2 textos: “Desconstrução” e “Filosofia Clínica: Terapia como espaço criativo”

                                                    Tatiana Borges Carvalho*

      Desconstrução                              

Primeiramente gostaria de agradecer a todos por dispenderem um pouco de seu tempo nesta leitura. Na realidade gosto de pensar que estamos juntos, em um gostoso bate papo, em que ideias fluem e experiências são trocadas.

Irei compartilhar um pouco mais de minhas vivências como Filósofa Clínica no acolhimento de partilhantes. Em meus textos, busco me distanciar um pouco de terminologias acadêmicas ou nomenclaturas da Filosofia Clínica e assim me aproximar de outros universos e realidades.

Diversos são os motivos pelos quais uma pessoa busca pela terapia, mas hoje gostaria de falar um pouco sobre os aspectos negativos das convenções sociais e como elas podem afetar nosso desenvolvimento.

Nascemos e a partir deste momento nos tornamos parte da sociedade. Somos educados por nossos pais, familiares, escola, etc. Somos fragmentos de valores e crenças que não partiram de nossas próprias escolhas.  Para algumas pessoas está tudo certo! Não há incômodos, inquietações ou buscas e elas devem ser respeitadas.  Porém para outras é completamente diferente. Essas pessoas sentem-se incomodadas e decididas a mudar algo, mas nem sempre sabem por onde começar,gerando uma grande crise existencial.

Durante o caminhar terapêutico, após termos realizados todos os procedimentos necessários, sempre com muito amor e ética, o(a) partilhante vai ganhando confiança em si mesmo(a). Aprende a se auto acolher, cuidar de si e ter domínio sobre sua vida, sem ser afetado(a) diretamente pelo meio social. Desenvolve formas de lidar em situações mais complexas com seus próprios modos.  As convenções sociais e imposições são descontruídas para que novas construções sejam erguidas.

Irei compartilhar duas experiências clínicas para refletirmos juntos.

Maria (nome fictício) – 30 anos

Criada em uma família tradicional católica, em que sempre foi dito que ela nunca poderia discordar dos pais. Qualquer manifestação de pensamento pessoal ou questionamento eram motivos para apanhar ou ficar de castigo. O pensar e questionar não faziam parte de sua educação, somente obedecer.  Ela cresceu, casou e teve uma filha. Porém a criança é extremamente questionadora, envolta a tecnologias etc. Maria vem para a clínica com certo desespero sobre como ter uma relação mais amorosa e compreensiva com sua filha. No caso dela, após profunda análise, foi totalmente necessária a desconstrução dos antigos valores e crenças. A primeira desconstrução foi mostrar que ela poderia falar sobre seus pais sem ser julgada ou repreendida (neste momento, a partilhante inclusive diminuía o tom de voz, sempre que iria contar sobre seus pais, como se eles pudessem ouvi-la). Também foi importante descontruir a ideia de que falar sobre os pais na terapia não significava falta de amor ou falta de respeito.

Valquíria (nome fictício) – 18 anos

Criada em uma família mais liberal, com pensamentos livres, sem convenções sociais. A família tinha seus próprios modos e pensamentos (filha de um artista plástico e uma filósofa). Valquíria podia escolher a cor de seus cabelos, colocar piercings, ter tatuagens, ou seja, sua estética não seguia os padrões convencionais. Seus pais sempre diziam: “Seja sempre você mesma, não mude para agradar alguém ou para se enquadrar socialmente”. 

Viviam muito bem financeiramente, porém por motivos de doença, houve uma grande mudança e Valquíria se viu diante de outra realidade. Bem, agora Valquíria estaria diante de umas das decisões mais difíceis de sua vida. Ela busca por um emprego e o encontra, porém no momento da entrevista é imposta a seguinte condição: Valquíria gostamos muito do seu desempenho no processo seletivo, porém para que possamos te contratar você terá que mudar a cor de seus cabelos e retirar os piercings. Quanto as tatuagens, como ficarão cobertas não há problemas.

Ela retorna para sua casa extremamente triste, sentindo-se violentada… parecia que estava sem ar, precisava falar com alguém… em um momento de desespero comenta sobre o acontecido e como estava se sentindo com uma conhecida e recebe a seguinte resposta: Mas Valquíria, é somente um cabelo e um piercing, não é nada demais!!!!!!! Neste momento um sentimento de solidão profunda invade o ser de Valquíria. Ela aceita as condições de trabalho por necessidade, mas é existencialmente destruída. Não era apenas uma cor de cabelo e um piercing. Era sua vida, sua existência, seus valores e crenças mais preciosos. Tudo isso era comunicado através de sua estética, não era apenas uma modinha, um embalo. Foram 10 anos de desconforto interior, perda de si e busca por seu lugar existencial. Na terapia ela pode trazer essas questões e se reencontrar de uma forma linda!

Penso que seja importante compartilhar vivências. Quanto podemos aprender… Através delas temos a oportunidade de refletirmos sobre nós mesmos, sobre os outros, sobre como podemos acolher e respeitar as singularidades.

Talvez uma das grandes belezas da vida seja sermos quem realmente desejamos SER!!! A Filosofia Clínica é umas das possibilidades que podem contribuir nesta desconstrução/construção de si.

   

FILOSOFIA CLÍNICA – Terapia como espaço criativo

Certamente muitos de nós já ouvimos comentários do tipo: Terapia para quê? Terapia é para quem tem algum problema. Em alguns casos as adjetivações são mais extremas…

Em Filosofia Clínica os rótulos são desconsiderados em respeito ao partilhante. Uma pessoa não deve ser definida por algum tipo de diagnóstico. O ser está para além de rótulos e diagnósticos.

Gostaria de convidá-los a refletirmos juntos sobre as colocações acima.

Permitam-me compartilhar de forma mais resumida duas belas partilhas ocorridas durante alguns encontros terapêuticos. São trechos resumidos de encontros com dois partilhantes: Denise e Pedro (nomes fictícios).

Denise

Denise foi casada por 20 anos e sempre teve sua própria renda (dividida entre a aposentadoria e, vez por outra, artesanato), quando casada, os custos fixos da casa ficavam por conta de seu companheiro. Após a separação ela se viu sozinha, tendo que retornar a residir em um local indesejado que trazia lembranças não muito positivas de sua infância, mas não havia escolha, por ora seria o melhor a ser feito. A partir deste momento, a relação com seus filhos, amigos e familiares sofrerá mudanças. Dentre todas as mudanças, a forma de lidar com uma em especial será determinante em suas novas escolhas, buscas, objetivos, modos de ser e lidar com situações. Agora ela contava apenas com sua aposentadoria, precisava ter outra fonte de renda e assim ter mais tranquilidade. Neste período de inversão a partilhante é deslocada de seu atual lugar existencial e alguns pensamentos e sentimentos vem à tona como: “será que eu ainda amo ele? Se eu estivesse com ele não estaria passando por isso! Todos os nossos amigos comentam, até plano de saúde eu tinha!” Ela é tomada por um sentimento de incapacidade total. Como estamos juntas nessa caminhada há um longo tempo e temos muitos princípios de verdade que contribuem positivamente na terapia e, com base na historicidade desta partilhante, senti que possivelmente ela não estava arrependida de ter se separado ou que ainda amava o ex companheiro, mas que se sentia dependente financeiramente dele e a partir de agora teria que encarar este novo momento. Fomos dialogando, caminhando e o melhor para ela acontece: Denise passa a entender e sente que estava com medo de encarar a sua própria existência (nova), existir por ela e para ela, com seus modos, olhares, entendimentos, valores…. Busquei em sua história a lembrança do crochê, de como ela dizia ser algo prazeroso e tranquilizador. Ela dizia que a cada ponto esquecia dos problemas, não sentia o tempo passar… a lembrança se tornou viva e então surge a possibilidade do crochê como a renda extra que tanto buscava! Trouxe este trecho da historicidade desta partilhante para pensarmos juntos sobre como a terapia pode ser um lugar de possibilidades criativas!!!! Ela está feliz, realizada, segura, em paz consigo e nas relações.

Nem sempre a busca pela terapia terá um assunto imediato, algum tipo de problema psíquico ou psicológico. Alguns buscam a terapia para partilhar suas ideias ou ter ideias, criações, alegrias, tristezas, conquistas ou apenas para bater um bom papo. A terapia é um lugar em que cada pessoa pode se expressar sem ser julgada. Na metodologia proposta pela Filosofia Clínica aprendemos a suspender os juízos diante de nossos partilhantes. A escuta deverá ser pautada pelo respeito à singularidade de cada ser, acolhimento amoroso e ético. Este processo de troca entre o filósofo clínico e partilhante pode ser profundamente construtivo para ambos. Importante lembrar que as formas que buscamos para auxiliar nesta construção sempre é baseada na historicidade. A forma que a clínica será conduzida dependerá desta singularidade. Assim, foi identificado em Denise que utilizar a produção do crochê para venda seria importante não só pelo aspecto material, mas também subjetivo e existencial.

Pedro

Pedro era um   jovem que sonhava em ser um grande artista, mas que se via obrigado a trabalhar de forma convencional por motivos familiares. À medida que os encontros foram acontecendo ele teve uma lembrança de quando era jovem e havia ganho um concurso de desenho. A terapia foi extremamente importante na reconstrução de seus processos criativos e consequentemente existenciais. A cada partilha finalizada ele se sentia inspirado em escrever mais e mais… e o desejo de viver como artista foi tomando conta de seu ser ao ponto de começar a criar planos para que esse sonho fosse realizado.

Caros leitores, através das partilhas acima observamos que a terapia pode ser um lugar de transformação interior e possibilidade criativa. Faz-se necessário educarmos nossos pensamentos, desconstruirmos certos conceitos sociais que impeçam ou reduzam as possibilidades de conhecer a si mesmo e sermos quem desejamos ser!

A Filosofia Clínica está aberta a todos que desejam passar por esta bela vivência interior!!!

                                                                                               Tatiana Borges Carvalho