desvelamento, podem contribuir para uma maior resistência ao englobamento discursivo e consequente produção de sentidos do mesmo no outro. A linguagem poética pode contribuir para que o clínico deixe o outro ser o outro. A escuta em uma clínica não-pastoral é a escuta que tenta se manter, no limite, em escuta poética. 

Escuta, diálogo e cuidado na praxis de Paulo Freire

A presente colaboração teórica terá como referência principal o terceiro capítulo de Pedagogia da autonomia, um dos últimos textos deste autor, publicado especificamente em finais da década de 1990.

          É precisamente nesta obra que Freire expõe sua compreensão sobre a escuta, o diálogo e o cuidado como inerentes à prática pedagógica libertadora. Sua afirmação acentua que a escuta é uma exigência.

         Faz-se necessário considerar que há um pressuposto antropológico fundamental primigênio e fundante da epistemologia freireana, perpassando toda a sua prática pedagógica: os seres humanos somos seres inacabados; ou seja, não somos, mas estamos sendo. Trata-se, portanto, de uma característica ontológica. Vivemos e existimos em processualidade, em busca de ser, que o autor nomeia como SER–mais. Esta condição humana se dá mediante a construção da cultura, a criação e a transformação daquilo que chamamos natureza, pela atividade laborativa ou trabalho; fazendo uso da expressão verbal, a fala, a palavra e diversas outras linguagens ou semioses.

      Toda a teoria freireana se volta para a afirmação da dialogicidade e da horizontalidade no processo intersubjetivo do conhecimento. De modo que não deve haver separação entre conhecer, ensinar e aprender. Quem ensina aprende e quem aprende também ensina, reciprocamente. Aqui, podemos fazer a substituição do binômio educador–educando, por filósofo/filósofa clínica–partilhante. Partindo dessa situação chamada situação gnosiológica, como momento de conhecimento, é que o autor explicita a necessidade do diálogo, do cuidado e da escuta. Sendo importante não esquecer que toda terapia consiste num processo eminentemente dialógico. O termo terapia, inclusive, tem sua origem num verbo grego que significa cuidar (terapeuw). O exercício da clínica é o exercício do cuidado para com as pessoas. Mas, um cuidado recíproco, entre terapeuta e partilhante; uma vez que Paulo Freire reafirma o conhecimento como processo que se dá na intersubjetividade. Porque a terapia também é um momento de conhecimento. E ninguém conhece sozinho, mas dialogicamente, com outros. Não há um eu penso, eu conheço, desligados do nós conhecemos, do nós pensamos. Assim como também é um processo educativo, pois filósofo/a e partilhante compartilham  ideias, significados, perspectivas e visões de mundo.

        É importante distinguir que o diálogo não é conversa nem bate-papo, mas o encontro entre pessoas que se respeitam ao pronunciar seus mundos, mediante a horizontalidade da comunicação. E não pode acontecer numa relação antagônica. Não se trata de igualdade niveladora, mas de cuidado na comunicação, pois a comunicação e a inteligibilidade se dão simultaneamente. A relação entre pensamento-linguagem-contexto não pode ser rompida. Vale  lembrar o que a Filosofia Clínica chama princípios de verdade. E aqui surge outro componente importantíssimo nesta relação: o silêncio. Escuta, diálogo, cuidado e silêncio integram todo o momento deste encontro. Tais categorias possuem uma natureza ética. Numa referência direta a isto Freire afirma que “no processo da fala e da escuta a disciplina do silêncio, a ser assumida pelos sujeitos que falam e escutam, é condição “sine qua” da comunicação dialógica… É preciso que quem tem algo a dizer saiba, sem sombra de dúvida, não ser o único ou a única a ter o que dizer; nem o que tem a dizer é uma verdade acabada e alvissareira (…) Ao contrário, o espaço do educador democrático, que aprende a falar escutando, é cortado pelo silêncio intermitente de quem, falando, cala para escutar a quem, silencioso, e não silenciado, fala. A importância do silêncio no espaço da comunicação é fundamental. De um lado, me proporciona que, ao escutar, como sujeito e não como objeto, a fala comunicante de alguém procure entrar no movimento interno do seu pensamento, virando linguagem; de outro, torna possível a quem fala, realmente comprometidocom comunicar e não com fazer puros comunicados; escutar a indagação, a dúvida, a criação de quem escutou. Fora disso fenece a comunicação. Escutar é obviamente algo que vai mais além da possibilidade auditiva de cada um. Escutar, no sentido aqui discutido, significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro…”

        Aceitar e respeitar a diferença é, deste modo, atitude sem a qual a escuta não pode acontecer. Portanto, escutar, respeitar, fazer silêncio, respeitar a palavra e os silêncios, estão dialeticamente relacionados e integram o cuidado terapêutico-filosófico.

Clínica não pastoral

Tudo o que sei acerca do método é que, quando não estou trabalhando penso as vezes que sei algo, mas quando estou trabalhando está bem claro que não sei nada.”      John Cage

   A ideia de uma clínica não pastoral se aproxima da ideia de uma espécie de estrutura do cuidado que se dá de modo próprio (Heidegger), ou seja: ao invés de ser uma clínica conteudista, que salta para o interior da literalidade e significância da linguagem e indica, guia ou sugere (matematização da existência) os modos de ser do outro, ela se retrai, se inclina e se sustenta, no limite da linguagem, abrindo um espaço possível para a abertura de campos de sentido próprios (e não a partir dos campos de sentido pretensamente positivos da tradição) e a possibilidade da conquista de uma significatividade própria, ou seja,  liberando o outro para ser outro. É uma clínica da diferença, tomando por empréstimo o termo Deleuziano, onde a ideia de identidade é substituída pela de movimento incessante que engendra as formas a partir de si mesma. O outro é um abismo insondável, e só pode ser acessado formalmente, e qualquer tentativa de teorização a partir de estruturas teóricas apriorísticas se constitui na mais velada forma de pastoreio.

   Se a escuta é, pretensamente, a principal atividade do terapeuta, como se daria a escuta em uma clínica não pastoral? Colocar-se à escuta própria da linguagem é experimentá-la para além dos hábitos da fala (o que não significa a rejeição desses hábitos) e expor-se ao domínio do estranho; tal estranheza não se dá sem a sensação por vezes claustrofóbica de angústia e solidão, pois nosso pensamento calculador e nossa linguagem habitual — imediatamente compreensível — tornam-se impotentes e falhos diante de acontecimentos inusitados que desequilibram nossos pequenos hábitos e costumes. Cabe ao clínico “não pastoral” inclinar-se e sustentar-se diante desse abismo, abrigado no espaço de intimidade (proximidade) da relação.

   Uma clínica que quer estar a serviço do que existe precisa se organizar em torno de uma categoria livre, não sistemática, inassimilável, que não possa ser apropriada por nenhuma lógica operativa ou funcional. Às vezes é a categoria de natalidade, ou de começo. Às vezes é a categoria de liberdade, ou de emancipação. Às vezes é a categoria de diferença, ou de alteridade, ou de acontecimento. Às vezes é a categoria de abertura, ou de catástrofe.  Em qualquer caso, uma categoria que tem a ver com o não-saber, com o não-poder, com o não-querer, e que não se pode definir nem tornar operativo, mas sim que, de algum modo, só se pode cantar, musicar, ritmar. Há algo no que fazemos e no que nos acontece que não sabemos muito bem o que é, mas que é algo sobre o que temos vontade de falar, e de continuar falando, de cantar, e de continuar cantando. A vida viva, aberta à sua própria abertura, por vezes de modo sincopado, por vezes de modo elevado, por vezes de modo caótico…

   A clínica não pastoral seria a clínica enquanto experiência, e não experimento. Se a lógica do experimento produz acordo, consenso ou homogeneidade, a da experiência produz diferença, heterogeneidade e pluralidade. Se o experimento é preditível e previsível, a experiência carrega em si uma dimensão de incerteza que não pode ser reduzida. Posto que não se pode antecipar o resultado, a experiência não é o caminho até um objetivo previsto, mas sim uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem “pré-ver” nem “pré-dizer. O sujeito da experiência tem algo de um ser que atravessa e é atravessado pela existência, que simplesmente “ex-iste” de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente. Tanto nas línguas germânicas como nas latinas, a palavra experiência contém inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo. A clínica é travessia e perigo, assim como a existência.

   Se chamamos de existência a essa vida própria, contingente e finita, a essa vida que não está determinada por nenhuma essência nem por nenhum destino, a essa vida que não tem nenhuma razão nem nenhum fundamento fora dela mesma, a essa vida cujo sentido se vai construindo e destruindo no viver mesmo, podemos pensar que tudo o que faz impossível a experiência faz também impossível a existência. E tudo o que faz impossível uma clínica não pastoral faz também impossível a clínica enquanto experiência, tornando-a experimento conduzido por um ou uma terapeuta, impossibilitando, assim, que o outro seja atravessado por experiências (por meio da linguagem própria, do silenciamento do mundo? Por meio da substituição das muitas palavras do mundo pelas poucas e simples palavras do ser? Por meio da relação de intimidade entre dois indigentes?). Em um mundo pobre em experiências, como bem nos alertou Walter Benjamin, é incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre. Uma clínica não pastoral se apresenta como uma clínica que luta com ardor, diante e ciente da dificuldade imanente a tal clinicar, para que experiências se tornem possíveis em meio ao que denominamos terapia, essa experiência tornada experimento pela tradição.

“E qual é o propósito de escrever música? Um, claro, é o de não lidar com propósitos, mas com sons. Ou a resposta pode ser dada sob a forma de um paradoxo: um despropósito proposital ou uma brincadeira sem propósito. Essa brincadeira, contudo, é uma afirmação da vida – não uma tentativa de dar ordem ao caos, nem de tentar melhorar a criação, mas simplesmente um modo de despertar para a própria vida que vivemos, que é tão boa se tiramos de seu caminho o nosso intelecto e o nosso desejo, deixando-a agir a seu modo.”        John Cage

Sobre a formação em filosofia clínica

Gláucia Tittanegro

Em se tratando de um curso de filosofia clínica, cabe começar a perceber quais são as próprias
representações de mundo (Tópico 1), como também a representação de mundo das/os
autoras/es indicadas/os. Com a representação de mundo podemos perceber outros tópicos:
axiologia, buscas, estruturação de raciocínio, princípios de verdade, modos e formas de
conhecimento etc.

O cuidado com a linguagem que procuramos ter busca mais do que simplesmente prestar atenção à etimologia dos termos: tentamos exercitar uma aproximação com a fragilidade e com a dificuldade de tratar de algo tão delicado que é a clínica existencial.E isso parece que só é possível quando estamos dispostos a transitar pelo incerto e desconhecido.

Por sinal, antes de ser uma relação de conhecimento, é relação ética, ou seja, abertura para algo que não é “tematizável” ou assimilável. Sinto, às vezes, que as discussões ainda tendem a transcorrer no âmbito do que pode ser tematizado e assimilado.

Para mim, discutir abstratamente as/os filósofas/os e suas ideias consiste em permanecer no espaço
temático da filosofia. Espaço este válido e legítimo como o de qualquer outra disciplina. Esse espaço do “tematizável”, seja por qual disciplina for, ainda é um espaço estranho ao fenômeno clínico, ainda é o espaço disciplinar de exercício do poder do conhecimento e, portanto, estranho à filosofia clínica.

A clínica filosófica, por ser experiência ética – simplesmente estarem relação com outrem – ou seja, abertura para uma qualquer singularidade, única e absoluta em si mesma, é um espaço de exercício de acolhimento e cuidado. Talvez, por isso mesmo se trate aqui de um outro tipo de potência: a potência de não encobrir o fenômeno com outras luzes, de fazer espaço, de dar um passo ao lado…

A voz do mistério a partir de Clarice Lispector e Martin Heidegger

Dentre as múltiplas vozes que habitam a clínica não pastoral, a voz silenciosa – a voz sem voz do mistério – figura como condição imanente à uma clínica que não se pretende desveladora do estranhamento que nos atravessa enquanto seres que existem. A clínica sem lacunas, debitaria do pensamento freudiano e do conceito de inconsciente – signatárias da relação de causa e efeito – busca explicitar e fundamentar o que não é passível de fundamentação. Existir ultrapassa qualquer conceito, como bem disse Clarice Lispector. Por outro lado, a linguagem é nossa morada, como citou Heidegger, e é com ela que nos havemos a todo instante.

Clarice, com sua escrita transbordante de poesia, e Heidegger, com sua reflexão filosófica, pensaram a linguagem na dimensão do estranhamento, fato provocador para que o homem possa experimentar a linguagem para além dos signos linguísticos desconectados da existência. A linguagem, a partir dessas duas compreensões, é um espaço de invenção, onde todas as potencialidades do indivíduo são despertadas para dizer o mundo e a vida na contingência das palavras. Ambos pensaram a linguagem fora dos padrões linguísticos e aproximaram, com isso, a filosofia da poesia, sem, no entanto, descaracterizar a linguagem de cada uma. A linguagem poética é pensada como o caminho que nos leva de volta para o sentido genuíno da existência, um sentido subjetivo que ultrapassa a trivialidade de nosso cotidiano.

Um acontecimento nunca cabe no que nós queremos dizer. Há uma dimensão do escrever e do dizer que não subsiste para provar, para demonstrar ou para esclarecer, mas para existir no limite da linguagem, no limite do que há verdadeiramente para dizer. Busca-se algo que escapa ao entendimento, o que não quer dizer que escapa ao ser singular.Os fatos, narrados por meio dos modos convencionais do pensamento linear e do modelo re-cognitivo, trazem a marca da ânsia das informações precisas, locupletadas por significações estandardizadas pela tradição. Os acontecimentos, por sua vez, se desenvolvem a partir do fundo vazio e da liberdade que faz vir à tona o caos criador das palavras.

Os mistérios que nos habitam em silêncio são acontecimentos transfiguradores que extrapolam os fatos reais em uma desorganização na ordem. E na cadência antimelódica dos acontecimentos silenciosos e velados de nossa existência, o mistério irrompe em fascínio e improviso, descosturando o há muito costurado, fraturando o há muito engessado, “desmundanizando” o há muito “mundanizado” .

Uma clínica não pastoral é uma clínica cuja estrutura do cuidado se dá de modo próprio, ou seja: ao invés de ser uma clínica conteudista, que salta para o interior da literalidade e significância da linguagem e indica, guia ou sugere os modos de ser do outro, ela se retrai, se inclina e se sustenta, no limite da linguagem, abrindo um espaço possível onde a possibilidade para a possibilidade da concretização seja conquistada por si mesma a partir da conquista do próprio. É uma clínica da diferença, tomando por empréstimo o termo Deleuziano, onde a ideia de identidade é substituída pelo movimento incessante que engendra as formas a partir de si mesma. O outro é um abismo insondável, e só pode ser acessado formalmente, e qualquer tentativa de teorização a partir de estruturas teóricas apriorísticas se constitui na mais velada forma de pastoreio.

Colocar-se à escuta própria da linguagem é experimentá-la para além dos hábitos da fala e expor-se ao domínio do estranho; tal estranheza não se dá sem a sensação por vezes claustrofóbica de angústia e solidão, pois nosso pensamento calculador e nossa linguagemhabitual — imediatamente compreensível — tornam-se impotentes e falhos diante de acontecimentos inusitados que desequilibram nossos pequenos hábitos e costumes. A linguagem poética experimentada nas obras de Clarice e pensada nas obras de Heidegger é a linguagem irreversivelmente estranha, pois ela não nos serve para prestarmos conta sobre nossa existência, não nos fornece nenhuma informação sobre os entes, não nos ajuda a resolver e nem dizer nada de importante para os negócios humanos, não causa nenhum efeito; não classifica nada, não nos diz o que é o bem e nem o que é o mal, escapando, assim, de toda justificação teórica ou moral. Desse modo, habita-se a linguagem e se tende,por excelência, a construir, edificar e a criar no sentido de poiesis. Nesse sentido, é a linguagem quem nos domina.

Experimentar a linguagem como linguagem é colocar-se no vazio e ser tocado pelo nada de si mesmo. Desse modo, escapa-se, mesmo que por instantes, dos falatórios que exprimem a compreensão mediana que tudo compreende sem nada compreender propriamente, fechando a possibilidade de um dizer, de um escrever, de um ler e de um escutar atento à voz da linguagem originária. Pensar em nada, ainda mais em tempos de pensamento acelerado, é uma conquista de compreensão existencial da linguagem.

Concluindo, a literatura de Clarice Lispector e a filosofia de Martin Heidegger assumem a exigência de penetrar na essência da linguagem mediante o apelo da própria linguagem, liberando a linguagem enquanto possibilidade para ascender ao impenetrável que se oculta na própria linguagem. E tomando o mistério como a mais alta expressão da verdade, abre-se caminho para uma clínica que respeite a abissal distância que nos separa do outro, esse ser que habita a linguagem e que por meio dos limites da mesma pode reconquistar-se a si mesmo. Cabe ao clínico “não pastoral” inclinar-se e sustentar-se diante desse abismo, mas sempre abrigado no espaço de intimidade da relação.

Referências

BEZERRA, Cícero. Clarice Lispector: quando Deus acontece. Rio de Janeiro: Via Verita, 2021.

HEIDEGGER, M. A caminho da linguagem. Tradução Márcia de Sá Cavalcante Schuback, Petrópolis: Vozes, 2003.

HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante Schuback, Petrópolis: Vozes, 1993. Parte I.

LISPECTOR, C. Um sopro de vida (pulsações). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves,Editora,1997.

LISPECTOR, C. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

NUNES, Benedito. Passagem para o poético; Filosofia e poesia em Martin Heidegger. S Paulo: Ática, 1992

Epistemologia: Paulo Freire e Gaston Bachelard

APROXIMAÇÕES EPISTEMOLÓGICAS:  PAULO FREIRE e GASTON BACHELARD

                                                                           Marcelo Bezerra Oliveira*

 

Paulo Freire (1921-1995) e Gaston Bachelard (1884-1962) são contemporâneos em termos históricos e em perspectivas teóricas, por pertencerem ao construtivismo dialético-fenomenológico. Ambos compartilharam a afirmação básica da historicidade do conhecimento. Este é o traço geral que os aproxima, em suas características múltiplas e diferenciadas. Nestas anotações consideraremos somente alguns capítulos dos volumes citados na bibliografia.

Paulo Freire elabora sua gnosiologia tomando como base o binômio natureza e cultura, estabelecendo a distinção fundamental entre ambas; compreendendo por natureza tudo aquilo que os seres humanos encontram no mundo e que não foi criado por eles; e por cultura tudo aquilo que é construído pelos sujeitos humanos, tomando como objeto de transformação a natureza, mediante o trabalho. Natureza, trabalho e cultura são conceitos básicos para a compreensão da epistemologia freireana. Aqui, por enquanto, não vamos adentrar na questão da historicidade do próprio conceito de natureza. Apenas destacaremos as teses da epistemologia freireana, com as referências que faz à epistemologia de Bachelard. Não se trata de estabelecer paralelismo entre ambos. Daremos destaque para duas obras de Freire: Pedagogia da tolerância e Pedagogia dos sonhos possíveis. De Bachelard – A poética do espaço e O novo espírito científico.

Para Paulo Freire o ser humano está sendo no mundo com outros; como ser inacabado, inconcluso e consciente de sua inconclusão; que se constitui pelas relações com outros e o mundo cultural que inventa ao fazer história. O ser humano não se naturaliza, mas se historifica. A historicidade já aproxima os autores, por afirmarem essa dinâmica dos seres humanos e dos saberes que constroem.

A construção do conhecimento, em Paulo Freire, acontece no confronto intersubjetivo. O conhecimento é construído coletiva, social e culturalmente. Não há um saber produzido exclusivamente pelo indivíduo. O conhecimento se dá na relação dialógica, na dialogicidade entre dois ou mais sujeitos. Por conseguinte, não há um “eu penso”, “eu conheço”, desligados do “nós conhecemos”, “nós pensamos”. Não é o “eu penso” que constitui o conhecimento, mas o “nós pensamos” é que estabelece o “eu penso”, “eu conheço”. A dialogicidade é constitutiva de sua ontologicidade, de sua condição como ser-no-mundo-com-outros. Certamente neste modo afirmativo da intersubjetividade Freire se diferencia de Bachelard, que ainda permanecia na perspectiva da teoria clássica tradicional do conhecimento concebido como relação entre sujeito-objeto, embora, evidentemente, tivesse consciência da construção coletiva do saber científico.

Aproximam-se em suas epistemologias por não desligarem a construção do saber científico da atividade filosófica. Bachelard se refere constantemente à filosofia como indispensável no processo de construção do conhecimento das ciências. Inclusive, relativamente à produção das artes.  A Filosofia e as ciências devem estar em aproximação. Em suas obras não há separação entre filosofia, poesia, literatura e psicanálise.  Portanto, ambos possibilitam uma reflexão epistemológica sobre as dimensões da cultura. Uma reflexão aberta à diversidade epistemológica. Isto merece ser destacado.

Segundo Paulo Freire, somente diante de uma realidade cultural cognoscível mediatizadora da relação entre as pessoas (educador-educando, filósofo clínico-partilhante), poderá se estabelecer dialogicamente o encontro e a busca compartilhada do conhecimento (ou dos saberes). E só em tal condição é possível a inteligibilidade e a compreensibilidade dessa realidade objetivada na comunicação. Sendo oportuno relembrar a complexidade do que denominamos realidade, que jamais pode ser definida nem compreendida exaustivamente, por abarcar tudo aquilo que está para além do imediato.

Há uma historicidade na construção do conhecimento. Desde então, aparecem ou podem reaparecer os diversos níveis de diversidade e profundidade de saberes; seja o saber popular, o científico, o ideológico ou de classe, de gênero, etnia, etc. Paulo Freire surge no contexto das teorias do conhecimento com esta originalidade que consiste na afirmação, sistematização e fundamentação histórico-filosófica do caráter essencialmente dialógico do conhecimento. Algo que pensadores de tendências filosóficas anteriores não o fizeram, senão enquanto simples acenos tangenciais. Como Martin Buber, com a dialética EU-TU, assim como outros pensadores das filosofias existenciais que destacavam o ser-com-outros-no-mundo, denominada “comunicação das consciências”. Tal expressão tem sido usada para designar, por oposição ao subjetivismo, a experiência imediata da consciência do outro; por exemplo, no olhar, na corporeidade. Paulo Freire afirma que o ser humano é um corpo consciente, e que a consciência não é uma região espacializada do ser humano.  Assim, Karl Jaspers nomeava esta relação usando o termo “Daseinskommunication”, ou seja, uma comunicação existencial em que o si busca apreender o outro como si. Quiseram expressar que “eu não tomo consciência daquilo que sou como ser isoladamente”. Eu me experimento na comunicação com outrem; que Freire chama “outreidade”. Tais elementos conceituais foram considerados pela epistemologia freireana, mas repensados na dialogicidade exercida pelos sujeitos no mundo cultural e histórico.

O intento de toda a obra freireana é pedagógico, mas a sua sustentação ou embasamento teórico é radicalmente de caráter filosófico. Ele a elaborou em sintonia com as epistemologias de Gaston Bachelard e de outros pensadores de sua contemporaneidade, a exemplo de alguns filósofos existencialistas, como Gabriel Marcel, Jean-Paul Sartre, Karl Jaspers, Martin Buber; psicanalistas como Erich Fromm, Frantz Fanon, acrescidos do suporte de outros clássicos da Filosofia, como Hegel, Karl Marx, Gramsci, Husserl; além de diversas referências pedagógicas de destaque no século XX, entre as quais Anton Makarenko e Anísio Teixeira. No entanto, sem aderir a nenhuma teoria ou ideologia que o caracterizasse como dependente. De modo que não se pode adjetivar a epistemologia fundante de sua teoria pedagógica com apenas um autor ou tendência filosófica exclusiva. O que se pode afirmar é que sua epistemologia se fundamenta no construtivismo dialético-fenomenológico, referenciado numa enorme diversidade de pensadores. Isto, entretanto, não significa ecletismo.

A filosofia de trabalho de Paulo Freire tem origem num elemento ético fundamental, muito mais que em teorias. O seu método cognitivo-pedagógico teve como objetivo essencial uma perspectiva filosófica que se empenhou em reafirmar e recuperar a palavra como direito humano, entre populações de trabalhadores analfabetos e silenciados. Sua pedagogia propôs a afirmação do ser humano como ser da palavra. Daí que encontramos, na fundamentação filosófica da sua obra principal, Pedagogia do Oprimido, um belíssimo texto-prefácio do professor Ernani Maria Fiori, intitulado “aprenda a dizer a sua palavra”. É desta raiz ética que desponta a sua epistemologia, fundada na dialogicidade e em pressupostos de filosofia da história.

A contribuição de Paulo Freire se orienta no sentido de possibilitar uma educação libertadora das condições opressivas. Por isto denominada pedagogia do oprimido, mediante a educação concebida como prática da liberdade. Lembrando que a categoria “oprimido” possui mais conotação ética do que mesmo sociológica; nomeando o explorado, excluído e silenciado pela cultura do latifúndio, que se caracteriza pela redução dos trabalhadores a uma condição de silenciados. A sua metodologia veio para restaurar a dignidade humana daqueles que, transformados em “quase-coisa”, não podem dizer a sua palavra. No sentido de ultrapassagem desta desgentificação. Afirmar e restaurar a condição humana desses excluídos como seres da palavra e da ação. A palavra e o diálogo são exclusivos da ontologicidade humana. Portanto, também numa condição de terapia existencial, tomando como exemplo a Filosofia Clínica; pois somente é possível a sua efetivação autêntica através do diálogo, através da palavra existenciada em condições de liberdade. Freire, inclusive, referiu-se a este processo educativo como um esforço de expulsão do opressor hospedado na consciência dos oprimidos. Pois os oprimidos se tornam hospedeiros dos opressores. Aliás, uma terapia verdadeiramente humanizadora não pode acontecer em situação antidialógica. Sem diálogo não há construção de pensamento, nem é possível restaurar ou refazer a existência. Por isto a epistemologia freireana poderá contribuir bastante no processo cognitivo-construtivo da Filosofia Clínica.

É mais precisamente na obra Extensão ou Comunicação? que Freire expõe a sua epistemologia, a sua teoria do conhecimento. E a inovação essencial desta gnosiologia consiste em superar a teoria tradicional que resumia o conhecimento à relação entre sujeito e objeto (S—–O). Para afirmar a precedência da intersubjetividade ou dialogicidade; porque nenhum sujeito conhece sozinho, mas com outros, mediatizados pelo mundo. Consciência e mundo coexistem simultaneamente; não há mundo sem consciência, nem consciência sem mundo. Disto vem outro princípio básico de sua teoria: a leitura do mundo precede a leitura das palavras. Não há “eu penso”, mas “nós pensamos”, no encontro dialógico mediatizado pelo mundo cultural dos sujeitos (S¹——–mundo——–S²).

No segundo capítulo deste volume o autor faz um verdadeiro redimensionamento da História das Filosofias, expondo sua crítica ao subjetivismo da teoria tradicional do conhecimento, desde os pré-socráticos até os pensadores existencialistas.

Freire, na sua teoria epistemológica, refere-se ao processo educativo que possibilita aos sujeitos envolvidos na ultrapassagem do senso comum, da consciência ingênua, da curiosidade ingênua, em direção à consciência crítica, à curiosidade epistemológica ou científica, pelo exercício dialógico do compartilhamento intersubjetivo dos saberes, objetivando a transformação de suas vidas, de sua realidade, rumo ao nível mais elevado do conhecimento reflexivo – a “práxis”. Esse termo resume o nível mais profundo da filosofia social, chamada desde Antônio Gramsci, filosofia da práxis.  Isto supõe a educação, o trabalho cultural de reflexão, na construção dialógica, que é problematizadora das condições objetivas desses sujeitos. Pela educação como prática da liberdade, como busca. Isto supõe o perguntar, duvidar, não apenas “facilitar”, como pretendem as teorias conteudistas, psicologizantes e comportamentistas.

Na relação intersubjetiva, pelo encontro dialógico, as pessoas efetuam a admiração e readmiração da sua realidade cultural. Neste processo, essencialmente dialógico-horizontal, em que nenhum sujeito deverá se sobrepor aos demais, a realidade objetivada (admirada) se presentifica à percepção dos sujeitos do conhecimento. Todos se encontram para conhecer, perguntar, investigar, partindo dos conteúdos de sua realidade vivencial. Em Filosofia Clínica (FC) isto poderá ser posto como integrante da historicidade do partilhante. Todos sabem e não sabem algo. Todos ensinam e aprendem algo. Não há saber nem ignorância absolutos. Ambos são relativizados. Esta condição oferece o ponto de partida da busca e construção dos saberes da existência humana.

  • Num primeiro momento os elementos do conhecimento/investigação surgem como algo de que apenas a pessoa se dá conta, como algo que é pouco percebido.
  • No segundo momento, acontece o adentramento mais profundo do objeto percebido ou admirado e destacado da realidade ou contexto maior (a totalidade). São objetos, fatos, temas, assuntos, sentimentos, situados num contexto mais amplo, que pode ser uma história do lugar, da pessoa… (historicidade).
  • No terceiro momento, os sujeitos dialogantes (educador/a-educando/a, filósofa/o clínica/o-partilhante), dirigindo perguntas relativas a esses conteúdos, penetram mais na razão de ser daquilo que está sendo conhecido – o “ontos” do objeto; e a sua razão de ser, o “logos”. Dá-se o começo da tomada de consciência.

Esse dar-se conta, passando ao momento do pensar, possibilitará uma opinião ou doxa. Acontece, assim, um mergulho na profundidade do “objeto” (coisa, fala, ideia, acontecimento…), estabelecendo-se relações. Assim vai tendo lugar a cognoscibilidade do que foi “mirado”, “ad-mirado” e “re-ad-mirado”. Pela re-ad-mira-ação abrir-se-á o caminho do conhecimento, como busca das suas razões de ser e/ou não-ser.

Nesse caminho de escuta, observação, silêncios, ad-mira-ação e re-ad-mira-ação da realidade acontece o momento de se fazer o que Freire nomeou com os termos codificação e decodificação da realidade vivenciada e/ou observada. Certamente, aqui, no âmbito da FC, pode-se fazer uma referência ao tópico Semiose, visto se tratar da codificação das diversas formas de expressão, linguagens, etc. A codificação se refere às várias representações de mundo trazidas pelos educandos/partilhantes. São as representações gráficas, pictóricas, fonéticas, artísticas, que expressam as vivências pessoais e culturais dos sujeitos em dialogicidade. Refletem a polissemia da linguagem. Que, todavia, não pode ser confundida com uma representação unívoca, do tipo publicidade.  À codificação segue-se a decodificação como leitura ou leituras e interpretações do que foi codificado. Trata-se de um dos momentos mais complexos da construção do conhecimento, para que haja o que Freire chama conscientização.

 Na verdade Freire fala em interconscientização, por ser recíproca, para ambos, no processo dialógico. Há um co-pensar, uma interconscientização de ambos, seja educador/a e educando/a; ou filósofo/a clínico/a-partilhante. Pois ninguém conscientiza ninguém; mas todos se conscientizam no processo de construção dos saberes. Há co-aprendizagem, co-pensamento e interconscientização. Num processo de dialogicidade e reciprocidade que se pode chamar transcognitividade.

Deste modo, acontece a tomada de consciência, num primeiro momento; que tenderá e poderá ser progressiva, em direção à “conscientização”. Entretanto, isto não é automaticamente. Pois a consciência é transitiva, dinâmica, mas poderá intransitivar-se. Poderá interromper o processo cognitivo, se submetida a situações de opressão, autoritarismo; enfim, quando a dialogicidade é rompida. Quando a comunicação se torna ausente e a relação passa a uma condição de verticalidade, ou seja: quando uma das partes envolvidas no processo se impõe autoritariamente provoca a interrupção da comunicabilidade e do compartilhamento; e o diálogo pode ser rompido. Isto atinge “os princípios de verdade” (PV). Quando se gera antagonismo entre as pessoas envolvidas, fraturando-se a horizontalidade dialógica, não haverá mais comunicabilidade. Porque foram atingidos negativamente os PV. Lembre-se: isto não se refere à diretividade ou momentos expositivos de conteúdos da aprendizagem, que devem acontecer. O que Freire refuta é o autoritarismo e o nivelamento entre as partes do processo. O professor não pode ser antagônico ao aluno, nem querer nivelar-se. São diferentes, mas não antagônicos. Também não se devem confundir. O mesmo vale para a relação filósofo clínico/partilhante. Sobre isto deve incidir uma reflexão sobre a eticidade desta condição para ambos.

Em situações de trabalho social, cultural ou político, na inexistência ou ruptura da dialogicidade, pode acontecer o extremo da intransitivação, pela fanatização da consciência. Freire se fundamenta teoricamente em Gabriel Marcel, ao nomear esta contradição. Havendo isto, desde então, as pessoas buscam soluções mágicas, lideranças autoritárias, etc. Acontece a perda da confiança dos próprios sujeitos envolvidos, a perda da amorosidade, a rejeição à mudança, por medo da liberdade. Este medo da mudança e da liberdade tende a gerar a crença em soluções imediatas, rápidas, tecnicistas e, inclusive, com apelo à violência, dando origem a situações que chegam ao ódio e à desesperança, naturalizando até a morte; como nas situações históricas de desenvolvimento de práticas que a Sociologia e a Psicanálise nomeiam como fascistas. Instalam-se o ódio ao diferente, o ódio à diversidade, a rigidez de princípios, o dogmatismo, incentivando o ódio de classe, como estamos constatando atualmente, no Brasil e em diversos países do mundo atual. Instala-se uma falsa consciência de que a história pode ser estacionada e negada em termos de processo.

À parte esta referência sociológica necessária, Freire sempre se refere aos dois momentos da cognitividade como sendo a curiosidade ingênua e a curiosidade epistemológica. O conhecimento gerado pela dialogicidade possibilita a saída da primeira rumo à segunda. Isto só acontece mediante uma orientação educativa. E a educação é sempre uma situação gnosiológica. Por conseguinte, a situação de busca que acontece na terapia filosófico-existencial, por exemplo, no contexto da FC, também se constitui como uma situação educativa e gnosiológica entre filósofo/a clínico/a e partilhante. Pois a terapia em geral possibilita outras perspectivas de conhecimento.

Decorrentes da complexidade do processo cognitivo brotam os chamados erros e obstáculos epistemológicos, compartilhados pelas terminologias de Paulo Freire e Gaston Bachelard, ambos pertencentes à concepção histórico-construtivista do conhecimento. Em duas obras de Freire há referências diretas a Bachelard: Pedagogia da tolerância e Pedagogia dos sonhos possíveis. Ambas tratam da leitura do mundo e da leitura das palavras, destacando as questões relativas aos erros e obstáculos impostos aos sujeitos no processo de aprendizagem e sistematização dos saberes. Aqui vale destacar as contribuições de Freire e Bachelard à crítica da interpretação positivista dos fatos e saberes. Para ambos não há dados fixos, fatos puros, ciência pura. Os dados são dados dando-se.  Bachelard se rebelou contra o que chamava “imortalidade dos fatos”; que o senso comum da ideologia neoliberal quer impor como o termo “domínio dos fatos”. Pois os fatos sempre são interpretados. Não há fatos soltos. Tudo está num contexto. O conhecimento sempre tem algo de interpretação. Fatos não são coisas, como afirma o positivismo sociológico.

Em Pedagogia da tolerância, especificamente no capítulo 3, em forma de diálogo, Freire reflete com o interlocutor (Patrick) sobre questões de etnociência e senso comum, partindo da pergunta: “há episteme no saber dos indígenas”? Freire responde afirmando que “em todo processo de compreensão do mundo há um processo de produção e compreensão do conhecimento. Em todo processo de produção do conhecimento, está implícita a possibilidade de comunicar o que foi compreendido, o que você faz não apenas com a linguagem oral, mas também com desenhos e com várias outras linguagens. (…) A minha convicção é de que a gente tem que partir mesmo da compreensão de como o humano com quem a gente trabalha compreende (…) a minha grande preocupação é com a ética: como é que eu respeito a cultura do outro. Mas respeitar a cultura do outro não significa manter o outro na ignorância sem necessidade; fazê-lo superar sua ignorância não significa ultrapassar os sistemas de interesses sociais e econômicos de sua cultura. É como se houvesse gente inteligente num outro planeta, noutro universo, e viesse aqui e dissesse a mim que eu devo pensar da forma absolutamente contrária àquilo que penso, pois lá já se pensa diferente. Não posso me submeter a uma coisa dessas.” E Freire repete que “o conceito de ignorância é um conceito relativo; pois, em primeiro lugar, ninguém é absolutamente ignorante. Ninguém. Você ignora coisas e sabe coisas. O ser humano fundou-se com base na curiosidade. Esta é a fonte fundamental do conhecimento. Mas a curiosidade também gera interesses e usa interesses. É preciso compreender como a compreensão do outro se dá e se na chamada cultura científica você tem um caminho que dá um resultado possivelmente mais exato que o outro caminho que está sendo usado. No mínimo você se obriga a mostrar que há. Eu sou pela defesa permanente da revelação, ao educando, das diferenças, que há diferenças, e que vale dizer que você não pode ficar numa perspectiva estreita e exclusivista: só como eu penso é verdade, mas pelo contrário, discutir as possibilidades das diferenças legítimas. E´ por isso que, nessa questão epistemológica da passagem do saber do senso comum para um saber científico, eu acho que há uma superação, e não uma ruptura. A curiosidade que empurra o conhecimento é a mesma, seja a do índio e a da gente; o que há é uma superação no encontro dos achados; quer dizer, pode ser que até, eticamente, a gente fique atrás, mas, do ponto de vista da compreensão da realidade e do mundo, a gente, rigorizando a busca do objeto, pode achá-lo com mais precisão, o que não significa que você invalide o achado do índio. Eu acho que há muita arrogância nossa, dos intelectuais, dos cientistas. Isso nos faz cair na arrogância, é autoritário e não democrático; e viola as qualidades ontológicas do ser humano”.

 O diálogo trata da pesquisa de um estudante que teve sua tese rejeitada por um professor que não admitia o saber indígena como episteme, pois dizia que só há episteme na ciência. E conclui o diálogo perguntando: “…mas o conhecimento do índio não tem esse rigor que você está dizendo, porque eles não sabem a escrita. Mas como posso dizer que não tem rigor, quando eles conversam todos os dias sobre os acontecimentos e estão se socializando? (…) Um conhecimento que faz tantos anos que vem sendo elaborado e socializado, porém não escrito, mas vivenciado. Como você pode dizer que não é um conhecimento que tem tanto rigor quanto o seu? (…) No fundo, quer dizer que, lamentavelmente, isso é uma tese de Bachelard, grande epistemologista francês, filósofo e poeta. Gaston diz claramente que a passagem de um nível para outro é radicalmente fundada na ontologia, acho que isto é superação. E, precisamente porque o nosso lado é o lado do poder, a superação se dá em favor de nós; se o lado do poder estivesse no dos índios, a superação seria deles; mas como eles não têm poder de mandar em nós, nós dizemos que superamos em favor de nós”.

Em outro texto, Pedagogia dos sonhos possíveis, especificamente no capítulo “alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra”, ainda discute a mesma temática, com ênfase nas categorias do “erro” e dos “obstáculos epistemológicos” no contexto da aprendizagem. Coloca em destaque a constatação das duas leituras: a leitura do mundo e a das palavras. Acrescenta que “os educandos relacionam a essa leitura anterior do mundo, se relacionam os signos e símbolos da interação local do estar-no-mundo, dessa presença no mundo que se vai construindo enquanto comunicação e historicidade”. Sua insistência principal se volta para o respeito que educadoras e educadores devem ter relativamente aos níveis de conhecimento que os educandos trazem ao ambiente educacional, e que necessariamente expressam sua identidade cultural e passam pelo corte de classe social.  “… educandos trazem uma linguagem, uma sintaxe, uma semântica; que os linguistas chamam competência linguística. Entretanto, em geral nas escolas há um desprezo burocrático por tudo isto que se deu antes das escolas, e que vai continuar se dando, apesar da escola. Como se a escola assumisse por decreto divino a tarefa de apagar da memória e do corpo consciente dos meninos essa linguagem, que é também sentimento, comportamento e percepção do mundo. Ou seja, desrespeita-se a dialética própria no reconhecimento e construção dos seus referenciais de tempo, espaço e, portanto, de sua situação histórica. A negação deste saber experiencial revela uma ideologia elitista e autoritária da escola. A escola é autoritária e elitista, entre outras razões, porque só aceita como válido o saber já montado, o saber pseudamente terminado. Aí há um erro científico, também um erro epistemológico. É que não há saber nenhum que esteja pronto e completo. O saber tem historicidade pelo fato de se construir durante a história e não antes da história nem fora dela. Então, o saber novo nasce da velhice de um saber que antes foi também…”

Não se trata de manter os educandos no nível de saber em que eles se acham. Pelo contrário. Mas é preciso evitar que educadores pensem numa progressão de conhecimento no sentido da hierarquização atual do conhecimento; como se o estabelecimento de uma norma culta para a escola fosse o único caminho para se chegar a uma norma mais culta, com critério ideológico. Passando a conotação de que na escola se ensina um saber puro cuja excelência deva ser defendida das impurezas da linguagem das classes trabalhadoras.

Freire propõe que educadores/as e educandos/as progridam reconhecendo outros conhecimentos, inclusive das classes populares, das minorias étnicas, etc. E declara: “lembremos Bachelard, que sugere verdadeira “pedagogia do erro”, na qual o erro deve ser revisto não como reflexo do espírito cansado, mas, na maioria das vezes, como um obstáculo epistemológico, um obstáculo ao ato de conhecer e um desafio da realidade ao seu enfrentamento …é o obstáculo ideológico ao não prosseguimento no reconhecimento ou na construção de outros conhecimentos… Seria preciso que a compreensão do erro em Bachelard fosse democratizada. O que quero dizer é o seguinte: que a grande maioria dos educadores passasse a entender o erro assim e passasse também a acrescentar à compreensão do erro, enquanto obstáculo epistemológico, a compreensão da força da ideologia, quase sempre na raiz do obstáculo epistemológico. E em lugar de óbice para o processo de conhecer, o erro passaria a constituir-se como um momento do processo. Quer dizer, um momento importante. Um momento fundamental do processo de conhecer é errar…  isto diminuiria o autoritarismo de educadores que fazem do erro um motivo de punição. O que a gente precisa fazer na prática pedagógica é mostrar que, se a curiosidade se equivoca ou erra, não deve, por isso, ser punida. Eliminar essa conotação punitiva.  Avaliar sim, mas considerando também aquilo que houve no tempo vivido pelos educandos, não apenas no tempo da escola, considerando que a escola raramente busca fazer a ligação do que ela aprende na escola com o que aprende no mundo. E considerar que não existe rigorosidade pura. Toda rigorosidade convive com o seu contrário; pois a ingenuidade é ponto de partida para a própria rigorosidade. Não despreze a ingenuidade, não ponha entre parênteses as emoções e sentimentos”.

Tais são alguns dos tópicos que podemos discutir com base nestes pensadores, em termos de epistemologias que contribuem para o aprofundamento do pensamento filosófico em geral e, especificamente, da Filosofia Clínica.

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BIBLIOGRAFIA:

BACHELARD, Gaston. Os Pensadores. S. Paulo; Abril Cultural, 2ª ed. 1984.

FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro; Paz e Terra, 2013.

___________. Pedagogia da Tolerância. Rio de Janeiro / São Paulo; Paz e Terra. 2016.

___________ Pedagogia dos Sonhos Possíveis. Rio de Janeiro / São Paulo; Paz e Terra, 2018

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*Autor do livro “Pressupostos epistemológicos da pedagogia freireana”, publicado como edição do autor, pela Type Digital Solutions, São Paulo, 2020.

legitimidade de uma terapia

Olhar de um filósofo clínico

Aqui se discutirá a legitimidade de uma clínica que trata das questões existenciais de uma pessoa.

A palavra “legitimidade” se forma a partir da junção de “legi”, que significa “lei”, com “timidade”, relativo a “timo”, que significa alma, espírito, sentido,  trazendo a idéia daquilo que impregna, que dá vida, dá sentido à lei,à norma, ao hábito, ao costume, a uma teoria. Um conjunto de saberes, como os levados a uma clínica,  será  “legítimo” quando for aceitável por uma comunidade, pressupondo, assim,  um certo “con-senso” – um sentido que se torna comum – de  opiniões. 

Esses sentidos comuns das opiniões vinculam-se na “terapia”, na área da “clínica existencial” a uma certa submissão à autoridade dos conhecimentos científicos. Os tratamentos, de modo geral, a partir do final do século 19, sempre pretenderam estar amparados numa teoria, que por sua vez estaria firmemente vinculada a certas idéias, que “lá no fundo”, “lá no fim” tinham uma espécie de impregnação na verdade.  A ética, o respeito pelo ser humano a ser cuidado, estariam resguardados pela certeza, proveniente da solidez dessa teoria,  que seria  em última instância, verdadeira.

Em síntese: a ética clínica estaria garantida por um conhecimento que é certo, sólido e verdadeiro.

Isso, afinal,  não é razoável? Como agir, como pensar com responsabilidade ética sem esse parâmetro, essa evidência, sem essa garantia dada pela idéia da verdade? É possível conseguir a certeza em algum conhecimento  como se tem com ela? 

Não se chegará a isso. Uma clínica existencial, quando se exerce no âmbito da ciência, promete percorrer o solo firme das evidências filosóficas, guiada por regras claras e distintas. Mas não é isso q acontece. Volta e  meia tropeça , dá com enigmas, mistérios: no lugar de  apoio em chão firme  encontra abismos, dúvidas, áreas  desconhecidas.  E muitas vezes a  idéia de uma natureza humana, incognoscível nos seus limites, é invocada para explicar ou justificar isso. Mas, leitor, repare que curioso:  o material da clínica não é exatamente essa natureza humana, surpreendente, pouco conhecida, e tão variada, que cada vez se apresenta de uma maneira? Como é que de saída isso não é levado em conta?

Durante  o século 20 o universo de certeza e verdade que sustentava a confiança no campo das ciências perdeu o seu predomínio, pouco a pouco. A pesquisa científica, conforme se  aprofundava, des-cobria a fragilidade de seus pressupostos e, simultaneamente,  sua relação de dependência constitutiva  com a linguagem – esta sim, apesar da fragilidade que a constitui, uma atividade propriamente humana.

No âmbito da física nuclear, em 1933,  Heisenberg (nota 1), por exemplo, comentava que  ao buscar descrever teoricamente  os fenômenos atômicos seria preciso ”fazer a distinção entre o fenômeno e o observador… mas, do lado do observador, somos forçados a usar a linguagem da física clássica, simplesmente por não termos outra linguagem com que expressar os resultados. Sabemos que os conceitos de linguagem são imprecisos, têm uma aplicação limitada, mas não dispomos de outra linguagem…” para, mais à frente, ser bem explícito : “aprendemos que essa linguagem é um meio de comunicação e orientação inadequado. Apesar disso, ela é o pressuposto de todas as ciências” (nota 2). Sublinhe-se e retenha-se o que escreveu um dos cientistas mais respeitado em todo o mundo: a linguagem com suas limitações é o pressuposto de todas as ciências.

Em outro âmbito, muito distinto, vê-se Lacan, ao tratar da cientificidade da psicanálise, escrever: “…nenhuma linguagem pode dizer o verdadeiro sobre o verdadeiro, uma vez que a verdade se funda pelo fato de que fala, e não dispõe de outro meio para fazê-lo”(nota 3). Não pode haver uma verdade fora da linguagem. Para ele o lugar da  verdade é o inconsciente e,  neste registro,  ele afirmará que o “inconsciente é estruturado como uma linguagem”. O psicanalista francês apenas transmuta as questões, mantendo-as no campo de uma pseudo-verdade ou, melhor ainda de uma “suposta-verdade”, sustentada pela força de repetição dessa genial ficção operatória que é a noção de inconsciente.

No campo da filosofia clínica Gustavo Bertoche destaca que o filósofo francês Gaston Bachelard revela “nossa inevitável insuficiência (do conhecimento, no campo das ciências); e,faz-nos ver que não existe um pensamento maduro em sua gênese”, lembrando que para uma idéia se aperfeiçoar “é preciso colocá-la em questão , expandi-la em uma problemática e, principalmente, abri-la ao debate , torná-la pública, desde o início”. Em outras palavras: trazê-la às linguagens possíveis. Generoso, Bertoche procura mostrar que a “consciência da incompletude essencial de nossas concepções é uma consciência libertadora” (nota 4).   

2. Ciência, Lógica e Linguagem 

Já na virada do século 19 para o 20, especialmente por conta das conquistas técnicas, a fé na ciência imperava. As pesquisas e os conhecimentos mais diversos buscavam se adaptar aos padrões científicos e  era através da lógica –  “a ciência do bem pensar” (nota 5) – que seria possível  reduzir o nível de confusão, de incerteza, de imprecisão  no campo do conhecimento, da pesquisa e da  prática científica. A linguagem e a lógica  tornavam-se  objetos cada vez mais importantes para as teorias científicas. 

Na Alemanha, no último quarto do século 19,  os trabalhos de Frege (nota 6) ligavam a matemática,  à lógica e à linguagem. As questões que desenvolveu germinaram de tal forma que ainda hoje é referência obrigatória no campo dos estudos da linguagem. Em 1872, pergunta: “A apreensão de uma verdade científica passa, normalmente, por vários estágios de certeza (em seguida pergunta) … como podemos assegurar-lhe (a uma proposição) finalmente uma sólida fundamentação?”. E responde, em seguida, “o método de prova mais seguro consiste, obviamente, em seguir estritamente a lógica, que abstraindo as características particulares das coisas, apóia-se exclusivamente nas leis sobre as quais  se baseia todo o conhecimento” (nota 7). O “mais seguro” é abstrair do caráter “particular das coisas”. O caminho: a lógica.

Só a lógica, livre das contingências, das indeterminações, dos contextos, da história, poderá ser o fundamento seguro para o conhecimento científico – ela (a lógica), por sua força de evidência, o legitima. A linguagem para Frege, entretanto,  “não é regida pelas leis lógicas” (nota 8) e “nas partes mais abstratas da ciência, torna-se cada vez mais inequívoca a falta de  um meio que permita, ao mesmo tempo, evitar incompreensões quanto ao pensamento de outrem, e também equívocos sobre o nosso próprio pensamento. Tanto um como o outro têm sua causa na imperfeição da linguagem, já que temos que usar sinais sensíveis para pensar.” (nota 9). A linguagem seria “imperfeita”, por sua ligação com a sensibilidade humana, o que o leva a concluir pela necessidade “…de um sistema de sinais carente de toda ambigüidade ,e cuja forma rigorosamente lógica não deixe escapar o conteúdo” (nota 10) . Escapar da “ambigüidade”, do “imperfeito”, da “ligação com a sensibilidade humana”.

Bertrand  Russell(nota 11) , leva essa questão de Frege para  o ambiente britânico e americano e a toma como objeto principal de seu trabalho. “A reestruturação da lógica levada a cabo por Russell é idêntica, em espírito à efetuada por Frege…tendo os 2 grandes lógicos chegado a resultados praticamente idênticos de modo independente” (nota 12). No desenvolvimento dessa co-laboração, entretanto, houve uma “crise” provocada pela descoberta do que ficou conhecido como o “paradoxo de Russell” (nota 13), que levou Frege a abandonar a crença na possibilidade de reduzir uma ciência (a aritmética) à lógica. Sua confiança no caminho lógico é abalada.

Para Russell, ao menos inicialmente,  o mundo dos sentidos parece se identificar com o mundo real: a “realidade” sendo aquilo que os sentidos captam. Ele notará, entretanto, que o que é dado pelos sentidos “é muito menor do que naturalmente muita gente supõe, e muito do que aparece como dado imediato, é  obtido através da inferência” (nota 14), sendo, portanto, conhecimento derivado. O conhecimento sensível está ligado obrigatoriamente com o conhecimento de um homem específico – o “lugar” dos sentidos. O seu desafio será o de estabelecer a possibilidade do “conhecimento singular”- de cada homem – se tornar partilhável com outros homens em busca de uma maior generalização desse conhecimento. Não é Platão, não é Descartes, não é Kant, não é Hegel e não é Locke, nem Hume. Isto seria possível através do que ele chama de “construções lógicas”. Nesse sentido, a lógica funcionaria, ela mesma,  como uma espécie de linguagem, compartilhável pelos homens singulares, que daria conta de representar ou dizer o real ou o mundo existente.

Ele não nega que as interpretações cotidianas das experiências perceptivas e as palavras de uso corrente, implicam teorias ou modos de ver em contexto. Mas o que ele busca e propõe será  excluir o elemento de interpretação presente na linguagem ordinária do dia a dia, ou mesmo das teorias,  e inventar uma linguagem artificial, com a mínima teoria possível, a mínima contaminação com o sensível, com o contingente. E, por  esse caminho  se poderia  chegar ao dado puro. E que deve haver um dado puro é (a juízo de  Russell) uma conseqüência  lógica irrefutável. Afinal de contas, no limite da pesquisa deve se chegar a um dado  e, um dado – por definição – é o que não é inferido, o que está aí. O dado pode não ser verdadeiro e pode não  dar a certeza que se quer. Ele funcionaria como a  memória, que sabe-se que falha, mas mesmo sabendo disso, ela é a base para muitas coisas em que se acredita e de conhecimentos que se desenvolve” (nota 15).  O “dado” fundamenta o conhecimento científico e nesse próprio ato desfaz a possibilidade de legitimidade – política, social –  dos saberes não “puros”, “não abstratos”, históricos, contextuais (nota 16) .  

Mas volte-se ao tempo de Frege para não deixar de notar que naquele último quarto do século 19, no mesmo mundo acadêmico freqüentado por ele estavam  Dilthey (nota 17), Brentano (nota 18) Freud (nota 19)  e  Husserl (nota 20).

A profundidade, complexidade e a extensão do pensamento  e do trabalho de Husserl talvez possa ser explicada, em parte, por esse ambiente. A influencia que a fenomenologia trouxe à filosofia do século 20 e, ao campo propriamente clínico existencial, foi imensa. Nas “Investigações Lógicas” (nota 21) diz  logo na primeira frase: “A necessidade de fazer começar a Lógica com reflexões sobre a linguagem foi frequentemente reconhecida do ponto de vista da técnica lógica” (nota 22). Lá se lerá que as discussões sobre a linguagem devem ser feitas como uma espécie de preparação filosófica indispensável para a “edificação da lógica pura”, como condição a que se chegue a uma “clareza inequívoca” sobre os objetos próprios a serem investigados. Há, portanto, uma espécie de inversão: no lugar de a lógica “garantir” a clareza da linguagem, como era para Frege e Russell – e todos os seus seguidores – será necessário agora discutir a linguagem para se chegar a construir a “lógica pura”. O que se buscará são as condições para o desenvolvimento da  ”fenomenologia pura”, como um domínio de “investigações neutras”, no qual (as) diferentes ciências possam estabelecer as suas raízes”. A “fenomenologia pura” é o solo, a terra,o húmus para todas as ciências.

Os “objetos” (nota 23)  para os quais a “lógica pura” está voltada são “dados sob vestes gramaticais”, dados que estão “como (que) embutidos nas vivências psíquicas concretas” (nota 24). Esses dados “vestidos de linguagem” junto com as vivências formam o que ele nomeará como “uma unidade fenomenológica” (nota 25).  Será a partir destas unidades fenomenológicas complexas que o lógico trabalhará, sem tomar como “dado” as vivências psíquicas de um caso singular. “Ao lógico puro não interessa primaria e propriamente o juízo psicológico, isto é, o fenômeno psíquico concreto, mas, sim o juízo lógico” (nota 26) , uma espécie de significação aglutinada ou aglutinação de significados. Deixando a “relação real” entre os atos – os juízos empíricos – para o que Husserl chamará de “relação ideal” em que “a consideração subjetiva cede o seu lugar à objetiva” (nota 27) . E esse será o seu caminho, procurando desenvolver uma “fenomenologia pura”, livre, ou pelo menos independente das contingências vividas pelos  homens em suas vidas concretas.

Heidegger, assistente e aluno dileto de Husserl, em seus primeiros trabalhos buscava distinguir a esfera imutável da lógica daquele mundo dos fatos psíquicos, mutantes e dependentes do tempo. Ao psicologismo ficaria  limitado o acesso à validade, uma vez que por definição ela não é dependente do tempo. Para ele, nesse primeiro momento, o que é válido, o que é legítimo, tem o caráter da permanência no tempo: será sempre. Mas,  desde a tese de livre docência sobre Escoto, como nota Vattimo (nota 28), “Heidegger reconhece explicitamente que a filosofia não pode deixar de levantar o problema da validade das categorias, isto é, da lógica, não só de um ponto de vista imanente, como também de um ponto de vista “transeunte” , isto é, de um ponto de vista do seu valor para o objeto…trata-se de ligar explicitamente a historicidade do “espírito vivente” e a validade intemporal  da lógica”(nota 29) . A sua questão central se torna a questão do ser, vinculada à questão da existência, do “espírito vivente, histórico”. E “existência” no caso do ser-humano, “deve entender-se no sentido etimológico de “ex-sistere” – estar fora – ultrapassar a realidade simplesmente presente (como era visto o ser, até então) em direção da sua possibilidade” (nota 30) . E aqui pode-se  apreender outra noção central de Heidegger  – talvez a condição básica da possibilidade de uma clínica – quando ele  define o ser humano, em sua essência como um “poder-ser” (do ponto de vista de quem a procura) e,  “compreensão-de-ser”(do ponto de vista de quem atende a quem procura).

Em Viena, capital cultural do mundo ocidental à época,  Freud (nota 31) , a partir de seu trabalho clínico, desenvolveu a hipótese teórica tremendamente fecunda do “inconsciente” , que trouxe  outros  parâmetros para se pensar o ser humano, suas relações consigo próprio, com o mundo e  com os outros.  Abriu um âmbito terapêutico original  e próprio – o  das psicanálises – de pertinência clinica e cultural ampla, séria, articulada e transformadora. Com ele “…um novo ouvinte é inventado, digamos, outro tipo de intérprete” (nota 32) . Vivendo e respeitando os valores de seu tempo, buscou incansavelmente, estar em consonância com os valores da ciência, onde isso fosse possível, sem violentar os saberes que o enfrentamento dos desafios de seu trabalho trazia: ”Um intéprete… (que) está de acordo com a ciência, mas (que) é também um intérprete que visa um saber diferente daquele da ciência” (nota 33).  

Ferdinand Saussure (nota 34) , entre 1906 e 1911, na Universidade de Genebra, através de seus cursos de lingüística geral, colocou a linguagem como objeto de estudo, mas de um modo muito próprio, não dando importância às questões da filosofia da linguagem, do sentido e da referência, como fizera Frege e seus continuadores.  Para ele havia uma predominância da língua – “princípio de classificação”, sistema abstrato – sobre os elementos. O exercício da língua  se dá pela linguagem, entendida como esse sistema de signos. Ela será, primordialmente, compreender a relação entre as palavras. A linguagem fica autônoma, auto-referida, não mais ligada à vida do homem, numa espécie de campo científico próprio: o da lingüística. E será deste modo de tomar as questões da linguagem como sistema – estrutura – que se impregnará a cultura francesa, pelo menos, pelos seguintes 50 anos. O “estruturalismo” com presunção científica desenvolvido por  Levi-Strauss (nota 35) bebe diretamente dessa fonte.

A tentativa mais acabada e articulada na direção de produzir certeza teórica através da lógica e da linguagem foi desenvolvida também em Viena, na primeira década desse século, por Wittgenstein (nota 36) .  Esse  é o tema central de seu Tractatus Logicus Philosophicus (nota 37). Nessa obra (nota 38) ele procura submeter o dizer humano ao modelo do dizer cientifico, isto é, do dizer controlável, que decide sobre os fatos do mundo. Ele busca “a” linguagem que assegure isso. Uma expressão, ou uma proposição será entendida quando se dominar a regra do seu uso. E o que estabelece essa regra é a lógica: “a maioria das questões e proposições dos filósofos provém de não entendermos a lógica de nossa linguagem” (nota 39). E a lógica, num processo de decantação analítica induzida da linguagem, chegaria a uma  única  forma de expressão, ” perfeitamente decomposta”.  A linguagem, ali, então, passa a ser cálculo, comandada pela lógica. Poderia, portanto, trazer precisão, segurança, certeza, estabelecer verdades, fundamentos sólidos, razões últimas. A linguagem lógica, científica, potencialmente chegando ao “fundo”, à última instância, evidencia a verdade, torna-a legítima. O  significado de uma expressão científica, portanto, será o resultado da aplicação restrita das regras da  lógica à linguagem (nota 40). De uma certa perspectiva, é o ponto mais “alto” – ou mais “fundo” – a que pode chegar a ciência, a técnica ou a metafísica. O conhecimento científico, finalmente, estaria legitimado.

3. O Desfazimento da Verdade como Certeza

Com o passar dos anos, entretanto,  o próprio  Wittgenstein se tornará o maior crítico do seu  Tractatus. Ele considerará que não é a regra do uso (a lógica) mas o próprio  uso da expressão lingüística  que definirá o  significado dessa expressão. Nesse novo modo de ver, o sentido do que se diz é dado no uso que se faz das palavras, dos sons, dos gestos.  Ao “usar” uma palavra, um gesto, a pessoa inventa ou repete um sentido que escolhe para ela, para ele: a palavra e o gesto não têm mais um sentido “último”, “em si”, mas está referido às suas vivências e as que supõe de seu interlocutor. Ela pode abrir sua mão direita, juntar a ponta do indicador à ponta do  polegar e com este gesto indicar ao seu colega norte-americano que “está de acordo” com o que ele disse; o seu colega gaúcho, no entanto, poderá entender que com este gesto está agredindo seu colega. As referências existenciais são diferentes, o que traz sentidos muito distintos ao aparente mesmo repertório vocabular.  Não é mais a lógica, mas sim o contexto, as circunstâncias que passarão a interferir no modo definidor, na produção e, no entendimento do sentido de uma proposição, de uma palavra ou de um gesto.  

Nesta perspectiva, o modo de entender a própria  história – a historicidade – interfere, quase determina, o conteúdo da linguagem de uma pessoa. A linguagem não será mais vista como algo único e uniforme, mas como uma grande variedade de ações possíveis,  como “…comandar…descrever um objeto…relatar um acontecimento… expor uma hipótese…inventar uma história…fazer uma anedota…pedir, agradecer, maldizer, saudar, orar” (nota 41)  “Essa pluralidade não é nada fixa (como se fosse) um dado para sempre; mas (são) novos tipos de linguagem…o termo “jogo de linguagem” deve aqui salientar que o falar da linguagem é uma parte da atividade ou de uma forma de vida” (nota 42) . E para ficar com este alumbrante autor-crítico de si mesmo: “É interessante comparar a multiplicidade das ferramentas da linguagem e seus modos de emprego, a multiplicidade das espécies de palavras e frases com aquilo que os lógicos disseram sobre a estrutura da linguagem (e também o autor do Tractatus Lógico-philosophicus) “ (nota 43).

Essa crítica incisiva à uniformidade e à unidade da linguagem tira as bases nas quais se suportam as noções que a  ciência vai buscar na lógica. Em última instância, do pensamento predominante no ocidente. A ruptura é profunda e ainda se está aprendendo a viver sob sua influência neste início de século 21.  Não há mais “a linguagem”, mas as linguagens, agora  referidas a “formas de vida”. Cada pessoa tem a sua própria “forma de vida”, pode passar a ser vista e tomada, em clínica, em sua peculiaridade, em sua singularidade.

A lógica considerava a fala como um resultado, portanto só observava o conteúdo do que é falado. Uma clínica ocupada nas condições do viver de uma pessoa,  busca  assimilar  a “fala”, a linguagem,  como um processo semântico, buscando ver de  onde ela surge, onde está inserida, vinculando-a à sua historicidade própria. Os contextos de referências de significados e sentidos, de  onde vem, por onde passa e passou  essa “fala”, vale dizer esta pessoa, cada pessoa. Há, com isto, uma atitude muito diferente quanto à busca de sentido.

Nesta mesma direção, ainda que com muita diferenças, pode-se observar que também em Heidegger, de Ser e Tempo (nota 44), o sentido é produzido pelo envolvimento do homem  nas suas  atividades cotidianas, no seu mundo, na sua práxis. A linguagem acontece, se realiza, “fala” no fato. “ A linguagem é o pronunciamento da fala” (nota 45) ou ainda ,  “a linguagem fala” (nota 46). A “fala” é um “deixar ver”, articulação com a situação em gestos ou palavras. O traço principal da linguagem está na sua função referencial. Há uma relação entre o “dito” com  “algo” que se procura tornar ”visível”. Deixar ver é “ver por si mesmo” esse “algo”. E esse “algo”  se mostra (no  modo)  a partir de si mesmo.

Esse “mostrar-se” em si mesmo  de um “algo” é o que Heidegger entende por “fenômeno” (nota 47) . Fenômeno é o”mostrar-se” de “algo”, que “vem ao encontro” a partir desse “algo”. A fenomenologia  para ele, é o âmbito que estuda esse modo do “mostrar-se”, a “via de acesso e o modo de comprovação”. De seu ponto de vista, “fenômeno é somente o que constitui o ser, e ser é sempre ser do ente” (nota 48) . A questão do “ser” é a  mais universal e, ao mesmo tempo, se dá na  singularidade mais restrita,  deste ser humano histórico, em circunstância, em sua facticidade. Mas para ele, filósofo, o ser humano será tomado na  perspectiva  ontológica (nota 49), o ser humano será concebido como o  ser-aí ou, o ser-o-aí, ou o  Dasein (nota 50).  Ele  oporá  ao ponto de vista lógico o ponto de vista existencial.

 A clínica, no entanto, como não cansa de nos alertar o próprio Heidegger (nota 51),  não é ontologia. Uma clínica não tem como  tarefa discutir o que “este ser humano é”, qual o ser-deste ser humano.  O campo é “ôntico”, dos entes, deste ser humano aqui à  frente, não em seu “ser”, mas em seu “estando”, seu “já-sendo-aqui”. Nestas  circunstâncias.  Não se  trata com  o ser humano – homem ou mulher – ab-strato, como se ele fosse tirado de um estrato, de  uma estrutura de conhecimento que não está presente no “mundo”,  meta-físico. Cuida-se deste ser humano aqui em sua relação com os fatos que compõem incessantemente o seu estar-no-mundo. Trata deste “ser humano de fato” que se apresenta, “aqui”,  à frente do/a clínico/a. Parte daqui. Toma este “ser humano concreto”, este “ente” em seu contexto, em sua singularidade. Não há relação com a universalidade.  Por isso o visar da clínica é ôntico. É encarnado. Não é ontológico, não tange a verdade. Não trata com doentes, com pacientes, trata com pessoas que trazem parte de suas vidas, que  partilham modos de sua existência.  Não é tarefa do/a clínico/a des-vendar um pretenso ser-do-partilhante, a sua verdade, já dada ou a se obter. Ele/a já é o que é, a sua  própria verdade é essa que ele/a vive. Em clínica, talvez,  seja mais  estar com ele/a em seus “estares”, em suas questões. Acompanhar suas pré-ocupações, seus modos de constituir-se e refazer-se. Cuidar.

 A fala deste/a partilhante à frente do/a clínico/a é linguagem – e não apenas “sons” – porque ao se manifestar ela já traz uma articulação de significações própria, sempre capaz de modificação, em modos de ser seus  nos “mundos”, singulares. Quando posto em relação com o/a clínico/a, com este mundo que inventa e que  se lhe apresenta – um/a clínico/a, ou este outro ser humano –  lança e remete “algo” de si.

A propósito de “falar”, Heidegger lembrará a importância de se fazer uma distinção radical  entre a pura nominação (nota 52)   e a enunciação (nota 53) . Na nominação deixa-se ser o que é a aquilo que está presente. É certo que a nominação implica aquele/a que nomeia, mas o próprio do nomear é, justamente, que aquele/a que nomeia não intervém a não ser para desaparecer ante o ente: é como se ele/a desaparecesse, sumisse, evaporasse. Ao contrário, na enunciação aquele/a que enuncia intervém intercalando-se. “E se intercala como quem domina o ente para falar sobre ele” (nota 54) . Esta distinção pode ser muito esclarecedora do papel da” fala” na clínica onde o pronunciar do/a partilhante será  predominantemente “enunciativo”, na medida em que estará “falando” de “si mesmo/a”, enquanto o ouvir do/a terapeuta será inicialmente, de preferência e, na medida do possível, “nominativo”, isto é, ele/a inclinará sua atenção ao nome, procurando encontrar o nomeado com a menor inter-ferência possível de sua própria historicidade ou escolhendo pré-dominar este aspecto de sua historicidade.   Esta postura clínica facilita a possibilidade de apreensão, por parte do/a clinico/a, do que é próprio a aquele mundo humano e,  que se apresenta através desta linguagem que fala. Uma linguagem que tem essa característica de estar em tensão entre a sua singularidade própria e a possibilidade de se tornar “com”: sem esse “com”, nunca é demais lembrar, não seria linguagem. Linguagem, então,  também referida a uma, a  esta vida. 

O Heidegger maduro, segundo Loparic (nota 55) conceberia a linguagem de modo muito diferente (nota 56) daquele tomado por Wittgenstein, uma vez que  ele não buscaria  “elucidar o verbalizado, mas, precipuamente, apreender o apenas “acenado” ou “gestado” e, neste sentido, indicado”.  Para isso, notará como “o tema do silêncio ganhou uma importância cada vez maior no seu pensamento….  entre as “figuras” do dizer, o silêncio, e mesmo o silêncio sobre o silêncio”. Loparic lembrará que isto seria uma reafirmação e ao mesmo tempo, um ultrapassamento do parágrafo 7 do Tractatus, que diz “sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar” (nota 57). Uma indicação clínica preciosa.

Como, aliás,  “escuta” o pintor paulistano Sérgio Fingermann: “Com o silêncio aprendemos a ver no escuro. Aprendemos novos tons de escuro. Aprendemos a ver o visto. O silêncio ensina que a noite tem suas claridades. Às vezes, o silêncio se transforma em esfera transparente. Imobiliza-se. Fica “sendo”. È uma espécie de gerúndio. É como cápsula que se contém: fica sendo o não-ver. Fica sendo o não-estar. É o caminho até nossa solidão. Há chamados do silêncio. Há sentimentos que vêm de lá, ou, então, são feitos ali. No silêncio pensamos sem palavras.” (nota 58)

Para Loparic “não existiria mais qualquer possibilidade de tomar o termo “dizer” como sinônimo de “verbalizar”. O termo “dizer” deve ser entendido a partir do sentido do verbo “dicere”, em latim, (que quer dizer) anunciar solenemente e, que por seu turno,  remonta  à raiz indo-européia “deik” ( que teria o sentido de) mostrar, apontar, indicar: in-dicar” (nota 59)  A palavra antes de ser uma “parábola” é uma “dica”. A fala antes de contar uma “fábula” é um gesto que desoculta uma “gesta”, “em última analise até o “calar”, verbal ou corpóreo, passa a valer como um modo de dizer indicial, precisamente daquilo que está além do alcance de qualquer  ato fonético ou comportamental (nota 60). Heidegger ao dizer que “a linguagem fala”  preserva o caráter originário “indicativo” do dizer humano.  In-dica o vivido.

Por caminhos e razões diferentes  Wittgenstein  e Heidegger  desconstruíram a noção de “verdade” como certeza científica de um modo radical. Simultaneamente e, de modo diverso, trazem a possibilidade de discutir a legitimidade da clínica existencial de outro modo, que não havia antes deles. Karl Otto Apel (nota 61), que trabalhou no campo da filosofia e da semiótica filosófica, vislumbra essa aproximação  pela  referência às noções de  “mundo da vida”, na tradição fenomenológica e  “forma de vida”, em Wittgenstein: “(em ambos) há uma absolutização do a priori da contingência do mundo da vida…aludindo à exigência de consistência pragmática do filosofar” (nota 62). Para este autor, Heidegger e Wittgenstein dizem que para a filosofia ser consistente em sua prática,  não será possível não levar em conta o contexto, as circunstâncias da vida vivida.  Se isso é assim para a filosofia, sempre em busca das condições de universalização dos conceitos, então, para a clínica – o reino da singularidade – isto é definitivo. Não há possibilidade de um pensamento clínico,  conseqüente e eticamente responsável,  sem a impregnação constante das contingências. Em clínica o ético é con-tingente – o “ente” “tingido” pelo que é “com”.

Os dois filósofos, para  Apel,  tornaram possível esse “giro crítico da linguagem e do sentido”  e, noutro âmbito,  um “giro pragmático-linguístico  e hermenêutico da filosofia”. Acompanhar esta argumento – sem aderir a ele – facilitará, talvez, o entendimento de como a questão ética foi re-colocada,  mormente para o que  interessa a este trabalho, a legitimidade da clinica existencial. Ou, em outras palavras, como uma clínica consistente e responsável,  pode ser pensada no  lugar do incerto.

4. A Certeza Incerta

A  noção de certeza e sua importância  não nasceu com o homem: foi criada por ele. A certeza para o chamado  “pensamento moderno”, que vai ser a base para a  verdade científica,   vem da evidência vivida por uma pessoa em sua experiência interna.  O certo é aquilo que ela acredita perceber,  e não a existência real, efetiva,  de coisas ou pessoas no mundo externo, por exemplo. Os objetos verdadeiros são os objetos da sua consciência, vale dizer, as suas próprias percepções, as sensações, ou as  representações que faz  do mundo externo. As coisas e as pessoas do mundo externo são, para esse “sujeito”, o resultado das inferências que faz sobre a sua  base de dados, que são, por sua vez,  imanentes – imantados no ente – à sua própria “consciência”. E será essa “in-ferência” – a “ferência” do “in”, do interno – que tornará legítimo o pensamento, que justificará a verdade, trará a certeza. Na clínica existencial, um modo de expressão disso é o/a terapeuta que diz: “eu sei que ele é assim, eu sinto isso,  percebo o seu ser” e passa a agir e a se relacionar com essa pessoa “in-ventada” por ele/a.

Aquilo que uma pessoa  toma como realmente existente no mundo externo, no entanto,   poderia estar somente na sua cabeça. Como é o caso também do sonho ou do delírio. Na história da filosofia o primado do interno, do que está “dentro” de si, tomado como base suficiente para o conhecimento, tem uma tradição importante, que  começa com Descartes no século 17 e vai – pelo menos – até Husserl no século 20. A discussão, aqui, não é sobre aquela certeza subjetiva da experiência interna, como  “sentir dor” (nota 63) , ou viver uma revelação mística. Ou  mesmo que uma pessoa possa ter a impressão de ter apreendido o “ser”  de uma outra pessoa”. O que se questiona  é que se possa privilegiar essa certeza pessoal – que é legítima –  como um conhecimento do mundo externo válido para as outras pessoas,  entre as  pessoas, intersubjetivamente: tomá-la  clinicamente como verdade definitiva –  válida em qualquer circunstância, legítima por si.  Como faz a ciência moderna.

No limite do conhecimento da ciência, lá, no “mais fundo”, está,  como base, essa certeza da experiência interna.  Em outras palavras, o que  se traz aqui como questão é que  um conhecimento, para ter validade, para ser legítimo, não pode estar fundado na experiência interna de certeza vivida por uma única pessoa. E, uma pessoa que não se apresenta, que não pode ser confrontada, que é  desencarnada, ideal, fora do mundo, meta-física, ou transcendental. 

E o trágico é que é esse mesmo “saber” é que vai justificar – tornar justo – modos de interferência clínica socialmente legitimados, sobre uma pessoa, que irão da alteração de seus processos psíquicos através de intromissão de substâncias químicas com muitos danos corporais, do aprisionamento e/ou imobilização física (camisas-de-força, internação compulsória), da imposição de  intenso sofrimento físico (choques elétricos, banhos de contrastes térmicos), até a mutilação definitiva  do seu corpo físico (lobotomia) (nota 64). 

Se a experiência interna, mesmo num ser humano “histórico”,  fosse aceitável como origem do conhecimento comum, universal,  aquele que está conhecendo teria que poder  expressar as certezas dessas experiências internas, mas o faria numa linguagem privada, que ninguém mais poderia entender, pois só designaria idéias privadas, como em Locke (nota 65). Mas uma linguagem privada não é concebível porque suas regras – as sintáticas e as semânticas – não poderiam ser ensinadas nem aprendidas por meio de critérios publicamente acessíveis para se seguir regras. A rigor, nem linguagem seria. Mesmo na tradição kantiana a pessoa poderia chegar a conhecimentos válidos, por si mesma,  sem necessidade de compartilhar significações com os outros – estabelecer linguagem –  uma vez que o critério formal de verdade é o da concordância das idéias com as leis gerais do entendimento e da razão. Buscar a concordância com os outros seria útil para evitar erros, porém, não necessário.

Para visar a questão em outro âmbito, pode-se perguntar como essa experiência interna de um “eu” único, des-historicizado,  pode ser justificada como base para  um conteúdo de significados, de sentidos,  que seja compreensível, que tenha a possibilidade de uma  comum-apreensão. Para que algo seja compreensível por outra pessoa teria que estar pressuposta uma linguagem, um modo de partilhamento  com outros. 

5. Linguagem e Contexto

Com-partilhar com outros um conteúdo vivido significa estabelecer uma linguagem, isto é, obedecer (seguir)  uma regra de comunicação que se torna pública (ao menos para esse público compartilhador). E essa regra  por tornar-se pública, se torna  controlável. Como lembra Wittgenstein  “um só não pode seguir uma regra” (nota 66). Só haverá  compreensão se existir uma linguagem (com)vivida  pelas pessoas envolvidas, um “jogo” comum, com suas regras.   Este é um pressuposto, um tipo de a priori, do “jogo de linguagem” da compreensão.  Este “pré”, esta “regra”, precisa valer para os interlocutores: se não for assim não se estabelece uma “con-versa”, uma linguagem. A regra compartilhada – esse “pré” –  é,  por definição,  intersubjetivamente válido.  Partilhante e clínico aceitam, de antemão, como regra de organização dos sons, que quando emitirem sons aproximados de  “ver-me-lho” estarão se referindo a aquela cor ali (nota 67) . Mas nada os impediria de usar o som “red”,”rouge” ou “taramentouiste”, para indicá-la, mostrá-la, dar sua referência. 

Esta regra, esse “pré” compartilhado,  “entre”,   é que torna possível a compreensão  de “algo” como “algo”. Para Apel, este seria um novo paradigma da filosofia , uma vez  que a primazia da teoria do  conhecimento passa à  experiência no mundo externo. Experiência  que  não é  certa, porque é tomada  por cada pessoa de um modo,  mas que, desse modo, através dessa regra compartilhada – a linguagem –  é passível de ser  compreendida e aceita publicamente. Além disso, a linguagem é controlável e corrigível segundo certos critérios, eles também, pactuados. Muito diferente, portanto, da certeza subjetivo-privada da experiência  interna. 

Novamente: não se está aqui excluindo a legitimidade das vivências “internas” de uma  pessoa. Ao contrário. Clarice Lispector: “Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada” (nota 68)  A “verdade inventada”, em trânsito, em constituição – com-instituição – nesse grafar em palavras o que era “pré” até então e, que aqui, numa outra pessoa, transforma um pré – seu – em sentido, com o qual lida. Eventualmente lida com esse “sentido”  tomando-o como uma “terrível limitação”. Ou não. A qualquer um/a  é dada a liberdade da “certeza subjetiva”, ainda que, em contato com outra pessoa ela possa compartilhar regras, saberes, conhecimentos. Como Clarice. Ela escreve, outro partilha das suas vivências. Vive-as, inventa-as, agora a seu modo.

  Um “louco” talvez seja alguém que não encontra linguagem para compartilhar seu mundo “interno”. E,  por seu mundo próprio não ser apreendido por outros,   ele é tirado  do convívio social, por uma parte desses outros. Passa a ser tratado como “diferente”, perigoso – já que desconhecido –  deve ser afastado da “comum-unidade”. O “louco” pode ser alguém desesperado em busca de linguagem, em busca de contato, de poder mostrar suas vivências, de ser compreendido – até por si mesmo –  mas que tem dificuldade em  se utilizar de  regras sintáticas e semânticas que pudessem ser compartilhadas por outras pessoas – e consigo. Raramente o “louco” é uma pessoa com comprometimentos corporais, físicos ou químicos na origem das dificuldades de suas vivências e                                                                                                        con-vivências.  Muitas vezes elas são adquiridas: não poucas vezes, através dos tratamentos.

O argumento usado por Descartes nas Meditações (nota 69) “é possivel q eu esteja sonhando”, para Wittgenstein não tem qualquer sentido, uma vez que essa “afirmação” estaria ela mesma  sendo sonhada. Essas mesmas palavras só teriam significado se seguissem uma regra fora de si, independente de si. Não se pode saber se alguém ao pretender seguir uma regra, segue essa  regra de modo certo ou de modo errado sem a possibilidade de recorrer a uma instância independente da sua própria “consciência”. Não haveria diferença entre o significado de seguir a regra e o significado de crer que se segue a regra. E,  justamente nesta supressão da diferença entre fazer e crer que se faz, é onde se baseia a certeza indubitável da experiência interna na filosofia moderna.  Com todas as letras:  a certeza científica, a verdade provinda dela,  é uma questão de fé (nota 70) . O que Wittgenstein  permite é mostrar que diferentes jogos de linguagem – religião, ciência, filosofia, psiquiatria, psicanálise, filosofia clinica – ao serem comparados, facilitam a descrição do uso que as pessoas fazem, em seu cotidiano, da linguagem.

Um jogo de linguagem já pressupõe, para sua existência, outros jogos de linguagem, os quais por sua vez têm que estar entretecidos com a práxis de uma “forma de vida”. Nomear, formar uma linguagem,  é um ato mental notável, quase um batismo de um objeto. Mas esse nome não leva consigo nenhum significado compreensível ao objeto. Ao nomear “isto” como “mesa”, se estará dando um predicado linguístico a “isto”. E é por esta razão que não há possibilidade de se criar uma teoria do significado linguístico “universalmente válida”, por intermédio da coordenação de “nomes próprios lógicos” com dados “puros” dos sentidos  enquanto partes de um  mundo qualquer. O jogo lingüístico da denominação já pressupõe os jogos de linguagem, isto é,  dependem do contexto de vida prático, que por sua vez  constitui o universo possível de referências para as palavras, vale dizer, as possibilidades de seus significados.

Os usos  da linguagem por uma pessoa no cotidiano, estão entretecidos com suas expressões corporais, com as suas atividades, com as suas interpretações do mundo. Ela já está enredada com os outros na interpretação lingüística do mundo,  que em seu cotidiano está sempre já guiado por essa interpretação.  O pensamento cartesiano não se dá conta disso, de que em seu ponto de partida – “penso logo existo” – já está tomando como pressuposto muito mais que o “puro pensamento”. Está pressupondo uma linguagem e, portanto, uma comunidade de comunicação. Há um “pré”, um a priori do pensamento que é a linguagem (nota 71) . Os “outros” já estão lá, pressupostos, mas, a eles o raciocínio de Descartes não dá voz. E quando aquele “ puro  pensamento”  – o cogito – se afirma pretendendo dizer o que é válido e o que não é, o que é certo e o que não é, o que é verdadeiro, ele já está no terreno do discurso argumentativo, sem dar ouvidos ou voz aos outros.  A sua certeza, a sua verdade, o que considera válido ou legítimo,  não passam de  argumentos.

Mesmo  no mais radical distanciamento que a reflexão possa se colocar – seja em Descartes ou mesmo em Husserl – sempre já estará pressuposta a linguagem como meio, como lugar  da validade intersubjetiva do sentido, em conjunto com a intersubjetividade comunicativa. Para Heidegger, lido por Apel,  mesmo Kant, em última instância,  partiria de uma  pressuposição  cartesiana de um “sujeito que existe isoladamente” e também,  do primado da experiência interna desse sujeito (nota 72). A diferença e a relação entre “dentro” e “fora” da consciência de uma pessoa só pode ser compreendida  se já estiver pressuposto que essa pessoa existe,  que ela é um  “ser no mundo”.  No “ser” já  teriam que estar, que conter,  os entes que “estão”, que “existem” fora dessa pessoa. Kant sempre  lastimava  o “escândalo” da Filosofia: a falta de prova da existência do mundo externo. Heidegger dirá que o “escandaloso” é que  “ se espere e se tente sem cessar semelhantes provas” (nota 73) . O mundo já é mundo. O homem “munda”, forma  mundo. Wittgenstein vê a filosofia e seus mal-entendidos como conseqüência da falta de entretecimento de sentido  de seus jogos de linguagem – “que caminham no vazio” – com a práxis da vida.

O “mundo da vida” – “lebenswelt”, em alemão – na leitura que  Apel  faz de Wittgenstein e Heidegger,  permite a ambos  uma base mais profunda que o da tradição moderna.  Ele seria pré-reflexivo , se daria  como um “pré”, “antes” do próprio pensamento. O “mundo da vida”  seria mais “compreensível”, teria mais “sentido”, seria mais significativo, para os homens viventes.

6. Mundo da Vida e Contexto

 O conceito de “mundo da vida” foi  introduzido por Husserl em seu livro “As Crises da Consciência Européia” (nota 74),  para ancorar, para fundamentar os pressupostos do conhecimento científico e filosófico. “Fazem parte de todo o pensar científico e de todo o questionamento filosófico  obviedades previamente disponíveis, que o mundo existe, que existe sempre previamente”(nota 75) .  Esse “mundo pré-dado”, ele dirá, “é pré dado a todos nós…pré dado como “o” mundo, o universal-comum. Ele é o solo permanente de validade, uma fonte constantemente pronta de obviedades a que recorremos sem mais, como homens práticos ou como cientistas”(nota 76). Mesmo a lógica só pode ser legitimada, validada, “confirmada” por algo que vem antes, que se relaciona com a vida dos homens em suas práticas, com o “mundo da vida”:  “o relativo ao sujeito…é em última instância fundamentador da validade de ser teórico-lógica para toda a confirmação objetiva, ou seja, funciona como fonte  de evidência, fonte de confirmação….o que é efetivo no “mundo da vida”,  como ente válido, é, por conseguinte, uma premissa” (nota 77) . Para Husserl, para sua fenomenologia, sublinhe-se, resuma-se: o “mundo da vida” é uma premissa, um a priori.

 “O “mundo da vida” é um domínio de evidências originárias…para o acesso científico ao mundo da vida fazer valer o direito originário destas evidências e sua superior dignidade, frente à das evidências lógico-objetivas, no que se refere à fundamentação do conhecimento. Tem de ser …trazido à evidência última, o fato de que toda evidência das produções lógico-objetivas…tem as suas fontes ocultas de fundamentação na vida …produtiva…O caminho conduz aqui desde a evidência lógico-objetiva… de volta à evidência originária na qual o “mundo da vida” é, em permanência,  pré-dado” (nota 78). Não é pouco o que Husserl afirma na frase anterior: mesmo a evidência “lógico-objetiva”  só se fundamentará na evidência mais “originária” do “mundo da vida”. Ele complementará lembrando  que mesmo “as  teorias são configurações humanas, pertencentes, assim, a essa unidade concreta do “mundo da vida” (nota 79) .   

Gadamer (nota 80)  que acompanhou de perto o trabalho de Husserl e depois o de Heidegger, termina seu trabalho sobre “o mundo da vida” dizendo: “ gostaria de concordar com o impulso ético que reside na idéia husserliana de uma prática nova estabelecida em termos do “mundo da vida”, mas, colocar ao lado desse impulso…o antigo impulso de um autentico “sensus Communis” (nota 81)  seria inadmissivel” (nota 82)

Para Apel, Wittgenstein e Heidegger chegaram, cada um a seu modo ao “mundo da vida” , e foram muito mais radicais do que Husserl no confronto com a tradição filosófica. Husserl teria mostrado como as ciências, ao buscar sentido, baseadas em idéias e abstrações estavam, de fato, tomando como pressupostos os “sentidos” que seriam próprios do  ”mundo da vida”. Como Husserl era um “filósofo da consciência”, os sentidos do “mundo da vida” se constituiriam e se legitimariam, intersubjetivamente, através da intencionalidade de uma consciência pensante. Em outras palavras a constituição dos sentidos estariam submetidos a uma consciência (ainda) transcendental-solipsista. Husserl não teria se dado conta em seu raciocínio que essas constituições, mesmo no “mundo da vida”, já estão, sempre, enquanto publicamente válidas, mediadas linguisticamente e que, nessa medida, já pertencem a certas formas de vida condicionadas sociocultural e historicamente (nota 83).

Neste ponto,  talvez, é onde se encontram os limites de uma concepção clínica baseada numa fenomenologia husserlliana, que nos seus limites estaria condicionada a uma consciência – ainda – solipsista, em que o “outro”, como tal, “sociocultural e historicamente” condiconado, não se constitui. Em Husserl as subordinações intencionais da consciência do ego,  que são  pré-linguisticas,  têm que fundamentar as constituições de sentido do “mundo da vida”: o sentido é “dado”, instituído a partir da consciência e, na consciência.  Para Wittgenstein e Heidegger esse mesmo “mundo da vida” se situa no lugar do que não pode ter base, do que não é “baseável”(nota 84) . Em Heidegger, na figura do “projeto lançado” (o ser-lançado), historicamente condicionado como “ser-no-mundo” (nota 85); em Wittgenstein na figura das “formas de vida” que constituem o pano de fundo dos jogos de linguagem que em cada caso se utiliza. Haveria, portanto, uma pré-compreensão do “mundo da vida” que é lingüística e historicamente condicionada. E por essa razão se torna impossível retroceder a um “ponto zero” do pensamento, onde este se acharia livre de preconceitos (nota 86).  O pensamento sempre se dará a partir de pré-juízos, de pré-conceitos.

Em Husserl há o exercício de uma intencionalidade  de uma consciência pura, auto-reflexiva. Para Apel  a reflexão da consciência, como exercício do pensamento,  é que poderia produzir essa evidência de que a significatividade do “mundo da vida” pressupõe uma constituição de sentido pré-reflexiva. Essa constituição de sentido pré-reflexiva tem como base um “pré” que é corporal – de onde se estabelecem as perspectivas – e, um “pré” prático dos interesses – que motivam o conhecimento – e, ainda,  um “pré” que se expressa pela facticidade (por seu ser de fato) e pela historicidade  como ser-no-mundo. Estes “prés” seriam como  uma pré-estrutura necessária à compreensão do mundo , que precede ao – para ele – a priori da reflexão sobre o que é válido, o que é legítimo.

Mas estes “prés” não são uma volta para a experiência interna, lugar onde tudo se dá, isolado do mundo, como se vinha criticando?

Não, porque esses “prés” já são, eles mesmos, conseqüência da relação com o “mundo”: eles são con-formados pela linguagem. Já são exercício. Cada  “a priori pré reflexivo” já  é um modo de linguagem. Um modo de linguagem ligado, conectado à primazia da vida prática.  Essa “vida prática” constitui sentido. E se refaz nesse exercício. Faz a “ex-peri-ment-ação”:  a ação de sair de si – “ex” – se relacionar como o movimento em torno – “peri” – e voltar-a-si. Essa “relação com o movimento em torno”, ao ser absorvido, nesse próprio ato, descreve a constituição disso, a linguagem. Tomada para si o “resultado” próprio/singular do contato-com-o-mundo, aquilo que fora  extro-vertido-de-si, não é mais “aquilo”: passa a ser um “outro aquilo” que é o que se está nomeando como “pré”.

E será esse “pré”, assim constituído, sempre re-constituindo-se, que conformará, dará forma à nova “ex-peri-ência”: o “estado” – a “ência”- em que a relação “ex” com “peri” se faz. Em outras palavras, na própria língua a palavra-conceito de “experiência” já está pressupondo um “pré” que a constitui: sem esse “pré” não há experiência possível. Sem um modo de linguagem – aqui se entende linguagem assim – não se realiza experiência. Linguagem constitui  mundo.

7. Ética, Legitimidade e Linguagem

A linguagem é esse “pré” que  se dá “entre”.  Entre um e outro, num e noutro, só se dá em relação.  É, por definição um sentido comum pré-acordado, um consenso. Linguagem privada é um contrasenso, ou mais propriamente: a loucura. A legitimidade da clínica existencial se faz através desse modo de consenso pré-estabelecido que é a linguagem. Será só através da experiência ininterrupta  da linguagem que uma comunidade poderá aceitar o sentido de um tratamento, de uma terapêutica.

Este sentido de legitimidade pela linguagem, na “área clínica”, desfaz a submissão das teorias à autoridade dos conhecimentos científicos. As ciências são importantíssimas, mas seus princípios e seus modos não são aplicáveis neste campo de saber. Aqui os conhecimentos partem do singular para chegar ao singular, são caminhos sempre em constituição, exercício entre o pensamento e a prática e, suas referencias são éticas. Não se  amparam em “teorias” vinculadas a certas idéias – filosóficas -, que em seus limites encontrariam certeza ou ao menos uma certa impregnação na ”verdade”.

 A ética, neste campo, se dá através de um consenso, do ir e vir. Ela não está em algum lugar obscuro, a partir do qual emanaria suas “ordens”: a ética se coloca na  claridade das ambigüidades humanas, ali onde a linguagem se faz. A  ética não fala  de “exatidão” pois “pertence à estrutura essencial do fenômeno ético – e clinico – o fato de que aquele que atua – um e outro – deve saber e decidir por si mesmo e não permitir que lhe arrebatem essa autonomia por nada” (nota 87).   A ética não pode ser entendida como um exercício de “filosofia da vida” (nota 88). A vida é um modo de ser próprio, singular, cada qual abrindo-se para as suas circunstâncias, o seu mundo, a sua memória. “A estrutura da existência não pode ser confundida com um existencial derivado… o que é “bom” no viver também é um conceito derivado… o bom originário é a herança que nos provém da tradição e tem o sentido daquilo que favorece ou facilita o nosso ser-no-mundo” (nota 89). História, tradição, memória, herança que  vem através desse “em comum” privilegiado que é a linguagem. Linguagem que cria a possibilidade da com-preensão – a “a-preensão com” – que “valida o valor”, dá sentido à ética. Legitima.

A linguagem ao dar sentido à ética  através da compreensão, por sua característica de exercício constante de apreensão no ir e vir de sentido, permite o re-vigoramento  do sentido ético na prática clínica. Lá, algumas vezes,  não ser compreendido pode ser melhor do que se tornar prisioneiro do que o clínico entende como  “o bem” para si.  O “bem estar”, a “paz de espírito”, a ”tranqüilidade”, a “felicidade” podem não ser o seu “assunto” (nota 90), a sua querença em clínica. Sem o exercício ininterrupto da linguagem não há clínica legitima.

No trabalho de “contenção” de uma pessoa “em surto”, com comportamento agressivo e violento, é imprescindível criar  a possibilidade de  estabelecimento de outros modos simultâneos de linguagem (nota 91) , pelas quais  ela possa entrar em contato com sua própria  humanidade, sua constituição espiritual.  Imobilizá-la certamente evitará que outras pessoas sejam atingidas ou feridas, mas com isso aquela pessoa ainda estará lá, mesmo presa,  com suas vivências, desatendida, inapreendida, em sua solidão muitas vezes desesperada. Para que se acalme lhe invadem o corpo com violência socialmente autorizada, através de produtos químicos, esperando-se o efeito – que não deixa de ser “mágico”, mesmo sendo “controlado” – daquelas substâncias. Sua vida, seus viveres são como que afastados de seu próprio domínio, para lugares longínquos, brumosos, confusos. Nessa lonjura espiritual em que passa a  viver,  maior será sua dificuldade para tornar comum as suas vivências, mais difícil estabelecer uma conversa, transformar seu mundo interno. E não se desqualifique a dificuldade dos contentores, não se valide só com isto a – valorosa e necesária – luta antimanicomial. Aqueles que estão fazendo o seu papel, obedecendo ordens, como aqueles que os contestam por terem vivido outras tantas experiências similares, não seriam capazes, eles mesmos,  de estabelecer uma linguagem mínima, entre si?  Todos têm a sua razão, falam de um lugar defensável, mas, há um que sofre em seu corpo, em seu espírito as terríveis conseqüências desta afonia. Contido, drogado/medicado, ele  é inserido numa lógica de isolamento que, no mais das vezes, trunca sua possibilidade de vida futura autônoma. Também aqui a clínica só se legitimaria através da linguagem. Quem com o olhar, ou com o ouvir de um breve relato diagnostica um transtorno, uma síndrome, autorizando o uso da força social comum, para em seguida golpear-lhe com uma cápsula ou uma injeção, poderia se dedicar ao exercício da linguagem: ouvir este que chega; ouvir e conversar com quem o traz; trocar conhecimentos com quem está a seu serviço, “treinando-lhes os ouvidos”; trazer para perto, dialogando com quem pensa diferente e que vem de outras experiências, colegas ou não, envolvendo-se e envolvendo-os  nas soluções, antes de repetir os próprios procedimentos. Trata-se de  desinternalizar, desmanicomializar a si próprio neste seu papel existencial. Tramar linguagens. Clinicar. Legitimar-se. 

O sentido do que se afirma para os outros ou para si é liberdade em exercício. Re-instituição da sua lei própria, que se projeta e se repõe como linguagem, para si, para o outro,  disposto, a apreender, a compreender.   O sentido de sua lei – a legitimidade – não  perde sua natureza humana, transitória.

Cláudio Fernandes    2013 e 2020

Notas

nota 1 – Werner Karl Heisenberg, 1901 a 1976, físico alemão, formulador da “teoria da incerteza”, ligado à teoria quântica, Nobel em 1932

nota 2 – Heisenberg, A Parte e o Todo, pg 154 e 155

nota 3 – Lacan, Jacques , Escritos,  pg 882  (Jacques-Marie Émile Lacan 1901 a 1981, psiquiatra e psicanalista frances, ficou conhecido por suas contribuições  à psicanálise, tomando por base sua clínica e uma leitura muito pessoal dos textos de Freud, incorporando aspectos do estruturalismo frances, da lingüística, da matemática e da filosofia)

Nota 4 – Bertoche, Gustavo, Realidade e Realização – a dialética do real na epistemologia de Bachelard, pg 233

nota 5 –  talvez ainda como parte da herança da tradição da lógica de Port Royal

nota 6 – Gottlob Frege, 1848 a 1925, matemático, filósofo e lógico alemão, considerado um dos pais da filosofia analítica e da filosofia da linguagem

nota 7 – Frege, Conceitografia  pg 43 in Lógica e Filosofia da Linguagem

nota 8 – idem,  pg 61

nota 9  – Frege,  Sobre a justificação científica de uma conceitografia pg 59

nota 10 – idem,  pg62

nota 11 – Bertrand Russell, 1872 a 1970, matemático, lógico e filósofo britânico, com um amplo espectro de obras em várias áreas do conhecimento humano, foi muito influente nas formulações teóricas sobre lógica e linguagem, nas déadas de 20 e 30 do século 20, Nobel em 1950

nota 12  – Santos, Luís Henrique,  pg XIV , de   de vida e obra de Russell – Os Pensadores

nota 13 –  “tudo aquilo que implica a totalidade de uma coleção não deve ser membro da coleção”, pg XVII

nota 14 – Russell, pg     “nosso conhecimento do mundo exterior” 

nota 15  – idem, pg 154

nota 16 – serão muitos os desenvolvimentos de seu pensamento, seguindo várias direções, com idas e vindas,   mas não está no escopo deste trabalho descrevê-las ou desenvolvê-las. Fique apenas o registro, que a questão da relação da linguagem com a lógica, do controle das indeterminações constitutivas daquela por leis certas e seguras desta, colocada por Frege, se tornou a de Russell e de toda uma tradição da filosofia, como para Carnap, Wittgenstein e, Austin

nota 17 –Wilhelm Dilthey, !833 a 1911, historiador, psicologista e sociólogo alemão, considerado o pai da tradição historicistal

nota 18 – Frans Brentano, 1838 a 1917, filósofo e psicologista alemão, que introduziu o conceito de intencionalidade, é considerado uma gande influência na formação de Freud

nota 19 – Sigmund  Freud, 1856 a 1939, medico neurologista austríaco, criou a psicanálise, e foi, talvez, a  figura intelectual de maior influência no ocidente no século 20

nota 20 – Edmund Gustav Albrecht Husserl, 1859 a 1938, filosofo alemão, foi o criador da fenomenologia transcendental, um dos movimentos filosóficos mais importantes no século 20 

nota 21 – “investigações lógicas”

nota 22  – Husserl,  pg 1, Investigações Lógicas dem , pg 1

nota 23 – Husserl trabalha sob a noção “metafísica” de um “mundo”, newtoniano-galileico, composto de sujeitos e objetos

nota 24 – Husserl,  pg 3, Investigações Lógicas

nota 25  – idem

nota 26 –  idem

nota 27  – idem, pg 36

nota 28 – Gianni Vatimo, 1936, filósofo italiano, discípulo de Hans-Georg Gadamer, com trabalhos importantes sobre Heidegger e Nietzsche

nota 29 –  Vattimo, pg 10 e 11 “introdução a Heidegger”

nota 30  – idem, pg 24

nota 31 –  o marco inaugural da psicanálise – “A Interpretação dos Sonhos” – também é de 1900

nota 32 – Soller,  pg 33 “O inconsciente…”

nota 33  – idem,  pg 34

nota 34 – Ferdinand de Saussure, 1857 a 1913, lingüista suíço, cujas idéias serviram para um grande desenvolvimento dos estudos linguísticos, com grande destaque pela incorporação de suas idéias no movimento estruturalista frances, no século 20

nota 35  –  Claude Lévi-Strauss, 1908 a 2009, antrpólogo e etnólogo frances, considerado o pai da antropologia moderna  e do estruturalismo

nota 36  – Ludwig Josef Johann Wittgenstein, 1889 a 1951, filósofo, matemático e lógico austríaco,  talvez o mais influente autor nos campos da lógica e nos estudos da linguagem

nota 37 – Wittgenstein,  Tractatus

nota 38 – esse trabalho caracteriza o chamado “1º. Wittgensten”, que  será criticado por ele mesmo, o  “2º.Wittgenstein”

nota 39  – Wittgenstein, pg 165, Tractatus – 4003

nota 40 –  a partir deste ponto de vista  a clínica existencial deveria preferencialmente ser exercida por lingüistas, matemáticos, ou engenheiros de informação, cientistas cujo requisito fundamental seria uma sólida formação em lógica

nota 41 – Wittgenstein, pg 23,  “investigações”

nota 42 – idem, pg 22

nota 43  – idem, pg 23

nota 44 –  Ser e Tempo

nota 45 – Heidegger,  pg 224, Ser e Tempo

nota 46 – Heidegger, pg 10, Caminhos da Linguagem

nota 47  – idem,  pg 67, Ser e Tempo

nota 48 – idem,  pg 77, idem

nota 49  – o que é, o ser…etc..

nota 50 – referir algumas  formas de se tomar isso

nota 51 – citando Seminário de Zollikon e Seminário Thor

nota 52 –  “nennen”, em alemão

nota 53  – “aussagen”, em alemão

nota 54 –  Heidegger, pg… Seminário  de Thor

nota 55  – Zeljko Loparic, 1939, filósofo croata naturalizado brasileiro, é um dos maiores especialistas contemporâneos em Kant e Heidegger e se dedica a estudos de psicanálise, na vertente de D. Winicott

nota 56 – Loparic, pg 288, “Verdade e Respeito”

nota 57 – Wittgenstein, pg 281, “Tractatus”– é como termina-o

nota 58  – Fingermann, pg 12

nota 59 – Loparic, pg 289, “Verdade…”

nota 60 –  Lopairic cita Heidegger para quem a linguagem é uma Sage (gesta) e q a Sage é uma Zeige (dica). A etimologia não serve para provar nada mas para ajudar a pensar aquilo que é nomeado, mas q ainda não foi desdobrado”

nota 61 – Karl-Otto Apel, 1922, filosofo alemão, da 2ª geração da escola de Frankfurt com Habermas, desenvolveu uma teoria da linguagem, que ficou conhecida como semiótica filosófica transcendental, tendo em seus trabalhos aproximado o pensamento de Heidegger ao de Wittgenstein

nota 62 – Apel, pg 73, “Semiótica transc..”

nota 63 – Wittgenstein, pg 98 e 99, “Investigações”

nota 64 – e  o modo de expressão desse saber são as “psicopatologias”, em geral um mal arrazoado compêndio de  observações viciadas em seus modos de apreensão, por agentes e “cientistas” com pouquíssima vivência  nas ocupações de cuidados humanos

nota 65 –  Locke, pg…. ,” Sobre o entendimento humano”

nota 66 – Wittgenstein, pg 138-242 e 243-363, “Investigações”

nota 67 – a questão de por que usamos esses sons-signos “vermelho” e não outro, está fora da esfera desta discussão, pois se entraria em questões teóricas da linguagem, que não cabem aqui

nota 68 – Lispector, pg 25, “Aguaviva”

nota 69 – Descartes – Meditações sobre a Filosofia Primeira

nota 70 – nada contra a dimensão religiosa, mas que se dê o nome próprio a cada coisa

nota 71 – a ação pela qual se pretende  tornar algo –isso, aquilo – comum – o que era “um” se tornar “com”

nota 72 –  Apel,  pg 37, “Semiótica”

nota 73 – Heidegger, pg    , Ser e  Tempo

nota 74  –  “As Crises da Cs Européia” como uma reação a Ser e Tempo (que foi a ele dedicado),  de seu discípulo, assistente e amigo Heidegger

[nota 75  – Husserl, pg 89, “Crises…”

nota 76 – idem, pg 99, idem

nota 77 – idem, pg 103, idem

nota 78 – idem,  pg104, idem

nota 79 –  idem, pg 106, idem

nota 80 – Hans-Georg Gadamer, 1900 a 2002, filósofo alemão, discípulo de Heidegger, desenvolveu amplos estudos em hermenêutica filosófica

nota 81 –  o “senso comum” de Descartes

nota 82 – Gadamer, pg …. “Hegel,Husserl, Heidegger” 

nota 83 – Apel,  pg 72, “Semiótica…”  

nota 84 – forçando um pouco a língua portuguesa

nota 85 – ver Loparic  “Ética e Finitude” pg 19 e seguintes

nota 86 –  no sentido que lhe dá Gadamer e que será objeto de observações no capítulo sobre aspectos da filosofia clínica, a seguir, neste trabalho

nota 87 – gadamer, pg 313, “Verdade  e Método”

nota 88 – Heidegger, pgfo 10, “Ser e Tempo”

nota 89 –  Loparic, pg 307, “Verdade e Respeito”

nota 90 – na filosofia clínica o tratamento é orientado a partir do “assunto” que a pessoa traz. É dividido em “assunto imediato”, aquele primeiro, a queixa inicial e “assunto último” que poderia ser traduzido como “a questão da pessoa”,, aquilo que a move

nota 91 –  o esforço das pessoas – enfermeiros, familiares – na tarefa de imobilização, também pode ser uma tentativa de estabelecer linguagem

Os novos fazendeiros: nossas crianças

Hrant Dink foi um jornalista Armeniano assassinado na Turquia em 2007. Em uma entrevista concedida no mesmo ano de sua morte, Hrant, que durante sua vida lutou para que o genocídio armênio praticado pelos turcos fosse reconhecido, relatou uma história sobre seu avô, reproduzida abaixo.

    Antes de o genocídio começar, em 1915, o seu avô, que seria deportado junto com toda a família, permaneceu em sua fazenda até o último instante possível tentando consertar a máquina que faria a próxima colheita da safra. Seu filho, pai de Hrant, disse-lhe: “pai, nós não estaremos aqui para a colheita, seremos deportados. De que adianta consertar essa máquina?” O velho homem disse: “Eu tenho que… Outros fazendeiros chegarão e farão a colheita. Não podemos deixar a máquina quebrada. Eles precisarão dela.” De fato ele foi deportado e morto logo depois.  

   O exemplo acima nos conduz a uma breve reflexão: somos seres beneficiados pelo sacrifício de muitos que vieram antes de nós. Pessoas desconhecidas que em seus dias de silêncio e sem holofotes lutaram por nós, habitantes do tempo presente; pessoas que sabiam que não colheriam os frutos de seus atos. Alguns poucos se tornaram personalidades conhecidas por suas lutas éticas, como Gandhi, por exemplo; mas milhares de desconhecidos, no silêncio de suas vidas, também lutaram pelo legado das gerações futuras…

   Quando paramos para refletir acerca de nossas vidas individuais, por mais que nós insistamos, não saberemos se os anos que ficaram para trás foram melhores ou piores que os anos que virão pela frente. Cada novo dia pode trazer consigo, em suas dobras de tempo, surpresas e eventos que podem marcar nossas existências de modo maravilhoso ou trágico. No entanto, enquanto sociedade, quando olhamos com lucidez e crítica para nosso tempo, é difícil escapar de um sentimento de pessimismo. Penso que tal negativismo, dentre outros fatores, repousa substancialmente na percepção de que as relações humanas estão frágeis, desgastadas e a ponto de ruir; com as necessidades básicas satisfeitas, nossa época é o tempo da “espetacularização” e da superficialização dos afetos; da dissolução dos espaços públicos de debate; do narcisismo e do egocentrismo.

   Gostaria de ampliar o olhar sobre nosso tempo, trazendo à discussão o filósofo Hegel e sua dialética histórica.

A tradução literal de dialética significa “caminho entre as ideias”; através do diálogo e da argumentação capazes de distinguir claramente os conceitos definidos na discussão entre opostos, tese e antítese, carreadoras em si  de “partes da verdade”, exageros e distorções, chega-se a uma síntese que traz em si mais “partes da verdade” e menos exageros e distorções. Hegel nos traz a ideia de que a evolução da humanidade se dá de modo dialético.

Segundo Hegel, a dor e um novo olhar para a dor é o inicio da possibilidade do novo construído a partir de relações de superação. E a mensagem de esperança reside em uma espécie de confiança histórica da superação e construção do novo, cujas imperfeições serão contrapostas e engendrarão a síntese a partir de diálogos, reflexões, conflitos e construções, e assim por diante. O método dialético nos incita a revermos o passado à luz do que está acontecendo no presente, questionando-o em nome do futuro, em nome do que “ainda não é”. E se fizermos um breve exercício de reflexão, podemos conjecturar acerca de nosso tempo e do novo que, não sem dificuldade, tenta se insinuar.

    A partir da revolução industrial, e mais recentemente com a revolução tecnológica, o humano cada dia mais se torna um ser mecanizado e utilitarista, cuja razão instrumental reifica o outro humano, estabelecendo com o mesmo uma relação objetal. O outro é visto como um meio para fins próprios. E quando vemos movimentos de retorno a uma “humanização” perdida, estamos em uma relação de oposição dialética. Por exemplo, quando começamos a nos insurgir contra os abusos da ciência, que assumiu para si o papel de estabelecedora da verdade, estamos nesse processo. Um dia a ciência nos prometeu a felicidade, a paz e a harmonia entre as pessoas; mas quando fomos obrigados a assistir pessoas sendo transformadas em fumaça na 2ª guerra mundial, começamos a perceber que algo estava errado. E o problema não está na ciência em si, mas na mercantilização e desumanização que caminhou ao lado do progresso científico e tecnológico.

   Introduzirei agora em nossa discussão o chamado “nascimento humanizado”, uma espécie de movimento humanista contra os abusos provocados pela técnica no trabalho de parto e no nascimento das crianças. 

   Para muitas pessoas o parto é apenas o modo pelo qual a criança vem ao mundo, importando apenas o resultado final, ou seja, a criança no mundo. No entanto, refletindo sobre o fenômeno em si, facilmente chegaremos à percepção de que o parto, seja por via vaginal ou cirúrgica, é o ato (ação e sensação) através do qual uma vida se inaugura no real; é muito mais que apenas o nascimento de mais uma criança no mundo. O parto é o ato de amor e doação inaugural dos pais que conceberam essa criança. A criança, para esses pais, é como os novos fazendeiros que chegarão para cultivar a terra. No entanto, diferentemente da ética absoluta do senhor da fazenda, que prescindia do nome dos sujeitos da próxima geração, a criança é cria; carne da carne, sangue do sangue; vem do ventre, vem da terra; vínculo maior entre humanos não há. A ética se impõe (ou deveria) com robustez, instinto e força. Penso que atitude ética fundamental dos pais em relação aos filhos se dá no ato inaugural desse novo ser que vem ao mundo.

   Pois bem. Intuitivamente, como seres de natureza, não é difícil chegarmos à conclusão de que deve haver algum sentido natural, alguma importância fisiológica para a mãe e para o bebê no período de tempo denominado “trabalho de parto”. Mas para quem se mecanizou em demasia e prefere legitimar a ciência à natureza, ofereço-lhes então a própria ciência e seus inúmeros estudos que atestam os benefícios para mãe e filho que “entram” em “trabalho de parto”. Dito isso, torna-se difícil e um contrassenso qualquer argumento contrário a respeito da necessidade de se respeitar o tempo do parto; qualquer argumento contrário à importância de se “entrar” em trabalho de parto assume ares, para mim, de passionalidade histérica.

No entanto, em nosso país, o número de cirurgias abdominais agendadas para a extrusão do bebê sem que o mesmo tenha entrado em “trabalho de parto” é assustador. A criança, em sua fragilidade absoluta, é “arrancada” de seu meio natural e de seu estado de natureza, chegando ao mundo de modo abrupto, antecipado e artificializado. Os médicos, exercendo o poder, e os pais, por falta de informação e apoio e/ou por comodismo e/ou medo, são os agentes comumente envolvidos nesse ato de violência contra a criança que vem ao mundo privada de seu momento de transição entre a vida uterina e a vida fora do útero.Com exceção das situações onde a ciência é bem vinda e cuja intervenção prematura se faz necessária e pode salvar vidas, o parto é um ato humano, natural, visceral; negar essa passagem do tempo onde se põe em marcha uma cascata de eventos biológicos, tanto na mãe como na criança, é negar também a biologia a partir da qual a criança foi gerada. 

   A casuística individual não está em questão aqui; tampouco há espaço para um julgamento moral. O que trago aqui é uma reflexão ética radical em relação ao egocentrismo, comodismo, medo, mercantilismo e narcisismo imperante em nossa sociedade a ponto de não permitir nem mesmo que nossos filhos venham ao mundo no seu tempo.Trato aqui de uma cultura artificializada e mecanizada de vida que é capaz de vilipendiar até mesmo a chegada de nossos filhos. O que dizer então das relações entre as pessoas do presente? E o que dizer das relações com os desconhecidos das próximas gerações?  

     A condição maquinal dos seres humanos modernos pode parecer uma limitação, uma fraqueza da sociedade infantilizada, anestesiada e egocentrada. Na verdade, penso que tal condição agigantou-se e assumiu proporções ainda mais drásticas: tornou-se condição de sua sobrevivência. Joseph Conrad, em seu conto Anoutpostofprogress, de 1896: “O indivíduo contemporâneo é moldado pela sociedade até o mais íntimo de seu ser; poucos se dão conta de que sua vida, a própria essência de seu caráter, suas capacitações e ousadias não passam da expressão de sua crença na segurança do meio que os cerca. A coragem, o autocontrole, a confiança; as emoções e os princípios; todo grande pensamento e todo pensamento insignificante não pertencem ao individuo, mas à multidão; a multidão que acredita cegamente na força irresistível de suas instituições e de sua moral. É a grande marcha da humanidade anestesiada pelo mito do progresso. Mas o mito do progresso é poderoso, como uma prisão perpétua. E fora dessa prisão perpétua, o indivíduo não sabe o que fazer da própria liberdade, tamanho o medo e o pavor diante da percepção de que toda ideia de controle e segurança diante da existência não passa de ilusão. E por isso precisam da prisão que esfola sua intimidade e determina sua vida”. O individuo contemporâneo descrito por Conrad (atentem para a data em que foi publicado o conto: 1896) caminha, paulatinamente,para um estado de perda da autoimagem e da identidade; perdido e incapaz de entender a realidade que o cerca, é deformado e absorvido de modo irrefletido por essa realidade.É sujeito passivo, um personagem de si mesmo que vive de modo inautêntico e é levado pela “massa”. Voltando o olhar para nosso tempo, um tempo que ainda vive sob a égide do “mito do progresso”, e um tempo onde vicejam as grandes epidemias de depressão, ansiedade, suicídio, medicalização e drogadição, precisamos, enquanto sociedade, buscar uma espécie de “reorientação” diante da realidade que nos cerca.Caso contrário, continuaremos sendo absorvidos e deformados pela mesma.

   Uma última reflexão: também as crianças de nosso tempo, imersas na cultura da artificialidade desde o nascimento, estão cada dia mais medicadas e cometendo atos de violência e suicídio. E se tais dados não forem suficientes para ensejar uma reflexão mais demorada e profunda sobre a nossa cultura, nossos medos e nossas relações, a começar por nossos filhos, é melhor deixar a máquina para a colheita quebrada mesmo, pois tudo estará perdido.Hegel, que tentou estabelecer um esquema histórico que explicaria e anteveria os novos passos da humanidade, talvez não tenha contado com o absurdo de nossos tempos: em uma época com tantos recursos e facilidade de comunicação, viceja, ao invés do dialogo, a solidão e os ataques pessoais entre os adultos carentes, egocentrados e infantilizados.

Vacina para a passagem do tempo – Bergson e literatura

O ano de 2020 caminha para seus últimos meses. No entanto, o desfecho desse ano “caótico” (mais para uns que para outros, iluminando ainda mais o claro o abismo social que nos separa), não será simbolizado pelo natal e pelas festas de final de ano, mas sim por uma vacina. E para muitos, asensação um tantovaga e incômoda – de que o tempo está passando depressa demais e a existência se esvaindo como areia entre os dedos – ganhou contornos de desespero. E é sobre a percepção da passagem do tempo que os convido a uma reflexão a partir do pensador francês Bergson (1859-1941).

O filósofonos trouxe o conceito de que vivemos em dois mundos: o mundo externo, com o qual nos relacionamos através do instinto e da inteligência (que nos direcionam para o mundo da matéria) e o mundo interno, o qual acessamos através de nossa intuição.

   Quando acessamos nossa interioridade transcendemos a existência dura e concreta e fugimos da mensuração do relógio. Aceder à nossa interioridade significa escapar, ultrapassar a nós mesmos, criar, expandir nossa consciência e dilatar nossa existência enquanto essência. Esse tempo é inapreensível e perene porque nos modifica e nos transforma, deixando rastros eternos e não se consumindo em si mesmo.

O mundo material sensório-motor, ao contrário, em seu enquadramento cada dia mais utilitarista e instrumental, nos rouba facilmente a real percepção do que significa cada milagroso segundo de nossas existências. Bergson denominou “tempo de latência” o tempo decorrido entre um estímulo recebido e a resposta subsequente. E é nesse intervalo, quando ficamos com nós mesmos, que habitamos o nosso mundo interno e nossa originalidade. Um mundo onde as resistências e os disfarces são dissolvidos e onde refletimos,imaginamos, viajamos e criamos; um mundo onde nos aproximamos de uma transcendência possível e criadora e a partir do qual engendramos açõeshumanizadas. E nesse interlúdio entre o estímulo e a reação, o tempo caminha a lentos e (potencialmente) prazerosos passos. É no silêncio de nosso mundo interno que nos encaramos verdadeiramente no espelho e nos aproximamos de quem verdadeiramente somos. É nesse “espaço” que nossos potenciais latentes e quase infinitos pululam e anseiam por vir à tona até a superfície da existência. É através da reflexão, da meditação, da imaginação, da criação, da leitura, da musicalidade, do prazer estético que entramos em comunhão com o que se chama de divino, milagre da vida.

No entanto, basta um discreto olhar ao mundo que nos cerca para observarmos que nossas existências estão cada dia mais voltadas para o mundo externo. Trabalho, entretenimento, aparatos tecnológicos, aparências…. Nossasrespostas tornam-se condicionadas e automatizadas, desprovidas de exercícios intuitivos, afastando-nos sobremaneira de uma vida e de uma existência mais humana. Tornamo-nos seres mecanizados que seguem em rebanho em busca de “bens”, em nome da competitividade, da felicidade (comumente egoísta) e do “sucesso”. E nas poucas horas livres mergulhamos na tecnologia excessiva que nos cerca e nos consome. Agimos e interagimos na matéria e confundimos nosso eu-profundo com o eu-material utilitarista e hedonista. Padecemos da pior forma de escravidão: a escravidão que impomos a nós mesmos sob o signo de uma suposta liberdade.

E é por habitarmos tão pouco nosso mundo interno que sentimos o tempo esvair-se tão velozmente. Os dias sucedem-se uns aos outros em velocidade vertiginosa e fugaz.E quando paramos um pouco nossos afazeres para um olhar mais demorado e refletido, vem o susto: a semana já acabou, o mês já terminou, mais um ano se foi…

É fato inquestionável queos tempos, as velocidades e os valores mudaram. E precisamos nos adaptar e celebrar os avanços e conquistas da modernidade, evitando o saudosismo ingênuo, idealista e contraproducente de um (suposto) tempo mais feliz que não volta mais.Mas tampouco precisamos embarcar de modo irrefletido na onda subjetivista do antropocentrismo radical que valida a individualidade acima de tudo.A tecnologia deve vicejar a serviço de uma ética humanista e não como instrumento de controle e distorção da natureza humana. Aqui não cabe uma discussão maior a respeito do tema, mas eu gostaria de deixar umamatéria que me é muito cara para reflexão.

A literatura (em seu sentido mais amplo: uso estético da linguagem escrita) é uma forma de resistência, pois para ler precisamos “perder tempo”, desacelerar, repousar nossa mente em um lugar tranquilo e sereno, distante da agitação autofágica da modernidade tecnológica e egocêntrica. Quando lemos dilatamos nossa sensibilidade e nossa percepção de mundo e de existência; estimulamos nossa criatividade e nossa imaginação; ampliamos nosso vocabulário e nossa capacidade de articular ideias e palavras e de interagir com o mundo e com as pessoas através de uma linguagem mais sensível, elaborada, autêntica e marcante. Não à toa o nível de leitura de uma sociedade guarda relação direta com o grau de desenvolvimentoda mesma. Não à toa a triste situação de nosso país guarda relação direta com o fato de que, segundo recente estudo, mais de 70% da população brasileira não lê um único livro ao ano e nosso índice per capita é de 1,7 livro/ano…

   Entre tantos desejos, planos e metas para o ano e para o mundo “supostamente” pós-pandêmico que se nos insinua repleto de possibilidades, deixo essa singela e humilde mensagem: o tempo “corre” depressa porque nós fazemos nossas horas de vida “correrem” descoladas do que realmente importa e resiste ao tempo. E cabe a cada um de nós, dentro de nosso âmago e de nosso silêncio íntimo(ainda inalienável), refletirmos sobre nossas existências e sobre nossos passos para os dias que virão, com ou sem vacina.