Poetofilosofia*

Da antiguidade até o presente, a história das filosofias e das literaturas em geral estão cheias de pensadores-poetas. Desde os pré-socráticos gregos, que eram filósofos-poetas, até Frederico Nietzsche e Gaston Bachelard, em cujas obras se mesclam voos filosóficos plenos de uma literatura acenando claramente para a poesia. Foram autores de uma prosa poética extraordinária.
A mundivisão filosófica não admite fronteiras rígidas e separadas nas áreas do conhecimento. Razão por que está sempre apontando para um “não-se-sabe-o-quê”, que poderá ser atingido poeticamente.
Como saber dialogante, em todos os povos que a cultivam, desde os primórdios de sua tomada de consciência como razão, a Filosofia se encontra tangencialmente com a Poese. Está em constante diálogo com a literatura. Enquanto atividades culturais podemos afirmar que, embora distintas, são inseparáveis. Consequentemente, Filosofia e poesia, que não se confundem nem são complementares, sempre se reencontram na história do pensamento. Diversas, mas dialogantes; enquanto participam da literatura, surgem nas literaturas das diversas culturas. A Poesia, por ter sido cronologicamente a primeira forma de pensamento, nos mitos e cosmogonias; a Filosofia, mais tardiamente, como logos, discurso conceitual e explicativo, surge como interpretação e crítica das mitologias, mas sem tomar o lugar da Poese. E é precisamente no campo da literatura dos povos cultivadores da escrita que elas dialogam, através dos seus pensadores, sobretudo aqueles que se dedicam à ficção literária, no romance, através da prosa. Inclusive, como dado literário inegável, torna-se difícil separar, na maioria dos autores, prosa e poesia. São escritores que escrevem fazendo uso de uma prosa poética.
Quanto à tematização da relação entre Filosofia, Literatura e Poesia podemos rastrear e vislumbrar isto desde o pensamento dos gregos, em Platão e Aristóteles, passando pelos renascentistas, pós-renascentistas, como Giambattista Vico, até os escritores modernos de meados do século XX, a exemplo de Bachelard, Michel Foucault, Blanchot, Heidegger, Sartre, Deleuze; sem esquecer György Lukács, grande especialista em Literatura e Filosofia da Arte. De modo que, mesmo não tendo escrito poemas, todos tiveram a literatura como temática de suas reflexões.
Enfim, na grande maioria dos melhores escritores, principalmente romancistas, torna-se impossível separar prosa e poesia. Alguns que não se dizem poetas, entretanto, escrevem como poetas. Fazem uso de uma prosa poética, pela forma e o recurso das metáforas e imagens com que se instrumentalizam para expressar a sua relação com o mundo da vida. Tais escritores, evidentemente, pensam o mundo mediante a sua produção literária.
Para mim os melhores escritores são especialmente aqueles que possuem esta característica de escritores-poetas; mesmo que não recorram às formas específicas do gênero poético tradicionalmente conhecido, como sonetos, paralelismos, estrofes e rimas. Aqueles que mais atingem e expressam a humanidade. Certamente porque compreendem e intuem que a vida é muito complexa e enigmática para ser comunicada e pensada apenas mediante conceitos. Mais ainda, por outra razão que considero princípio epistemológico: por perceberem que o sujeito humano, em sua condição existencial de sujeito cognoscente, não o faz de modo compartimentado. Pois é um sujeito que indaga, pergunta, busca, duvida, investiga, percebe, não somente através do raciocínio técnico, lógico-dedutivo, mas movido pelo desejo, como corpo que se apercebe em contínua tomada de consciência; como totalidade de sentimentos e sensações. Como sujeito que sofre, alegra-se, projeta, se entristece, imagina, cria e toma consciência de sua finitude enquanto parte de um cosmos virtualmente infinito que não se deixa apreender em sua totalidade inacabada. Sujeito que faz a experiência da complexidade da vida enquanto exprimível/inexprimível, enquanto dialética de sentido/não sentido; mediante a atitude poético-filosófica enquanto fronteiras intercomunicantes que detectam a própria experiência da incomunicabilidade: a perplexidade face ao desconhecido e imprevisível que é a vida.
Pensadores que dialogam com as diversas fronteiras do conhecimento filosófico-literário são produtores de uma poetofilosofia; uma poesia pensante. Sem a pretensão de eliminar a necessária distinção entre o filosófico e o poético, Filosofia e Poesia.Saberes diferentes, sim, mas dialogantes, enquanto formas de literatura.
É no campo da literatura que elas dialogam, porque toda forma de saber sempre supõe fronteiras, ao se deparar com seus limites. Ao mesmo tempo, é necessário que tais fronteiras não se fechem. Isto não é uma mera questão de metodologia, mas uma necessidade que brota do desejo humano de indagação e busca de respostas que possibilitem melhor fruição dos momentos da vida. A Filosofia enquanto esforço explicativo, conceitual, como sapiência “onisciente”, argumentativo; a Poesia como “omnissentiencia”, (uma forma de sentir tudo); admiração contemplativa, indeterminabilidade. O poema é canto, por ser ritmo e rima; convoca-nos ao silêncio; mas também nos move à ação-reflexão. Enfim, ambas são saberes. Poesia não é puro sentimento, imaginação ou delírio; pois encerra uma forma de percepção, ao pretender pronunciar o mundo numa outra perspectiva de saber – a perspectiva estética.Por isso se torna pensante. A poesia é memória; um tipo de memória que pode recuperar até mesmo aquilo que a nossa mente julgava perdido. Isto encontra-se na raiz da história do pensamento. E a ponte entre ambos se efetua pelo diálogo. Um diálogo entre pensador e poeta, filósofo e poeta, dirigido pelo pensamento, originando um pensar poético.Num mesmo pensador ou entre vários, naturalmente.
*Marcelo B. Oliveira – in Poetofilosofia/2015

Filosofia Clínica, Auto-ajuda* e cuidado de si

Tem-me incomodado as constantes referências que ouço fazerem ou que eu mesmo faço à expressão auto-ajuda por aí afora. Por isso fui ao dicionário** buscar referência aos termos “autoajuda” (nos dicionários pós-acordo ortográfico já é grafado assim) e “ajuda”.
Autoajuda
substantivo feminino
1 prática que consiste em fazer uso dos próprios recursos mentais e morais para alcançar objetivos de ordem prática ou resolver dificuldades de âmbito psicológico
2 conjunto de informações, orientações, conselhos que visam possibilitar essa prática
Exs.: curso de a.
livro de a.
Ajuda
substantivo feminino
ação de auxiliar, de socorrer; assistência
Desse modo, se ajuda é essa tal de “ação de auxiliar, de socorrer; assistência” e autoajuda é “fazer uso dos próprios recursos mentais e morais para alcançar objetivos ou resolver dificuldades”, por que, então, as psicoterapias e a Filosofia Clínica não poderiam fazer uso desse termo, sendo que têm por objetivo ajudar as pessoas que procuram a terapia a auto-ajudarem-se elas mesmas, no enfrentamento das questões que trazem para a clínica?
Está certo que, talvez principalmente após a explosão e a exploração de inúmeras publicações, bem como a proliferação de cursos e “terapias” que vendem auto-ajuda, o termo passou a ser visto, por muitos, pejorativamente. E até concordo que determinadas ofertas do que se apresenta como tal devam ser questionadas, mesmo porque o mercado capitalista usa de toda e qualquer artimanha para lucrar, mesmo diante da dor e do sofrimento, da angústia e da tristeza das pessoas, da sociedade como um todo. E daí aquela derivação que muitos também usamos de “autor-ajuda”, dado o lucro que o mercado editorial e certos autores têm com esse tipo de produto.
Bem, mas meu incômodo, como disse no início, não é de nos apropriarmos do termo auto-ajuda, mas sim de o ressignificarmos, dando-lhe a direção apontada pelo dicionário. Através de nosso trabalho como terapeutas, como Filósofos Clínicos, deveríamos enfatizar que a terapia objetiva levar as pessoas a auto-ajudarem-se, a serem elas mesmas condutoras de suas vidas naquilo que o pensador francês, Michel Foulcault***, em sua obra Hermenêutica do Sujeito, ressaltou como o cuidado de si.
Nessa obra, o autor busca resgatar das tradições e das escolas filosóficas da Grécia antiga, como a epicurista, a estoica, a cínica****, por exemplo, o cuidado de si, que, para ele, ficou subjugado ao conhecimento de si. O conhece-te a si mesmo não pode sobrepor-se ao cuide-se de si mesmo. O cuidado de si é caminho para o auto-conhecimento e este auto-conhecimento só faz sentido se levar ao cuidado de si.
Faço uso aqui das palavras do Psicólogo Clínico Rafael Trindade: “a intenção de quem cuida de si é fazer emergir uma outra natureza, própria, não dada, e, portanto, originariamente ainda não conhecida”; “o cuidado de si conduz a um novo eu, uma nova relação consigo mesmo. Passamos da verticalidade para a horizontalidade”; “Cuida de ti mesmo, para ser capaz de enunciar de ti mesmo a verdade”.*****
Ao menos para mim, entendo que ninguém consegue ajudar-se sozinho: é na relação com os outros e através da intermediação dos outros que vamos nos auto-ajudando, nos auto-cuidando e nos auto-conhecendo. E, sempre em meu entendimento, a terapia filosófica tem essa grande responsabilidade como intermediadora, aquela que vai oferecer meios, sempre de acordo com a história de vida e o modo de pensar e ser da pessoa, para que ela mesma se auto-ajude, se auto-cuide, se auto-conheça e construa seus caminhos, busque e teça as suas verdades e as coloque diante de tantas outras verdades, com autonomia e abertura para a necessária relação e convivência consigo mesmo e com a coletividade.
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*Embora o novo acordo ortográfico estabeleça que a grafia correta, de então em diante, seja “autoajuda”, quis aplicar o uso anterior ao tal acordo, “auto-ajuda”, nesse caso, tão somente por uma razão estética de minha parte, por achar que fica mais bonito esse modo de grafar o termo no português brasileiro usado até então. Nem sempre precisamos nos submeter aos estrangeirismos, seja de Portugal, seja de onde for…
** Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 2009.3
***Filósofo francês (1926-1984)
****Epicurismo: doutrina do filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.); Estoicismo: doutrina fundada por Zenão de Cício (Grécia – 335-264 a.C.); Cinismo, doutrina fundada por Antístenes, filósofo grego (Grécia – 445-365 a.C.): embora cada uma com doutrina própria, todas praticavam a filosofia como um “estilo de vida”, como uma ética, um modo de pensar e ser diante do mundo. OBS.: Escola Cínica – não confundir com o termo “cínico” e a prática “cínica” corrupta e fascista que sempre marcaram e marcam determinadas políticas, determinados governos e determinados comportamentos individuais/sociais de outrora e de nossos dias.
*****Artigo “Foulcault – Conhecimento e cuidado de si”, in https://razaoinadequada.com/2016/11/27/foucault-conhecimento-e-cuidado-de-si/
Paulo R.Grandisolli

Filosofia Clínica e Literatura

Uma das fontes de conhecimento daquilo que se convencionou chamar “condição humana” é a literatura. E a Filosofia, sendo também uma literatura, está, desde seu início, buscando “dizer” a condição humana de seu jeito próprio. Mas não existe “a” Filosofia. Ela, a Filosofia, é vária. Enquanto conceito, podemos dizer que “a” Filosofia é aquela que, buscando uma leitura e tendo um olhar totalizante do mundo, vai fundo, às raízes das questões que se lhe colocam e entende tudo como um processo constante de desconstrução/construção de saberes, de modos de ser e estar no mundo”, utilizando-se, para isso, de método próprio. Mas assim como são várias as filosofias, várias são as literaturas, as leituras, os olhares, os modos de ser e estar no mundo.
E a Filosofia Clínica-FC não foge desses caminhos, pois também ela tem se tornado uma literatura, uma leitura, um olhar, um modo de ser e estar no mundo, na medida em que se constrói, não se dá por acabada. Se assim fosse, não seria Filosofia, não seria Clínica. Tudo é um processo.
Mas, justamente por ser Filosofia, justamente por ser Clínica, é que a FC sabe-se parte de um conjunto onde, nesse caso, a Literatura, ou melhor, as Literaturas, têm muito a dizer da “condição humana” e, por isso, a aproximação é vital, pois pode nos levar a repensar, a entender e levar a entender que o “devir”* acaba por tornar-se a própria “condição humana”, i. é, o humano, individual e coletivamente falando, é uma constante construção, processo. “Navegar é preciso, viver não é preciso”, como já diziam os antigos navegadores nos idos tempos das “invasões e conquistas” de “novos mundos”, frase que celebrizou-se na voz e na literatura de Fernando Pessoa**.
E já que falamos de FC e Literatura, aqui fazemos uso de um texto, parte da literatura de Gilles Deleuze***, de sua obra Crítica e Clínica****, “A literatura e a vida”, onde ele discorre sobre a literatura enquanto devir, enquanto permanente vir-a-ser, porque o escritor e sua literatura, por mais capazes que sejam, nunca terão dito tudo, nunca serão o que pretendem, sempre estarão e serão inacabados, assim como a vida.
No referido texto, fazendo uma abordagem das doenças, das neuroses do existir, Deleuze aponta o escritor e sua literatura como aquele que “interrompe o processo da doença”: “Por isso o escritor, enquanto tal, não é doente, mas antes médico, médico de si próprio. O mundo é o conjunto dos sintomas cuja doença se confunde com o homem. A literatura aparece, então, como um empreendimento de saúde: não que o escritor tenha, forçosamente, uma saúde de ferro (…). Do que viu e ouviu o escritor regressa com os olhos vermelhos, com os tímpanos perfurados. Qual saúde bastaria para libertar a vida em toda parte onde esteja aprisionada pelo homem e no homem, pelos organismos e gêneros, e no interior dele?”
Embora em FC não façamos uso de termos como doença, cura – o que não significa que não devamos abordá-los e desconstruí-los no contexto maior das historicidades diante das quais nos colocamos como Filósofos Clínicos, pensamos que essa concepção do escritor e da literatura apresentada por Deleuze se aproxima muito da FC. Enquanto concepção e prática filosófica, essa abordagem terapêutica existencial, constrói-se como aquela que ouve a narrativa, “ouve o texto” do partilhante e, fazendo uso da literatura filosófica, bem como de outras literaturas, mas, principalmente com sensibilidade, com cuidado, com conhecimento, com método próprio, irá contribuir para que o indivíduo, o grupo, a organização, “reescrevam seus próprios textos”, i. é, reelaborem seus modos de sentir, de pensar, de posicionar-se, de ser e de estar no mundo.
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*Devir: verbo intransitivo :1vir a ser; tornar-se, transformar-se, devenir; substantivo masculino Rubrica: filosofia. 2 fluxo permanente, movimento ininterrupto, atuante como uma lei geral do universo, que dissolve, cria e transforma todas as realidades existentes; devenir, vir a ser. – Dicionário eletônico Houais 2009.3
**Escritor e poeta português, 1888-1935.
***Filósofo francês, 1925-1955
****Editora 34, 2011, p. 11-17
Paulo Roberto Grandisolli
[FClínica/Inst Packter; Filosofia/UCMG; GSS-FSP/USP] filósofo clínico, professor, administrador serv saúde, consultor

A condição do filósofo: uma paráfrase sobre Nicolaus Berdiaeff

Marcelo B. Oliveira **

I – Considerações Históricas

Em todas as épocas e civilizações em que se acentuou o cultivo específico do conhecimento, a condição do pensador apresentou-se um tanto trágica. Eis a observação do filósofo Berdiaeff, ao analisar o confronto entre a filosofia, a religião e as ciências, ao longo da história1.

O filósofo, de modo geral, nunca foi bem aceito socialmente, ao menos que se tenha conformado ao sistema ideológico dominante, renunciando à sua condição de pensador. Sua condição essencial tem sido marcada por uma atmosfera bastante densa de ataques, ora vindos do poder político do Estado, ora das elites religiosas, uma vez que esses segmentos, invariavelmente, são os promotores das instâncias de controle social.

Nos primeiros tempos de estruturação das filosofias ocidentais, entre os gregos, por exemplo, a inimiga da filosofia fora principalmente a religião. Não esquecendo, evidentemente, o fato de que esta se encontrava aliada aos poderes políticos sustentadores das normas de comportamentos aceitas como ideais, naquele contexto.

Esse confronto se prolongou até nossos dias, lembrando que tem sido acirrado, num outro aspecto, pela corrida das ciências empíricas, ao reivindicarem seu status próprio, “desligando-se” daquela que lhes dera origem – a própria Filosofia.

Com bastante lógica este último evento se fez necessário. Disto nós somos conscientes, hoje; mesmo vendo como parecem interesseiros o distanciamento e a separação entre a Filosofia e as ciências particulares, em última instância.

Sabemos que o conhecimento filosófico foi, primordialmente, o saber que englobava em sua competência todas as áreas do conhecimento. Porém, a progressiva consciência da identidade de seus métodos e a delimitação desses campos cognitivos os tornaram independentes, possibilitando o surgimento das diversas ciências, que exigiram, por sua vez, sua relativa autonomia. A Filosofia, desde então, pressionada pelos estreitos e vigiados corredores das instituições religiosas, desde o período do teocentrismo medieval e inícios da modernidade, foi apelidada como a “serva da teologia”; embora, em parte, haja acontecido o contrário; pois a teologia é que se submeteu às categorias filosóficas, para se legitimar. De saber totalizador que havia sido, no edifício da sabedoria antiga, passou à posição de especulação de segundo plano. Oprimida, aparentemente inútil e sob acusação de atividade diletante, face aos avanços das ciências empíricas, o certo é que a Filosofia sempre esteve presente na própria lógica dos demais universos do saber, principalmente na pessoa do filósofo, que questiona os próprios valores e possibilidades da ciência e da cultura em geral.

No auge da cultura aristocrática da Grécia, a conduta do filósofo era vigiada, ameaçada, temível, por ser alguém capaz de expressar racionalmente a sua desconfiança relativamente às instituições político-religiosas e a colocar em xeque tudo que se apresentava com ar de certeza inabalável. Não é sem motivo que vemos a casa de Pitágoras incendiada, Sócrates condenado a beber cicuta; Aristóteles, Ockam, Leibniz, Hume, Locke e Marx, em apuros terríveis, por terem inquietado as oligarquias de seu tempo. Assim como contemporâneos nossos, ainda hoje exilados e ameaçados pelos anátemas da autossuficiência do Estado e das Igrejas, desde a “Santa Sé” ao “Santa Fé”2. Porque enxergaram outras nuances da verdade e não se limitaram à estreiteza dos horizontes das convenções políticas vigentes. Melhor dizendo, porque questionaram o poder. Enquanto isto, percebemos, por outro lado, pensadores muito bem instalados, como Comte, Hegel, apoiados pelas hierarquias do Estado, sem tanta perseguição, Por que? A resposta soa fácil. Eles não incomodaram muito as elites.

O filósofo sempre teve um caminho estreito e espinhoso a comprimir a largueza de sue passos. De um lado, comprimido pela ciência; de outro, pela religião e pelo Estado. Como constatou Berdiaeff, “a Filosofia é a parte menos defendida da cultura… Não goza, em nenhum grau, do que se chama o prestígio da popularidade”3. Até mesmo alguns pensadores a usaram como instrumento para a destruição do próprio filosofar, como foi o caso de August Comte, tendo contraditoriamente desembocado noutra filosofia e, o que foi muito pior, numa espécie de religião da ciência.

A maneira como as sociedades tratam os pensadores nos dá a sensação de que não temos nenhuma incumbência social. Sobram ao filósofo apenas os estreitos e vigiados corredores de algumas faculdades. E “a própria universidade não lhe dá asilo senão na condição de que divulgue o menos possível a sua própria filosofia, e de que se encerre geralmente na história da filosofia e nas doutrinas dos outros filósofos”4. Tal foi a crítica empreendida, há poucas décadas, aos filósofos do século XX, por Gabriel Marcel e Berdiaeff, e que ainda não perdeu totalmente a sua atualidade.

Este estreitamento de espaço geográfico-político, mais sombra que reflexo da ausência de espaço de liberdade, dificulta o cultivo da filosofia como atividade especificamente reconhecida.

A história nos mostra que o ataque mais violento suportado pela Filosofia adveio-lhe da religião, desde a antiguidade. O assassinato de Sócrates constituiu o símbolo de muitos similares e um exemplo terrível da crueldade que integra o poder das elites de todos os tempos. Não deve ser visto apenas como um fato isolado no mundo grego. Em “A Apologia de Sócrates”, encontramos a acusação de que o pensador ensinava a rejeição dos deuses. Na realidade, ele apontava as defasagens e o ocaso da cultura aristocrática em decadência; pois sabemos que, na Grécia antiga, política e religião estavam a serviço do poder, assim como no mundo romano dos primeiros séculos da era cristã.

Em fins da era medieval europeia, no contexto da cristandade ocidental, surgiu a incandescência das fogueiras da Inquisição (cujos resquícios duram até hoje) queimando filósofos e cientistas, só porque não pensavam como os prepotentes da hierarquia político-religiosa da época. Neste contexto ideológico, identificava-se uma estrutura histórica com a Verdade, por falta de consciência histórica e porque o ânimo dos primeiros cristãos havia arrefecido, desde as sutis manobras de Constantino e Teodósio, que fizeram o clero romano curvar-se diante de ofertas econômicas, quais adoradores de Baal. E o Cristianismo, de religião que trouxe a lume a consciência da dignidade dos seres humanos, fora transformado em “religião lícita”. Em lugar do aforismo “a fé busca a razão” passou a valer “a fé mata a razão”. Desde então, a humanidade passou a praticar uma verdadeira coivara de homens e mulheres inteligentes, como Hipácia de Alexandria, Giordano Bruno, Savonarola, Joana D’Arc, ardendo nas grelhas do “Santo Ofício” e sob tortura militar, pelo preço de suas descobertas e da liberdade de pensamento, frente aos dogmatismos morais erigidos nos palácios. À parte o contexto moderno que assassinou Rosa Luxemburgo, Trotski, Politzer e outros. Como não existe mais a prática da fogueira, os atuais inquisidores usam a tortura psicológica da punição com o desemprego e o silêncio forçado5.

II – Nossa Epocalidade

Nestes inícios do século XXI, não sejamos ingênuos em demasia para pensar ter havido evolução linear na história do pensamento humano, concebida vulgarmente em termos de “história universal”, como se fosse algo homogêneo. A violência atribuída ao mundo antigo perdura nas sociedades contemporâneas. Se não de modo idêntico, mas disfarçada ou em outras modalidades, dependendo da classe dominante que exerce o controle social máximo como classe dirigente; seja o clero, no caso das religiões, sejam os militares, ou ambos, em caso de teocracias ou concordância de interesses de ambas as facções. Por menos que pareça verdade, mas ainda vigora o imperialismo religioso e militar. Inclusive, muito semelhante ao de Roma antiga. Basta que observemos as nossas ruas invadidas pela cavalaria, em plena metrópole; o que é exatamente a herança da violência policial daquela babilônia. Vivemos em plena época de grito em defesa dos direitos humanos, que se acirrou desde 1970. Entretanto, assistimos a sanções e censuras ao pensamento científico-filosófico, da parte dos escombros das ditaduras militares, fazendo ressurgir práticas fascistas. O inacreditável é fato constatável: a humanidade ainda não se libertou do “index librorum prohibitorum”, apesar do acesso às tecnologias da internet! A censura midiática é usada pra dificultar o pensamento reflexivo. Atualmente, com ênfase na educação, pela censura ao ensino de filosofia e sociologia, como ocorre em todos os regimes políticos autoritários. As elites se acham no poder majestático de dizer o que o povo deve ou não deve saber. A produção cultural é tratada como caso de polícia. Pensar e agir além dos sistemas funcionalistas e dos padrões da ideologia capitalista ocidental é arriscar-se. Começar novas formas de relacionamento afetivo, além da monogamia jurídica ocidental, é considerado desvio, desequilíbrio ou patologia; apesar de todos os esforços e conquistas recentes no campo das lutas pela diversidade cultural. Misoginia e homofobia aparecem como integrantes ideológicos dos regimes e golpes juridicofascistas atuais, internacionalmente. No Brasil, em pleno 2017, vemos o MEC permitindo que parlamentares fundamentalistas autorizem arrancar dos livros didáticos as páginas referentes à discussão sobre questões de gênero e sexualidade, sob o pretexto ilegal e absurdo de uma “escola sem partido”, nomeado como neutralidade; uma versão vulgar do pior positivismo fascista, proposto por setores religiosos que rejeitam a laicidade do Estado.

Nesse contexto encontra-se comprimida a Filosofia. Banida, cassada e caçada (em ambos os sentidos), sob a acusação de subverter as pessoas em relação ao dogmatismo político e religioso. E o pretexto para tal é, de um lado, o refúgio religioso, a acusação de materialismo ou ateísmo; do outro, a “ameaça do comunismo”, velhos mecanismos de defesa das elites reacionárias para justificarem o seus status quo.

Em quase todos os países da América Latina, onde a miséria cresce, como resultado da secular exploração colonial e capitalista, os setores fascistas das Igrejas e do Estado, portanto, ainda apelam para o anticomunismo; principalmente as igrejas evangélicas originárias dos Estados Unidos, como método antigo para impedir a educação democrática das massas populares e sua organização. Impõem o medo e a proibição do livre pensar que desmitificaria a idolatria do capitalismo aqui instalado. Como a Filosofia pode questionar as bases do poderio dessas elites acostumadas no comando ideológico das populações, a solução é condenar, apelar para ao anátema e vedar os processos de libertação e independência dos grupos mais conscientes da insuficiência desses mecanismos fundamentalistas.

Após tantas voltas e revoltas na história da filosofia, ainda se teme a crítica, o questionamento e a reflexão indagadora. Os grupos que pensam deter o controle das sociedades, o controle do curso da história, comportam-se, na maneira sábia da expressão filosófica popular, como quem quer “tapar o sol com uma peneira”. Isto porque, mais cedo ou mais tarde, alguma ruptura ideológico-política acontecerá. A linguagem da sabedoria popular expressa esta possibilidade dizendo: “um dia a casa cai”, “um dia macaco é gente”.

Fato curioso é que os teólogos sempre gozaram de certa segurança institucional. Exceto, evidentemente, quando questionaram o dogmatismo institucional de suas religiões. O filósofo, não. Jamais recebeu qualquer apoio, porque a filosofia nunca se institucionalizou de modo permanente. Encontra-se solto, entre os olhares da ciência, da religião e, atualmente, enfrentando o autoritarismo do Estado neoliberal militar. Caso não seja um pensador a serviço da ideologia das classes dominantes, do tipo que fica obediente, à sombra da árvore do poder, falando para ser admirado e encantando plateias. Em se tratando de um pensador crítico, que tem coragem suficiente para se distanciar das “proteções” oferecidas pelas elites, como bolsas, viagens, ou os chamados cargos de confiança, pelas chefias e espionagens.

Desse modo, o filósofo crítico é perseguido e marginalizado pelas elites no poder, quando busca cumprir a tarefa de construtor da história, ao catalisar as aspirações de sua contemporaneidade. Sua atividade é colocada “entre parêntesis”, em suspense, ou suspeita. Nem, ao menos, lhe conferem uma competência profissional, como constatou o pensador Berdiaeff: “filósofos e filosofia têm contra si os homens de religião, os teólogos, membros do clero e simples fiéis , os sábios e todos os especialista, os homens políticos e os organizadores, os homens de Estado, conservadores e revolucionários, os engenheiros e os técnicos, os artistas, enfim, a turba. Os filósofos devem ser, ao que parece, os que não têm nenhuma importância na vida política e econômica. No entanto, os homens que detêm ou brigam com o poder, os que desempenham ou querem desempenhar um papel no Estado e na economia social, parecem querer-lhe mal, não se sabe de que; não podem perdoar à filosofia parecer-lhes inútil (…). Ignora-se o aparelho técnico da filosofia, mas não se hesita empregar o termo filosofia como uma expressão de troça ou de censura. No uso corrente, a palavra metafísica é quase uma injúria (…). Que a insegurança seja a condição vulgar da filosofia é o que a experiência obriga a constatar… Em todo filósofo há sempre qualquer coisa de Spinoza e do seu destino. Por essa insegurança social, a personalidade de seu pensamento, a situação do filósofo aproxima-o da vocação profética. O profeta não está mais protegido do que ele; e está tanto mais sujeito à perseguição quando se preocupa principalmente com os destinos da sociedade e do povo. É por isso que, de todos os tipos de filosofia, é a do tipo profético a que está mais desarmada, a menos tolerada, a mais isolada”6. Apesar da sua tragicidade, e por causa dela, esse texto de Berdiaeff merece ter reconhecida a sua objetividade histórica e a sua beleza poética.

Em contraste, é inegável a função da filosofia como força propulsora de todos os movimentos culturais, uma vez que se constitui como o próprio impulso do agir humano na indissociável unidade vital entre teoria e prática. Desde o mais simples método de conhecimento até a mais complexa pesquisa científica, a comunicação se torna possível graças à reflexão filosófica subjacente ao trabalho de sistematização dos saberes. Se assim não fosse, por que seria tão vigiada e excluída?

Todo sistema político, todo posicionamento ante um desafio histórico, fundamenta-se numa mundivisão, numa filosofia, numa concepção de mundo e de homem. Toda organização humana, como projeto social e histórico, supõe uma manifestação racional e uma fundamentação por meio dos princípios da racionalidade. Subjacente a qualquer sistema social encontra-se uma ideologia, um conjunto de princípios e valores racionalizados e explicitadores de sua razão no existir humano. E a pessoa do filósofo faz-se necessária a fim de exercer uma ação crítico-judicativa, para mostrar a incoerência ou coerência desse projeto em relação ao próprio ser humano no seu irrenunciável face-a-face com outros, no mundo. Com o filósofo, nesta atitude de julgamento quase ninguém ousa solidarizar-se. Em geral, parece ficar sozinho, pouco reconhecido. Sua incumbência é a de pensar a existência, no mundo, com a única certeza de que é possível conhecer, julgar, detectar contradições e apontar horizontes de ultrapassagem em todos os domínios do saber aplicado, posto que o filosofar se põe a si mesmo como objeto de conhecimento, e nenhuma ciência o faz tão radicalmente como a própria Filosofia.

O filósofo que não se deixa confundir e não se torna cúmplice com a mesmidade sistêmica da ideologia dos segmentos sociais dominantes não é bem aceito, justamente porque sua atitude criticizadora não admite fronteiras nem entraves. Pela sua práxis, aponta as ambiguidades dos sistemas pretensamente acabados; localiza as contradições, desenterra os conflitos abafados, desmascara, desmistifica, quebra a aparente rigidez e vislumbra possíveis mudanças sociais. Conscientiza-se ajudando os outros a se conscientizarem. Nisto está a sua função histórico-pedagógica. Não existe autoridade externa para o filósofo crítico. Na filosofia a autoridade se constitui pela coerência do próprio pensar condizente com as exigências do presente histórico. Por isso, o pensador que não se torna obediente ao sistema opressor é sempre perseguido por aqueles que se beneficiam da segurança estrutural e material das oligarquias. Tal filósofo é o terror das doutrinas sectárias, dos sistemas e dos dogmatismos de quaisquer origens, desde o religioso ao especificamente político ou cientificista. O único limite para o seu campo de ação é o não poder nem dever pensar a serviço da opressão, se quiser ser fiel à humanidade. É não pretender possuir a verdade total. Não se deixar enquadrar num sistema. Não se curvar a censuras. Não silenciar. Não pretender a ingenuidade de querer afirmar-se ideologicamente neutro ou apolítico. Seu lema deverá ser a construção da verdade, pela construção da história. Utópico, procurará tornar “tópico” aquilo que pensa, com o testemunho da sua convivência, pela dialetização com outras consciências, na luta pela liberdade política, a começar pela própria liberdade individual. Sabendo que a filosofia é o saber do saber e do não saber; condição reveladora sem a qual o existir não seria humanamente possível.

III – Considerações finais

Os seres humanos não vivemos sem filosofia. O pronunciar-se com outros é incondicional ao nosso existir, no mundo. E a crítica, o filosofar, a atitude interrogativa, constituem os únicos caminhos a serem desbravados pela humanidade em busca de orientação para viver essa grandeza: a vida; náusea para uns, mistério para outros.

Cônscio desta possibilidade e dos limites que lhe são impostos, o pensador crítico sabe que deve continuar exigindo espaço para sua tarefa histórica específica. Ainda estamos a tempo de tentar libertar a Filosofia dos estreitos corredores e salas de aula em que está confinada, nas universidades, para apontá-la como atividade virtualmente possível a todas as pessoas como seres pensantes. Se já é fato que fizemos uma filosofia da libertação, não esqueçamos de lutar pela libertação da Filosofia, cuja ideia continua presa às escolas ou banida pela censura disfarçada.

A atividade filosófica deve ser explicitada e compreendida como tarefa de todos, embora em níveis diversos; não apenas de universitários. Como pensadores brasileiros temos que operacionalizar concretamente o modo e o espaço político para isto. Não esperemos o reconhecimento “oficial” desta atitude humana – o pensar crítico – pois nunca virá, uma vez que nossas instituições escolares, sob o poder majestático das elites, dos vulgares “políticos”, continuam como instrumentos da socialização repressiva a serviço do status das classes privilegiadas e da defesa da ordem da propriedade privada.

Afirmamos que o filosofar não deve permanecer apenas como atividade acadêmica, pois é preciso que leve em consideração o cotidiano popular. Assim como é necessário que a linguagem filosófico-científica dialogue com o linguajar comum, a fim de que, dialógica e dialeticamente, as camadas populares também se apropriem do conhecimento rigoroso. E ambos, filosofando, questionem suas práticas, conjuntamente, num esforço de superação do vanguardismo e do intelectualismo de gabinete.

O pensamento filosófico não pode se desligar das lutas históricas das populações. O filósofo ou filósofa deverá fazer o esforço para se comunicar cada dia mais intensamente com aqueles que estão impedidos de dizer sua palavra, com os movimentos culturais populares. Porque as classes populares também são potencialmente capazes de captar e expressar o espírito de sua época.

Temos de nos organizar culturalmente, saindo dos gabinetes e “chocadeiras” dos departamentos, para combater a censura neoliberal que atinge as escolas. Precisamos da força organizativa do pensamento filosófico para quebrar o autoritarismo e o fanatismo ideológico que consideram o exercício da filosofia como algo perigoso. Visto que, no momento, grande parte das nossas instituições ainda são demasiado débeis para suportar isto. Temos de acordá-las como o canto dos galos nas silenciosas madrugadas. Inclusive porque pensar filosoficamente também se constitui como um direito; já que diz respeito à educação e à liberdade de consciência como expressão fundamental da dignidade humana.

Se esta proposta chega tardia, não é ao cair da tarde que levanta voo o pássaro de Minerva, na poética expressão de Hegel? ***

* N. Berdiaeff: Filósofo russo, 18/03/1874, Kiev, Ucrânia – 24/03/1948, Clamart, França

** Autor: Mestre em Filosofia pela UFPE

*** Sobre o texto: Esse texto foi publicado, em primeira versão, no suplemento cultural do Jornal do Comércio de Recife, há quase vinte anos. Como, no Brasil, curiosamente, as circunstâncias não mudaram absolutamente nada em relação à Filosofia, pois vivemos época de crescente fundamentalismo, pouco foi alterado em seu conteúdo essencial.

1 BERDIAEFF, Nicolaus. Cinco meditações sobre a existência. Lisboa, Guimarães Editora, 1961, p. 13.

2 Referimo-nos aqui ao organismo político-militar criado durante o governo Reagan, nos EUA – o Instituto para Religião e a Democracia, chamado vulgarmente “projeto santa fé”, destinado a combater os movimentos de libertação popular dos países dependentes, especialmente os inspirados na Filosofia e Teologia da Libertação. Sobre isto ver: Um processo de ataque contra a Igreja que nasce do Povo. Publicação do CEDI e Revista Tempo e Presença, São Paulo, 1986, p. 6, (folheto).
3 BERDIAEFF, N. Op. cit., p. 13.
4 Idem, ibidem, p. 21.

5Continua atuante a repressão da censura policial às produções artístico-culturais. Durante as ditaduras das décadas de 1960-80, as punições aos pensadores críticos foram sistemáticas; a nível mundial, lembre-se a perseguição desencadeada contra os pensadores da Filosofia e da Teologia da Libertação da América Latina, o fechamento temporário do Centro Latino-Americano de Parapsicologia, em São Paulo; além da exclusão do ensino de Filosofia, repetida atualmente. Publicado esse texto em uma primeira versão, há vinte anos, resolvi reescrevê-lo, pouco acrescentando, face ao fascismo social que desponta com as mesmas práticas das ditaduras militares do século XX.

6 Idem, ibidem, p. 30;

A colcha de retalhos na filosofia clínica e a teoria portátil na psicanálise

Cláudio Fernandes
[FClínica/Inst Packter; Filosofia/USP] terapeuta, filósofo clínico, psicanalista

A filosofia clínica traz para o campo semântico da clínica existencial algumas tradições importantes da filosofia ocidental. Traz consigo as suas linguagens.

Ela não é e não faz propriamente filosofia, assim como não faz metafísica, ontologia, fenomenologia ou hermenêutica. Não é uma clínica provinda de protocolos estatísticos, “indistinta”. Institui-se como filosofia clínica, como um modo próprio em que a separação de seus termos – filosofia e clínica – desfaz a possibilidade de sua compreensão. Mas não será por isso que se absterá de lidar com fenômenos, teorias, ou linguagens diferentes. E nessa lida, por diferenças, se dá a perceber, faz afirmações. Certamente, tem modos pressupostos de ver o mundo, mas não se institui como modo de ver o mundo. Ela não é ciência, não é filosofia. Não é e não se pretende uma teoria do conhecimento. O que lhe é próprio surge, vive, se transforma e se destina em campo semântico próprio, campo dessa relação humana peculiar – a clínica.

Lúcio Packter, que inicialmente a concebeu, usa a bonita imagem da colcha de retalhos para descrever a diversidade de influências epistemológicas da filosofia clínica: “…é extremamente eclética, é uma grande colcha de retalhos na qual as escolas estão em conversação…e o critério para dizer qual irá se destacar e qual irá deixar a desejar é simplesmente o que nós encontramos lá na história da pessoa”. A colocação é precisa: há na filosofia clínica uma conversa entre diversas tradições da filosofia. “Conversar” é trazer as falas das pessoas, as suas versões de observação do mundo, para um lugar em comum. E, além disso, tem também o curioso sentido de “conviver, morar, residir”. Diferentes tradições e pensamentos podem conviver em um método, oferecendo ao clínico a opção de iluminar o caminho, com a luz mais adequada a cada passo.

Karl Jaspers, o pai da psicopatologia, ao elaborar as suas teorias sobre as doenças psíquicas e suas possibilidades de tratamento, defendia que no plano “científico” há de haver a “liberdade para todas as possibilidades da investigação empírica,[para a] defesa contra o desvio de querer por a humanidade sob um só denominador. No lugar de discutir um esboço do todo, deve-se preferir aqueles horizontes em que a nossa realidade psíquica se apresenta” . Ainda que não se acompanhe as suas escolhas, esse pedido de princípio à diversidade de “horizontes” é importante, significativo.

No campo clínico, a influência da diversidade de horizontes permite apreender a experiência por diferentes ângulos, estabelecendo o foco ou a ênfase, hora num aspecto, hora noutro. Cada tradição filosófica tem uma maneira de olhar, de captar as experiências, dando oportunidade de organizar modos distintos de escuta. A conexão entre as partes dessas tradições é feita a partir da utilidade prática nos modos de apreensão do relato da pessoa. Não há razão para se buscar uma unidade ou uma coerência entre os elementos do método fora das exigências da clínica, apenas para atender aos deuses do âmbito metafísico ou do mundo universitário. Um método é um “caminho para” – “odos” e “meta”- e sua organização se dá no enfrentamento das exigências do próprio caminhar: se tiver bons instrumentos, companheiros de viagem experientes e boas indicações no percurso, melhor será para o caminhante.

Por que não trazer, como faz a filosofia clínica, aspectos do pensamento de Protágoras, Sócrates, Platão, Aristóteles, Kant, Hume, Schopenhauer, Marx, Dilthey, Husserl, Whitehead, Peirce, Wittgenstein, Heidegger, Foucault, Merleau-Ponty, Ricoeur, Agamben e…? Para fazê-los presentes, através dos modos de leitura do clínico e de suas formas de ver o mundo, o ser humano, esta pessoa em sua contingência?

A psicanálise, uma clínica consequente e experimentada, fez e faz o seu percurso de modo diferente, desde que foi “criada” por Freud. Nos últimos 100 anos, a partir da prática clínica, da reflexão sobre ela e, da incorporação de outras tradições, muitos psicanalistas criaram “escolas”, “linhas”, “tendências”, numa diversidade enorme de modos de compreensão do que é a psicanálise. A Adler, Abraham, Anna Freud, E Jones, Ferenczi, Hartmann, Jung, W. Reich, O Fenichel, Kohut, Karen Horney, Melanie Klein, Bion, Kris, Lowenstein, Lacan, Winicott, para ficar nos principais. E todos esses modos de compreensão não desfiguram aquilo que lhes é essencial: “A psicanálise é o que se passa em análise. Num divã, alguém fala, em princípio, sem qualquer retenção. Numa poltrona, alguém escuta, em princípio sem qualquer idéia preconcebida. Daí é que se precisa partir, é aí que é preciso permanecer”, como tão claramente define o psicanalista frances Jean-Bertrand Pontalis. Há muita diversidade de referências mas o pensamento inaugural continua lá: Freud.

O filósofo clínico Will Goya observa com perspicácia que “o psicanalista é alguém que verdadeiramente sabe ouvir… mas com os ouvidos da psicanálise”. E isto é muito importante de se notar, uma vez que o psicanalista em sua prática clínica não pode prescindir daquilo que o teórico da psicanálise, Renato Mezan, nomeia como uma “teoria portátil”. Cada uma das “escolas” psicanalíticas é resultado da explicitação de diferenças teóricas surgidas em confrontações que em algum momento surgiram a seus protagonistas como inconciliáveis. “Mas ainda assim o analista continua analista, embora fazendo semblante de saberes muito diferentes dos que Freud fazia”, como nos lembra o psicanalista paulista Marcio Peter. Ele continua a exercer seu ofício ainda que tratando com linguagens, teorias e uma infinidade de questões trazidas pelo exercício clínico. O psicanalista ouve com os ouvidos dessas psicanálises que se fazem e se refazem a partir de sua própria prática, mas sempre com algum grau de reverência à “teoria portátil”.

Mesmo adotando uma “atenção flutuante”, o psicanalista faz a sua experiência clínica com a sua “teoria portátil”. Ela é um amálgama de vivências próprias com as teorias e as interpretações de outras experiências, em busca de uma universalidade que não se realiza. A prática as devora, tira-lhe o sentido, exige e não consegue oferecer uma resposta unívoca. “Cada caso exige uma terapia diferente… a psicoterapia é tão diversa como os indivíduos…não é possível estabelecer regras gerais…cada doente exige o emprego de uma linguagem diversa”, como tão bem escreveu Gustav Jung, um psicanalista de primeira hora e de tantos talentos.

Na filosofia clínica o terapeuta não se utiliza de uma “teoria portátil” no exercício da escuta. Ele simplesmente escuta, numa “despreocupação atenta”, como ensina o filósofo clínico Hélio Strassburger, no desafio constante de silenciar seus sabidos e inevitáveis preconceitos.

Estes modos de proceder dos filósofos clínicos e dos psicanalistas, têm uma natureza próximos dos da arte e muito distantes dos da técnica. São mais convivências com sentidos pré-estabelecidos, caminhos partilhados, do que “técnicas de ajuda”. Os saberes das experiências humanas estão entranhadas e são produzidas em plena con-vivência, não sendo algo estranho a elas, vindos de fora – como a técnica – que os organiza, como um a priori. Os princípios são éticos e não de resultados ou de objetivos genéricos, como “curar”, apaziguar angústias, prover bem estar e outros. Sensibilidade e tolerância à incerteza no lugar de “perícia” e “pressuposições”.

A filosofia clínica em sua prática de cuidado se aproxima mais dos movimentos do fazer artístico. Próxima daquilo que o artista plástico paulista Sérgio Fingermann traz em um momento de sua reflexão sobre um quadro familiar: “..será a luz (da tarde) o acontecimento daquela pintura? Será que o acontecimento ali é o silencio que habita aquela cena ensombreada? Aquela luz da tarde precede a noite que chegará com suas sombras e encobrirá tudo. Falta alguma coisa ali, alguma coisa antecede a imagem se fazer como compreensão. Aquela pintura não comunica o conteúdo de um pensamento, ela nos faz prisioneiros de uma “voz” que é portadora de uma tonalidade afetiva. É poesia subentendida. O tema da pintura é passagem, caminho lugar destinado ao transito de um para outro ponto. É um convite para irmos aonde? Aquela pintura é passagem…”. Ela não é em sua natureza uma técnica, é um modo de escuta.

A filosofia clinica é plástica, de saída. Conjunto de hipóteses articuladas entre si com a finalidade de oferecer perspectivas diferentes para facilitar a apreensão dos sentidos emitidos pela pessoa, por mais contraditórios que se apresentem ao olhar de quem observa. Com isto se forma um campo semântico próprio, peculiar e abrangente. Cada clínico aprende à sua maneira: por leituras, estudos em comum, aulas, trocas com outros profissionais, práticas supervisionadas, assimilando noções, hipóteses, de modo mais ou menos sistemático, meditado, refletido.As inumeráveis possibilidades de combinação oferecidas ao clínico, a partir dessas tradições da filosofia são um traço importante da filosofia clínica. Privilegiar, a priori uma tradição, talvez seja útil para evitar a dispersão especulativa nos trabalhos, predominantemente abstratos, filosóficos ou das teorias científicas, mas, de modo algum a um caminho clínico, que em sua constituição e natureza lida com as pessoas em seus infinitos modos singulares.

A colcha de retalhos das tradições filosóficas mobilizadas pela filosofia clínica dá condições para surgir o inédito: uma clínica da experiência singular. Que já parte do singular. Tateado e firme, incerto e rigoroso. Quem está na lida clínica sabe como isto é precioso.

O que é que fundamenta uma terapia?

Cláudio Fernandes
[FClínica/Inst Packter; Filosofia/USP] terapeuta, filósofo clínico, psicanalista

Qual o verdadeiro fundamento de uma terapia? Como se poderia estabelecer os fundamentos para uma clínica que atua nos cuidados de questões relacionadas à existência de uma pessoa?
Aqui se argumentará que o fundamento mais consistente é a própria experiência clínica.

Sobre fundamento

Em geral se diz que um conhecimento é verdadeiro se estiver bem fundamentado, ou apoiado sobre uma base sólida. O fundamento seria uma garantia de que se caminha em solo firme, dando a confiança necessária para um saber. Com a palavra “fundamento” se procura significar aquilo que está na origem, na base; ou aquilo sobre o que algo se assenta, se alicerça; ou, de um modo mais abstrato as razões ou os argumentos, por exemplo, em que uma teoria está apoiada, os seus princípios; ou ainda, a causa de alguma coisa.
De qualquer modo, a noção de fundamento traz consigo a idéia de ser uma base, algo que dá sustentação, que suporta, que mantém firme. Uma boa base é o que dá a confiança necessária de que algo não vai cair, se desequilibrar, ou mesmo se desfazer. A base desta mesa, daquela escultura, daquele prédio, assim como a daquela filosofia, o alicerce daquela ciência, a estrutura daquele trabalho. E disto, por exemplo, provêm expressões como “argumentos bem embasados”, “conceitos fundamentados”, “idéia original”, “professor com conhecimento profundo” e, assim por diante.
Na idéia de base há pressuposta uma analogia espacial, onde o fundamento estará no ponto mais baixo ou no mais alto do espaço. No âmbito religioso, para muitos, acima de tudo está representado um deus; nas estruturas de poder no topo sempre está quem reina, quem sabe, quem decide, o chefe. Ou, a idéia correlata, daquilo que está no fundo, no mais profundo: a teoria enraizada em bases sólidas, o homem de uma sabedoria profunda. A idéia que se tem é que lá no fundo, num lugar de difícil acesso, mas existente, há algo com essa firmeza, essa solidez necessária e definitiva.
Não é incomum ouvir que um conhecimento está “ancorado na verdade”, tomando-se a âncora como símbolo do fundamento. Note-se, entretanto, que o fundamento não é a âncora, mas sim, onde a âncora está fixada, aquele lugar que ancora a âncora. O fundamento, neste caso, seria “como a terra vegetal adubada, o solo grávido, frutífero…a região que está mais funda, que dá suporte”, como diz Heidegger em “Proposição do Fundamento”. Essa região seria o lugar originário, a origem, onde tudo começa, onde o ser nasceria, onde as coisas seriam instituídas. E onde também se daria o início do tempo. Não é difícil perceber a presença desse modo de pensar na cultura ocidental.
Um conhecimento, um saber, uma ciência dificilmente serão admitidos se não tiverem uma base sólida, um fundamento consistente, uma relação firme com a origem. Isto é pressuposto – “pré”, antes, de antemão; “su”, de baixo para cima; “posto”, colocado. Aquilo que não tem um fundamento estaria flutuando, disperso, difuso, ao sabor dos ventos, das contingências, vagando, incerto, sem limites. Tudo, todas as coisas, todas as idéias teriam uma origem, que seria a sua fonte asseguradora. Um algo que está antes no tempo e acima – ou abaixo – no espaço, sustentando tudo.
Curiosamente, a ideia de fundamento, mesmo sendo aceita de maneira universal, raramente é tematizada ou pensada criticamente.

A proposição do fundamento

A certeza de que há um fundamento foi expressa de maneira pretensamente inequívoca, por Leibniz, na chamada proposição do fundamento, que diz: “nada é sem fundamento” – “nihil est sine ratione” . Essa dupla negação – “nada…sem” – é que estabelece esse caráter de “necessidade inelutável” que marca uma parte importante do nosso pensamento. Ela tem tal força e amplitude, que mesmo ao ser enunciada, cobra que se efetive: a própria proposição do fundamento, sendo “algo”, deve, ela mesma, estar submetida ao que afirma, isto é, deve ter, ela mesma – proposição do fundamento – um fundamento.
O fundamento da proposição do fundamento seria então, entre todos os fundamentos, o fundamento por excelência, algo assim como o fundamento do fundamento. Mas não se teria que ir em direção ao fundamento do fundamento do fundamento? E assim por diante numa regressão ao infinito? Se o pensar sobre o fundamento seguisse esse caminho iria cair incessantemente no carente de fundamento.
Se – como diz a proposição do fundamento – tudo tem um fundamento e, se ao procurá-lo se cai numa regressão ao infinito, se poderia fundar uma perspectiva de leitura do fundamento de que, no final, nada tem fundamento.
Heidegger chama a atenção que não será por outro motivo que Leibniz teria caracterizado a proposição do fundamento como “principium rationis”, entendendo-se “princípium” como aquilo que contém em si a “ratio” – a razão – para outra coisa. “Principum rationis” se torna o mesmo que “ratio rationis”: a razão da razão, ou, o fundamento do fundamento. O princípio do fundamento teria, para Leibniz, na leitura de Heidegger, a natureza de um axioma: uma proposição considerada por todos como patente, certa, um “conceito-limite” (Leibniz dirá: “..axiomas e postulados… princípios primitivos, que não poderiam ser provados e, não têm necessidade disso” ). E seria esse caráter axiomático do axioma que traria a segurança de que as contradições ficariam afastadas, que não interfeririam no processo de construção do conhecimento. A forma axiomática não se referiria a um objeto específico, mas serviria a qualquer objeto. O fundamento se tornaria aquilo que procura estabelecer uma unidade, uma totalidade, com a função de eliminar as contradições que a diversidade dos fatos, dos fenômenos ou das teorias naturalmente traria.
Um objeto ao ser tomado como uma unidade, como um todo, concentra em si a promessa de uma plena determinação – cria essa ilusão. E faz isso como se estivesse restrito à sua essência, a uma objetividade do objeto, eliminando o que estaria fora disso. No mundo científico, em que é soberano o conceito de objetividade, a verdade só poderia ser estabelecida a partir da entrega de um fundamento – ainda que este fundamento tenha em sua base a fragilidade de um axioma. Um argumento de autoridade: “é porque é”, porque alguém diz que é.
No mundo acadêmico as verdades tendem a ser produzidas circunscrevendo-se um ambiente, um universo: dentro dessas condições, destes limites previamente estabelecidos, com o número de variáveis controladas, será possível se aproximar de afirmações que poderão ser testadas, verificadas e confirmadas. Isto pode ser aceitável para a ampliação do entendimento e talvez até de conhecimento de um número grande de práticas das chamadas ciências operacionais, que lidam com os aspectos materiais da vida (como a medicina, a biologia etc). Mas para a produção de conhecimentos nas áreas que tratam com os aspectos espirituais da vida humana, esses procedimentos não servem: há um tremendo equívoco. Pode ter sido louvável, em algum momento da história das universidades, buscar acolher sobre o manto quase sagrado da ciência os saberes ditos espirituais, mas, o crescente caráter métodológico de seus procedimentos, hoje mais confundem e dificultam o processo de conhecimento nessas áreas .
Na vida cotidiana, mesmo quando há uma busca do fundamento, ela costuma terminar com uma primeira resposta, muitas vezes superficial. E isso é tão comum que as pessoas mal sabem, mal se dão conta que ao perguntar “por que?”, buscam um fundamento. É muito raro que se prossiga, indo mais adiante, em buscas mais aprofundadas. Qualquer pessoa pergunta “por que?”, mas são raras aquelas que não se satisfazem com uma primeira resposta, com um primeiro “porque”.

A razão como fundamento

No dia-a-dia há um outro modo muito presente da proposição do fundamento que diz “nada é sem causa”. Ou que “não há efeito sem causa”, ou ainda que “a todo efeito lhe corresponde uma causa”. Neste caso fica clara uma relação entre algo que se toma normalmente como fenômeno presente – o efeito – e um outro algo – a causa – que o produz. Há, aqui, um tempo, um suceder que está pressuposto nesta relação: a causa, que ocorre antes, determina o efeito, que lhe sucede. Nessa relação de tempo passa a vigorar uma regra que diz que ao se tomar algo no momento presente – o efeito – sempre se estará pressupondo que há algo que vem antes – a causa – e, que neste momento anterior está pressuposto algo que sempre lhe sucederá.
Essas ligações causa-efeito são determinações mentais – têm a sua realidade na mente das pessoas – que passam a ter um caráter de necessidade, isto é, obrigatoriamente ocorrerão. Como escreve Kant, na “Crítica da Razão Pura”, “…em nossas representações [que são mentais] se estabelece uma ordem na qual aquilo que é presente acena a um estado precedente qualquer como um correlato, ainda indeterminado, deste evento que é dado. Tal correlato refere-se a este evento determinando-o como sua conseqüência e, conecta-a necessariamente consigo mesmo na série temporal” . E conclui: “o que sucede ou acontece [o efeito] tem que seguir, segundo uma regra universal, ao que estava contido no estado precedente [a causa]”.
Como “causa” nomeia algo que é um fundamento, bastaria agora determinar a essência dessa razão inicial, qual a sua natureza, como ela se constitui. Por este raciocínio o fundamento ou a causa seriam constituídos por uma verdade que seria natural, uma razão última, uma espécie de verdade, auto-referida, evidente por si. Se não fosse assim essa causa ou esse fundamento deixariam de ser verdadeiros, já que verdade se define, precisamente, como algo de que não se duvida, de que se tem certeza, que é, portanto, evidente. Válida por si. Um “princípium rationes”, um axioma, no lugar da “verdade natural”, ou da “razão última”.
Em outra perspectiva, ao propor que “nihil est sine ratione” (nada é sem razão), afirma-se que tudo tem uma razão ou um fundamento ou uma causa, soando como uma constatação. Fundamento seria aquilo do qual vem o fenômeno, o que se apresenta a alguém. Toma-se como um dado, como um fato ou como uma verdade, que tudo que existe está provido de um fundamento, tem uma causa ou uma razão. Não há, mesmo no senso comum, qualquer dificuldade para se entender a afirmação da proposição do fundamento, de que tudo tem uma razão e, nem de se estar de acordo com ela.
O curioso é que se entende a afirmação de que tudo tem uma razão depois que ela foi pronunciada, sem ter tido antes a experiência de receber ou de se saber de uma razão, de uma causa ou de um fundamento: sabe-se que há uma razão, uma causa, mesmo antes que uma razão se apresente. E será este modo de ter uma confiança antecipada numa razão, numa causa que se desconhece, que engendrará o raciocínio da validade: algo será válido, terá validade, apoiado em algo que se desconhece. A segurança no valor de algo será dada pela razão que essa afirmação promete e, no limite, talvez nem tenha possibilidade de oferecer.
Razão, que se diz em latim “ratio”, é, para Kant, aquilo que é capaz de princípios, de estabelecer proposições fundamentais, de dar os fundamentos. Ao escrever a Crítica da Razão Pura ele não toma a razão para analisá-la, mas, para levar a razão a seus limites, às suas possibilidades, isto é, para estabelecer as condições sob as quais a razão pode se dar. A razão seria uma faculdade, aquilo a partir do que ela se inicia, de onde ela – razão – brota para ser como é: o fundamento da razão. Criticar não é, para ele, rechaçar, mas, colocar em relevo, ressaltar aquilo que mais importa. Estabelecer o que ele chamará de “as condições de possibilidade a priori”, isto é, os critérios pelos quais algo pode ser conhecido, antes e independente da experiência.
A razão estabeleceria desse modo – pela crítica, por colocar em relevo – as condições em que um conhecimento se torna possível, isto é, ela – razão – se põe como aquilo que determina as condições de possibilidade do conhecimento das coisas no mundo. Mas a razão não fundamenta. Kant dirá de modo inequívoco: “…que tudo o que acontece tem uma causa, não é de modo algum um princípio conhecido e prescrito pela razão.” A razão, mesmo se referindo a objetos “não possui nenhuma relação imediata com eles e com sua intuição, mas só com o entendimento e seus juízos… a unidade da razão não é unidade de uma experiência possível…a razão sem relação com a experiência possível, não teria podido, a partir de simples conceitos impor uma unidade sintética de tal espécie…na realidade, a multiplicidade das regras e a unidade dos principios é uma exigência da razão para levar o entendimento a um acordo universal consigo mesmo, assim como o entendimento submete a conceitos o múltiplo da intuição, levando-a a uma conexão”.
A razão passa a ser capaz de dar os critérios para que se possa representar algo como algo, passa a ser aquilo que estabelece sentido, em última instância, aquilo que cria a possibilidade de se representar o mundo, o real. Mas quem será essa pessoa capaz desse representar?
Obrigatoriamente alguém tomado como um ser ou um “eu” racional, lugar da razão, entendido como universal, e com um caráter puro – fora da experiência. Alguém que possa colocar ante si algo que já venha como uma unidade, como uma totalidade, vale dizer, alguém que possa representar um objeto. Um objeto, esse algo completo, pleno de determinações. Este “eu” que representa este objeto, torna-se nesse ato, um sujeito.
Todo outro fundamento da essência ou do ser de um ente fora desta dimensão da razão pura – fora da experiência – fica excluído. O fundamento suficiente para uma coisa no mundo é a razão subjetivada, isto é, que essa coisa se torne um objeto num sujeito universal, ele também obrigatoriamente a priori, puro. A objetividade de um objeto se funda nessa subjetividade da razão. Mas essa subjetividade é pouco subjetiva, não está limitada a um homem isolado, em sua singularidade e com suas escolhas. Essa subjetividade é uma subjetividade pura, universal, dada a priori, que se estabelece como uma lei que está na essência da possibilidade de fundamentar, de constituir um objeto: não há objeto sem esse sujeito puro, fora da experiência.
Esse sujeito universal quando enuncia a proposição do fundamento, dizendo que tudo tem uma razão, tira o valor do homem singular, com suas contingências, para dar valor ao que é uno -“uma razão”- e uniforme -“tudo”. O homem encarnado, singular, esse que procura a terapia, que se encontra na clínica, em suas percepções, não enxerga nem escuta de um modo só e nem da mesma maneira: o mundo, muitas vezes, lhe parece diverso e, lhe aparece a cada vez de um modo – multiforme. Ele enfrenta o que lhe vem no modo que lhe é possível, a cada vez, se relacionando com as coisas do mundo, disso que lhe aparece como mundo. Ele percebe aquilo que emana, que vem, que se manifesta, que se mostra. Em uma palavra, percebe as coisas como fenômenos, como o que lhe vem ao encontro. Ainda que se pensasse numa unidade dos fenômenos, esta unidade, para este homem singular, já estaria no mundo dos fatos, portanto, contingente, histórico, condicionado, experimentado. Não se estaria mais no mundo puro, a priori, universal. Este homem aqui não é um sujeito universalizável e, por isso, só poderá ser atendido em suas demandas mais singulares, por uma clínica que se exponha ao risco da experiência, sem as defensas de teorias e outros aparatos.

A experiência como fundamento

Quando se coloca a pergunta “por que?” pede-se uma resposta, que a coisa – “res” – seja “posta”, colocada, que algo lhe seja entregue. A pergunta “por que?”, inicialmente, indicaria apenas a direção em busca da resposta, daquilo a ser entregue. Ao perguntar por que, o “por que?” – ele mesmo – não fundamenta, nem sequer sonda o fundamento, ele só indica a direção ao fundamento. O “por que?” é sem porque, não tem resposta quando se torna objeto de sua própria pergunta: o “por que?”, por si, não tem fundamento. O “por que?” indica isso que dá suporte, que dá base, que pré-está, que está lá, que no fundo causa. Isso que está lá, que se dá, que acontece, isso que é, e que é em seu próprio fundamento. Isso que promete estar lá, que com a aproximação escapa, mas que tem uma certa duração, que enquanto permanece e se demora, neste estar, é. Isso que “é” – o ser – é fugidio, é presença efêmera, é enquanto é. Isso que é o que está no fundo do fundamento, que funda, está e é só a partir de si.
O “por que?” enquanto se dirige ao fundamento faz perdurar o fundamento. O “por que?” faz uma indicação de que ao mesmo tempo que algo é, esse algo enquanto é, fundamenta. O ser enquanto perdura fundamenta: funda a si como fundamento. Numa linguagem direta, enquanto é, é: o ser fundamenta enquanto acontecimento. Ser e fundamento, estão supostos no “por que?”: “ambos se co-pertencem”, como diz Heidegger, ainda em Proposição do Fundamento.
O ser ter o caráter de fundamento não quer dizer que o ser tem um fundamento. Ter o caráter de fundamento quer dizer: o ser é a essência de si enquanto funda: é fundante de si. Ser “é” em essência, fundamento. E é por isso que o ser nunca pode, para começar, ter um fundamento que o fundamente fora de si. Como o ser, enquanto ser, é em si fundante, ele mesmo fica sem fundamento. O “ser” não cai sob o domínio da proposição do fundamento, só as coisas do mundo, os entes, os fenômenos.
Ao dizer que algo é e, que é deste ou daquele modo, o que se está fazendo é representando esse algo num discurso como uma coisa do mundo. Só as coisas do mundo – os entes, os fenômenos – são: o ser mesmo, não é. O ser escapa, se esconde, se oculta.
Mesmo oculto o ser perdura. Algo que está oculto está escondido, mas continua presente. É neste registro que se pode pensar na ideia de inconsciente em Freud, como aquilo que mesmo presente está oculto. O oculto é o que está na cena mas na parte escura, ou na ribalta, fora do foco luminoso do palco. É ao sair da ocultação, ao desocultar-se, no vir à luz que o ser guarda o que lhe é próprio, que fica momentaneamente sendo. E ao ocultar-se, perdura, enquanto ser, afinal oculto ainda é o ser que está lá como ser. E será por isso que dá para dizer que o ser, mesmo oculto ou fugidio, funda, é fundante.
E será para lidar com este caráter fugidio da essência ou da natureza do ser que as teorias científicas ao buscarem o seu fundamento se apoiam numa razão suficiente e na citada concepção de um sujeito racional. Colocando-se num lugar “antes” ou fora da experiência ela não precisa dar conta dos acontecimentos e seus modos de apropriação. E isto nas chamadas ciências humanas e especialmente no pensamento sobre a clínica que trata das questões dos modos de existir das pessoas, acaba por trazer uma concepção de homem muito afastada do que é vivido – do lugar próprio deste saber.
O que precisamente a tradição moderna –e a universidade – elimina é a existência, a singularidade constitutiva de cada pessoa. O homem, este homem existe enquanto está aí, ele é propriamente em existência: não estando, não é homem. Essa é a sua natureza, poder-se-ia dizer, a sua essência. Este homem se define por estar no mundo, um ser que está aí. Quando ele diz “eu” ele diz um modo próprio de estar no mundo, um modo só seu de criar um mundo.
Mas isso já é outro assunto. Por hora vale a tentativa de manter sempre viva a pergunta-título “o que é que funda uma terapia?”. Afinal, não é no trato do dia a dia do atendimento clínico a este homem singular, que o sentido dessa questão se refaz?

Como a Filosofia Clínica (também) é estruturalista

A filosofia clínica (FC) tem um modo próprio de ser estruturalista.

Esta afirmação se justifica pela possibilidade de focalizar e apurar os modos de ver o uso da noção de estrutura na chamada “estrutura de pensamento” (EP), central na FC.

A EP é definida como “o jeito da pessoa” , como “o modo como a pessoa está existencialmente no ambiente”, uma representação do que é o “eu” da pessoa. A EP só existe através do que a pessoa é [nota 1] . Como filósofo clínico tenho diante de mim esta pessoa e, é através dela, da linguagem que vamos construindo juntos que posso ter acesso à sua EP. Construí-la.

O conhecimento de uma EP é sempre um “trabalho realizado”, síntese organizada de observações feitas por um clinico, a partir de sua relação com a pessoa que vem partilhar as suas vivências – o “partilhante”. A EP só está constituída quando estiver estabelecida como uma totalidade. E, como qualquer totalidade, a EP é composta de elementos – os “tópicos”- que se relacionam e se articulam mutuamente. Cada EP é um arranjo único desses tópicos inter-relacionados e de suas possibilidades. Mas só é EP quando está constituída como uma totalidade.

Ainda que sempre tomada como totalidade, uma EP tem momentos estruturais que podem ser muito diferentes entre si. São relações ou arranjos tópicos diferentes que na comparação podem até dar a impressão de se tratar de outra estrutura. Estas diferenças, entretanto, fazem parte das características desta EP: são apenas variações de seus modos próprios, e que, assim a definem e a distinguem.

A um tempo a EP pode ser tomada como uma totalidade unitária, como um conjunto e, de outro como uma série de totalidades momentâneas, circunstanciadas. Em outros termos, sincronicamente (numa espécie de congelamento do tempo) ou diacronicamente (“posta” no tempo, em série). Não teria sentido utilizar a noção de estrutura se ela fosse só estável, imóvel, indiferenciada. Não teria sentido, num caminho terapêutico, sem a possibilidade de se comparar, isto é, produzir e captar diferenças. Portanto, na perspectiva ou no momento de quem observa, a EP pode ser tomada como uma unidade, numa espécie de consolidação, ou como uma série de totalidades formadas por combinações tópicas diferentes.

Em qualquer de suas acepções a palavra “estrutura” indica uma totalidade composta de elementos constitutivos inter-relacionados e interdependentes: “uma estrutura é um conjunto de elementos entre os quais existem relações, de forma que toda modificação de um elemento ou de uma relação acarreta a modificação dos outros elementos e relações” [nota 2] .

Provinda da palavra latina “strutura”, “antes de mais nada, define como o edifício está construído, depois, por extensão o modo como as partes de um corpo qualquer – substancia mineral, corpo vivo, discurso, pouco importa – são dispostas entre si. A estrutura é, portanto, aquilo que nos revela a analise interna de uma totalidade: elementos, relações entre os elementos, o arranjo, o sistema dessas relações” [nota 3]

A noção de “estrutura” pressupõe a idéia de totalidade e da possibilidade de analise das partes de uma totalidade, o que, nas palavras de Pouillon “permite definir o que constitui a singularidade de um conjunto e, ao mesmo tempo, fornece o meio de não nos circunscrevermos a ele” [nota 4] .

Em outras palavras, “estrutura” “é um termo que define ao mesmo tempo um conjunto, as partes desse conjunto e as relações dessas partes entre si” [nota 5]

Apenas com estas definições já se pode entrever a utilidade da noção de estrutura num método clínico, uma vez que permite observar a pessoa como uma totalidade – ou unidade distinta de outras – e, como um conjunto de elementos em sua composição intrínseca [nota 6] .

A EP na FC traz, portanto, essa dupla possibilidade de permitir a observação dos seus movimentos como uma unidade e, a das variações, arranjos e inter-relações dos elementos-tópicos que a constituem. E, mais importante do ponto de vista clínico, traz a possibilidade de relacionar estes dois pontos de observação, num terceiro, mais amplo e certamente mais complexo.

Tomar a EP como unidade traz a possibilidade de observar os seus movimentos, por onde se movimenta, como se movimenta, quais os efeitos de seus movimentos [nota 7] . Por outro lado, a visada a partir das inter-relações tópicas, permite ver seus modos próprios de viver, seus condicionamentos, suas facilidades e dificuldades.

Observar a partir dessas duas perspectivas, permite observar como os efeitos dos movimentos realizados se dão na outra, simultaneamente. Ao se partir da EP como unidade pode-se observar que um determinado movimento estabelece um outro arranjo nas relações tópicas, alterando seus pesos relativos, fazendo e desfazendo “choques”. Na outra perspectiva, como uma mudança nas inter-relações tópicas, altera o seu conjunto, de modo a se poder perceber como a EP passa a se movimentar de modo diferente como unidade constituída.

Os tópicos mais complexos da EP são precisamente os que procuram dar conta das inter-relações tópicas – a “Autogenia” [nota 8] – e dos seus movimentos como unidade – a “Matemática Simbólica”.

Na língua francesa o adjetivo “estrutural” tem duas palavras para o descrever : “structurel” que estaria mais próximo das análises da estrutura como unidade [nota 9] e “structural” que tomaria a estrutura mais como uma sintaxe, como a analise da disposição e relação de seus tópicos [nota 10] .

Os estruturalismos

Roland Barthes, inicia um texto que se tornou clássico [nota 11] perguntando “que é o estruturalismo?” para responder que “não é uma escola nem mesmo um movimento…já que os seus autores não se sentem ligados entre si por qualquer solidariedade de doutrina ou de combate …nem chega a ser um léxico: “estrutura” é um termo muito antigo e hoje em dia [nota 12] muito usado …e o uso da palavra não distingue ninguém” [nota 13] . Desde aquela época – a “de ouro” do estruturalismo.

E François Dosse em seu extraordinário “História do Estruturalismo” [nota 14] anota que “o estruturalismo nasce [justamente] nos psicólogos para opor-se à psicologia funcional do começo do século [XX] mas, o verdadeiro ponto de partida do método em sua acepção moderna…provem da evolução da lingüística. Se Saussure emprega apenas em 3 vezes o termo “estrutura” – ele usava “sistema” – no Curso de Lingüística Geral é sobretudo a Escola de Praga que vai difundir o uso dos termos estrutura e estruturalismo” [nota 15] .

Levi-Strauss trouxe para os estudos das “humanidades” o caráter e a respeitabilidade científica que a lingüística passara a ter. E fez isto através da noção de estrutura. Para dar conta em seu trabalho como antropólogo da multiplicidade das praticas matrimoniais, realiza uma operação de redução lógica, definindo um numero limitado de possibilidades, que ele definirá como “as estruturas elementares do parentesco”. O modelo, ele mesmo precisa, veio da lingüística estrutural: “tal como os fonemas, os termos de parentesco são elementos de significação sob a condição de se integrarem em sistemas” [nota 16]. Se toma de Saussure as noções de significante e significado coloca o significante – que era som para aquele – como o lugar da estrutura, e o significado – que era conceito – como o lugar do sentido.

Dosse diz que a lingüística se torna para o estruturalismo a “ciência-piloto” , enquanto a antropologia e a psicanálise serão as 2 “ciências-faróis” [nota 17] . A partir do momento em que se consiga integrar todos os fatos sociais atomizados numa totalidade, a antropologia poderá ser vista como um sistema global de interpretação que “explica simultaneamente os aspectos físico, fisiológico, psíquico e sociológico de todas as condutas e, no centro dessa totalidade o corpo humano…no cerne corporal o inconsciente” [nota 18] .O acesso ao inconsciente só pode se dar pela mediação da linguagem. Antropologia, lingüística e psicanálise imbricadas na produção do estruturalismo como um “movimento” importante na historia do pensamento ocidental, francês, no meado do século 20.

Desse momento inicial o estruturalismo se expandiu a muitos domínios. Em algum momento ou foram “estruturalistas”, ou, no mínimo, estiveram presentes e foram influentes nesse debate : Merleau-Ponty, Piaget, Foucault, Althusser, Barthes, Derrida, Greimas, Jakobson, Deleuze, Lacan, Bourdieu, Vernant, Kristeva, Todorov, Dumezil.

Não são poucos, por consequência, os textos sobre o “estruturalismo”. E em cada um se descobre que muitas concepções diferentes – quando não divergentes – são assim nomeadas. Não é por outro motivo a sugestão de Lepargneur, que seria melhor nomeá-lo como “estruturalismos”.

Mas, como é preciso prosseguir e para isso, fazer escolhas, tome-se um texto que, nesta altura, logo pelo seu título quase que se justifica por si mesmo: “Em que se pode reconhecer o estruturalismo?” [nota 19] de Giles Deleuze, escrito no calor da hora com a sua conhecida perspicácia.

Um estruturalismo

Escrito em 1967 mas só publicado em 1972 Deleuze se propõe a “somente extrair certos critérios formais de reconhecimento [do que se caracterize como “estruturalismo”], os mais simples” [nota 20].

O primeiro critério que estabelece para que algo possa ser reconhecido como estruturalismo é que a estrutura, em sua natureza é simbólica, isto é, não é real nem imaginária. Como simbólica não é uma forma sensível, nem uma figura da imaginação, nem uma essência inteligível. Não pode ser confundida com elas. Está numa espécie de “ordem” ou “reino” em que não pode ser reduzida a aquelas duas e é, a seu ver, mais profunda que elas: o real e o imaginário e suas respectivas relações seriam sempre engendradas depois, pelo próprio funcionamento da estrutura. A estrutura teria essa característica comum com a linguagem, de estar no reino simbólico. Como ela, institui um “real”, configura um “imaginário”.

A idéia dessa “ordem simbólica” que institui a realidade das relações humanas vem da leitura de Saussure feita por Levi-Strauss, pela qual o significante lingüístico tomado isoladamente não possui qualquer ligação interna com o significado. O significante só ganha significação por estar integrado num sistema significante , que se caracteriza por “oposições diferenciais”. A “ordem simbólica” permite tomar o significante independentemente do significado. E é por isso que tentar definir o simbólico se torna um problema: seria tentar buscar atribuir um significado a aquilo que por definição é significante não significado.

A natureza simbólica da estrutura é o que cria a possibilidade de toma-la como método. Como a linguagem, poderá ser concebida como um conjunto significante, uma hipótese, uma ficção.

O segundo critério explicita que a estrutura tem um sentido de posição. Os elementos que constituem uma estrutura não têm uma designação extrínseca (não tem relações de referencia com objetos estranhos a ela) nem uma significação intrínseca (um significado por si mesmo, uma semântica própria) [nota 21].

Um tópico da EP não é nomeado por algo – diga-se – “existente” que

estaria lá, na realidade, no mundo concreto ou mesmo na imaginação. Eles são “lugares” de um espaço propriamente estrutural, isto é, “inextenso, pré-extensivo, puro statium constituído por aproximações como ordem de vizinhança” [nota 22]. Um tópico estrutural, ele mesmo, só se relaciona com outros tópicos, não tem sentido fora do universo estrutural, de seu “reino”.

Como elemento da estrutura, um tópico, como por exemplo “Termos Agendados no Intelecto” (Tópico 6 da EP), só “existe” como parte da EP, como uma posição de observação, sem conteúdo e sem referente, mas fazendo parte dela, constituindo-a, em sua relação com os outros tópicos. Na EP enquanto estrutura potencial, isto é, quando ainda não atualizada, não efetivada, não há relação do tópico “termos agendados no intelecto” com qualquer “termo”, qualquer “agendamento” ou qualquer “intelecto”, estando apenas como uma posição na estrutura, como um lugar de observação, local do qual se observa.

O importante é que os lugares no espaço estrutural são anteriores em relação às coisas e seres reais que os ocupam , assim como aos papéis e aos acontecimentos, sempre um pouco imaginários que aparecem necessariamente quando são ocupados.

O terceiro critério é o diferencial [différentiel] e o singular. Onde há estrutura há multiplicidade e há singularidades: “Os elementos simbólicos [os tópicos] e suas relações determinam a natureza dos seres e objetos que vêem efetua-los” [nota 23] . No caso da EP a combinação entre os tópicos de uma pessoa poderá, diferenciando-a, caracteriza-la.

E, inversamente, “as singularidades formam uma ordem dos lugares, isto é, cada pessoa, em seus comportamentos e atitudes, como que determina a “ordem dos lugares” nas relações tópicas, seus pesos, sua importância.

Em outras palavras “a determinação recíproca dos elementos simbólicos [dos tópicos estruturais] prolonga-se, deste modo na determinação completa dos pontos singulares que constituem um espaço correspondente a esses elementos” [nota 24] . Deleuze diria que os tópicos “encarnam-se” nesta pessoa assim como esta pessoa “atualiza” estes lugares, esta combinação tópica na estrutura.
Deleuze dirá que as “singularidades correspondem com os elementos simbólicos e suas relações mas não se assemelham a eles. Diríamos, antes, que elas “simbolizam” com eles” [nota 25], a pessoa é como que “simbolizada” por essa relação tópica.

O 4º critério é o diferenciador[différenciant]e a “diferençação” que aponta a distinção entre o virtual e o atual. As estruturas não são atuais em si mesmas, mas o são naquilo em que elas se encarnam. A EP só será EP quando for EP de tal pessoa.

Já como “virtuais” as estruturas, não são por isso “irreais, uma vez que o virtual mesmo não sendo atual é real e é ideal, ainda que não por isso seja abstrato…O virtual tem uma realidade que lhe é própria, mas que não se confunde com nenhuma realidade atual, com nenhuma realidade presente ou passada; ela tem uma idealidade que lhe é própria mas que não se confunde com nenhuma imagem possível, com nenhuma idéia abstrata. Da estrutura diremos: real sem ser atual, ideal sem ser abstrata” [nota 26]

A EP como virtualidade é como a estrutura de uma “pessoa em geral” [se isto não fosse impossível – a “pessoa em geral”] que possibilita determinar uma virtualidade de coexistência de elementos simbólicos – os tópicos – que preexiste às pessoas em que se atualizarão, se encarnarão. “Da estrutura como virtualidade, devemos dizer que ela é ainda indiferenciada, embora seja inteira e completamente diferenciada. Das estruturas que se encarnam nesta ou naquela forma atual (presente ou passada) deveremos dizer que elas são diferenciadas, e que atualizar-se, para elas, é precisamente diferenciar-se…..Convém observarmos que o processo de atualização sempre implica uma temporalidade interna, variável segundo aquilo que se atualiza… o tempo é sempre um tempo de atualização, segundo o qual se efetuam, em ritmos diversos os elementos de coexistência virtual ….o tempo vai do virtual ao atual, isto é, da estrutura às suas atualizações, e não de uma forma atual para outra forma” [nota 27].

Parafraseando Deleuze, a EP é, em si mesma, esse sistema de tópicos e de relações diferenciais, mas ela também permite a diferenciação da pessoa na qual ela se atualiza. “Ela é diferencial em si mesma e diferenciadora em seu efeito” [nota 28]

.

O quinto critério é o que diz que toda estrutura é uma série, que “só se põe a mexer, só se anima”, só “funciona” em série. Cada organização tópica, cada momento estrutural se refere a um outro momento estrutural que se definirá por uma outra combinação entre os tópicos.

Quando, por exemplo, um partilhante relata que bateu o carro porque estava “fora de si” (Tópico “Comportamento e Função”), tomado por uma emoção incontrolável (Tópico “Emoções”), após os comentários depreciativos feitos por sua mulher (Tópicos “Interação de EP” e “O que acha de si”) por não ter conseguido a promoção profissional que esperava (Tópico “Busca”), atualizando um arranjo estrutural tantas vezes (um “padrão”) vivido-relatado em sua história de vida. Por um lado a EP deste partilhante poderia ser caracterizada pelo peso do tópico “Interação de EP”, mas, ao fazer isto – dar este peso – se estará pressupondo a existência da série, uma vez que haverá situações vividas em que o arranjo tópico não estará influenciado por uma interação com uma pessoa (ou, em outra linguagem, uma “EP”) como a do exemplo, ou poderá estar influenciado de modo positivo.

Neste caso há uma outra “escolha de elementos simbólicos de base e das relações diferenciais em que eles entram…mas ainda pela constituição de uma segunda série, ao menos, que mantém relações complexas com a primeira…e se a estrutura revela um campo de problemas, é no sentido em que a natureza do problema revela sua objetividade própria nesta constituição serial” [nota 29] Uma estrutura só se põe a mexer, só se anima, só passa a “funcionar”, a criar diferenças, quando se dá a observar, quando se constitui em uma série. A condição para a observação sincrônica da EP é a existência da perspectiva diacrônica.

O sexto critério é o da “casa vazia”. Para Deleuze a estrutura envolve um elemento ou um objeto paradoxal, que não cessa de circular pela série e que constitui o ponto de convergência dos “momentos estruturais” divergentes. Esse “elemento” está sempre deslocado com respeito a si mesmo, sendo a sua propriedade não estar onde se vai busca-lo e encontra-lo onde não está, por isso ele “falta a seu lugar”. Ele dirá que não há estruturalismo sem este “grau zero” que, estando em toda parte, produz o sentido em cada série e não deixa de desfaze-la. Esse “objeto” não é assinalável, isto é, não é fixável em um lugar identificável em um gênero ou espécie.

Eis porque Deleuze comenta que a questão de “em que se reconhece o estruturalismo” conduz à posição de algo que não é reconhecível nem identificável. É portanto um paradoxo, pois, como seria possível reconhecer um elemento sem identidade?

É certo que o estruturalismo não poderá responder à pergunta sobre a sua própria natureza em termos de identidade. Para Deleuze é isso que revelaria a dimensão inconsciente dos problemas colocados , o horizonte transcendental aberto e problemático.

Enviar para a “dimensão inconsciente” seria fundamentar precisamente em algo que por definição é incaracterizável, indeterminado. Como sarcasticamente pergunta Umberto Eco, seria enviar para “…um manancial indeterminado que permite todas as configurações possíveis, até mesmo as que se contradizem entre si?” [nota 30] e que ele mesmo responde com ironia, ao dizer “quando para o pesquisador surge uma definição estrutural em cujos termos um fenômeno novo não pode ser incluído, se não conseguir ele renunciar à idéia de que a estrutura que individuara era a definitiva, só lhe resta renegar o fenômeno aberrante” [nota ] [nota pg 300]. Uma concepção do “estruturalismo que se erija em visão filosófica” levaria à “explosão da própria idéia de estrutura” [nota 31].

Aqui, a leitura de Deleuze sobre o estruturalismo parece fazer água, não sobreviver. E se a observação for mais atenta, é precisamente onde o estruturalismo vai buscar seu viés ontológico, o “grau zero”. Perde sua força por querer ser mais do que é. Por mais admirável que seja seu esforço retórico, a “casa vazia” só será o que é: o lugar do vazio, questão ontológica, não constituinte de uma idéia de estrutura que se sustente.

O sétimo critério diz do “sujeito estrutural”. O estruturalismo não é um pensamento que suprime o sujeito, como tantas vezes foi dito, mas é um pensamento que o reduz e o redistribui, que questiona a sua identidade, que o dissipa e o faz passar de lugar em lugar, sempre nômade, feito de individuações impessoais, ou de singularidades pré-individuais.

O estruturalismo é inseparável das obras que cria e mais que isso, é uma prática que está em relação com o que interpreta. Daqui, para Deleuze, o potencial criativo, inovador e polemico do estruturalismo.

Na questão sobre a gênese Deleuze cunha o termo “gênesis estática” para nomear o processo de geração sem dinamismo , que não vai de um termo atual a outro termo atual no tempo, mas, do virtual à sua atualização, isto é “da estrutura à sua encarnação”. A estrutura é virtual [ideal, potencial, simbólica] em si mesma mas se atualiza [se efetua, se encarna, se concretiza] em relações empíricas , espaço-temporais. Nesta passagem de sua pura virtualidade [em que é diferenciada – différentiée] para seu “ser” atual [processo em que a estrutura se diferencia – différenciée] é o momento propriamente produtivo, gerador, criador da estrutura [EP]. E assim se dissolve a contradição aparente entre a estrutura e seu aspecto genético, desde que se entenda por gênese a atualização do virtual, a encarnação das relações ideais, a efetuação empírica do incorporal.

O virtual não é o “possível”. O virtual não é irreal, não se opondo ao real mas se opõe ao atual. A estrutura é a realidade do virtual. O processo que corresponde ao virtual é o da atualização e não o da realização: o possível se realiza mas o virtual se atualiza. Atualizar-se é sinônimo de diferenciar [différencier] integrar, resolver. Ao atualizar-se se faz por diferenciação, por divergência.

A atualização é sempre uma criação de linhas divergentes que correspondem, sem semelhança, à multiplicidade virtual. Em relação ao fenômeno, a estrutura comporta acontecimentos ideais que se cruzam com os acontecimentos reais e que de certa forma [esses acontecimentos ideais] determinam o fenômeno [através da linguagem].

Na história do pensamento houve um momento [de 1945 a 1970, aproximadamente, na França] em que tudo parecia convergir para uma estrutura. O mundo era olhado como uma estrutura. Estrutura e estruturalismo. Estruturalismo ou estruturalismos. Não havia um programa único. O que havia em comum era a presença da idéia de estrutura.

Como nas reações pendulares, de critério que serviria para qualquer coisa, passou-se a desprezar-se qualquer modo de uso da noção de estrutura.

Um outro modo de estruturalismo

Humberto Eco na Introdução de seu “Estrutura Ausente” [nota 32] afirma que se fosse indagado se seu livro é “estruturalista” ou “antiestruturalista” aceitaria “de bom grado ambos os rótulos”. E é esta afirmação aparentemente contraditória que permite observar de que modo a FC pode ser – e não ser – estruturalista.

Ele seria ”antiestruturalista” para toda tentativa de se tomar “estrutura” como filosofia ou como ontologia, como um momento “intermediário” de uma cadeia que teria no fim uma estrutura mais elementar, oniexplicativa, garantidora, una. As que tomem estrutura como instrumento para se chegar a universais, seja ao “ser-do-ente”, aos “mecanismos universais da mente”, ao “espírito humano”, ao “inconsciente”, a uma “realidade última”. A um “pensamento único”, ao qual se reportaria o “pensamento diferente”, ou ainda a um ideal positivista de uma explicação total, de uma lógica objetiva de um pensamento universal.

E ele seria estruturalista quando a estrutura for vista como um método [nota 33], como instrumento hipotético que permite “experimentar os fenômenos para conduzí-los a correlações mais vastas” [nota 34] . Sempre ciente de que se trata de uma “operação de laboratório”, uma construção da inteligência investigativa. Sabedor de tratar-se de uma “ficção útil”, uma imobilização temporária de aspectos da experiência, “modo de falar homogêneo de fenômenos diferentes” [nota 35].

A clínica é o lugar do singular. Este é o principio ético basilar. Aqui trata-se, por observação apurada, dos modos de viver da pessoa. Modos que são só seus, numa espécie de organização pessoal absolutamente distinta de qualquer outra. Esse seu modo foi sendo traçado através de suas inter-relações com o(s) mundo(s), consigo, com o(s) outro(s) desde o nascimento até a atualidade.

O desafio do clínico é o de se aproximar dessa singularidade [nota 36]. A aproximação se faz através das linguagens [nota 37] , num complexo processo de constituição do outro para si [nota 38] . Ainda que o constituído seja fugidio e impermanente.

São enormes as dificuldades para isso. E não é por outra razão que a medicina e a psicologia [nota 39] partem de um rol de patologias, tipologias ou critérios nosológicos, em busca de formas de aproximação ou caracterização desta pessoa, deste “paciente”. A partir da detecção, também através das linguagens, de comportamentos vinculados a esses padrões classificatórios (os sintomas) caracterizam o “caso”. A pessoa passa a ser vista como uma combinação que precisa ser encaixada em algum padrão ou combinação de padrões. O modo de conhecimento se dará por analogia a outros casos, assemelhados, agrupados em protocolos, reduzidos no limite a prototipos.

Essa dificuldade, entretanto, pode ser minorada e, a aproximação com a singularidade desta pessoa pode ser facilitada justamente pela utilização de uma estrutura, de um método estruturalista. E que tenha a natureza de um instrumento operatório, de um recurso provisório, hipotético.

O que se obtém é uma espécie de retrato dinâmico dos muitos modos em que a pessoa se constitui. Trata-se de um saber por homologia em que se reúne uma multiplicidade de fenômenos com características comuns. Uma espécie bem precisa de operação, que, ao simplificar, não empobrece obrigatoriamente as realidades, os fenômenos narrados e captados. Processo fadado à incompletude, continuamente carente de atualizações.

A EP é um modelo, um “artifício de montagem” [nota 40] que permite ao clinico nomear de modo homogêneo coisas diferentes. O partilhante narra sua história, atualiza suas vivencias, através de suas linguagens próprias. O filósofo clínico separa-as a partir das categorias [nota 41] (a “coleta categorial”), aprimora essa observação (a “divisão”) e busca especificar o que não lhe parece claro (o “enraizamento”). Com esse material atualiza, “monta”, constrói, “preenche”,”encarna” a EP dessa pessoa. Das múltiplas vivências narradas, de tudo o que ouviu, transporta, transfere para formas que são aparentadas, que são formadas a partir de um pensamento aproximado, parecido, semelhante, homólogo. Esse transporte é de experiências que já vêm articuladas, já são captadas em relações pré-estabelecidas que se conformam em relações tópicas, com pesos ou importâncias específicas.

A idéia de estrutura que informa a EP é a de “um modelo como sistema de diferenças..[que se caracteriza pela] transponibilidade de fenômeno para fenômeno e de ordens de fenômenos para ordens de fenômenos diferentes” [nota 42] .O uso da estrutura é um recurso de simplificação para a multiplicidade dos fenômenos de modo a preservar as suas diferenças, os seus traços fundamentais. Um modo de lidar com o “continuum” da vida, da seqüência infinita de vivencias, fluxo interminável – muitas vezes quase sobrepostas – captáveis parcialmente através dos inumeráveis modos das linguagens possíveis.

Por sua natureza de virtualidade – como diz Deleuze – a estrutura comporta a multiplicidade que não se deixa levar a nenhuma identidade, seja quanto ao sujeito-objeto da EP – o partilhante, seja ao sujeito construtor da EP – o terapeuta. O outro do terapeuta, quando visto através da estrutura, de certa forma pré existe aos termos que atualizam essa estrutura. Como virtual a estrutura será atualizada, efetuada por um sujeito real, variável. Deleuze também chama a atenção para o “outro-a-priori”, mas aí já se estará próximo a ontologizar a estrutura algo q está fora da intenção deste artigo e certamente fora da possibilidade de se realizar.

O estruturalismo da filosofia clínica não é ontológico, é metodológico, caminho em direção a. E, para existir e ser legítimo, não precisa da ontologia. Ontologia e clínica são campos com poucas proximidades. Não tem sentido, para a clínica, a discussão de uma “estrutura em geral” ou de uma estrutura a priori. Em clínica a idéia de estrutura não se sustenta como “princípio hipostatizado” [nota 43] ,mas só como “instrumento”, como diz Umberto Eco [nota 44].

Na clínica o uso da EP produz um saber que não busca por si solução, mas sim aprendizados. Ela é só uma instancia que permite problematizar de modo organizado, sem propor ou representar algo que tenha a característica de um reconhecimento definitivo. Não parte de um saber já sabido, mas de indagações que possibilitem novos modos de ver as vivências e experiências humanas, novos modos de aprendizagens. Modos de ver a vida no vivido. O uso da EP permite a observação a partir da produção de diferenças e não de oposições. Ela propõe sentidos temporários aos fenômenos. Que, afinal, também o são.

Os sentidos não serão principio nem origem, serão resultado que não têm intenção de permanência. Não se descobre, não se restaura, não se refaz sentidos. Os sentidos são sempre novos. O desafio será produzi-los mediante outras formas. Sem ir às alturas (metafísicas) ou às profundezas (ontológicas). Nas fronteiras. Sem referencia a qualquer totalidade original.

A filosofia clínica não é e não faz propriamente filosofia. Ela é um método ou um caminho clínico, baseado na tradição da filosofia ( e não da medicina e, por filiação histórica das áreas “psi”). Não faz metafísica, ontologia, fenomenologia ou hermenêutica. Não é uma clínica provinda de protocolos estatísticos, “indistinta”. Não sendo isoladamente clínica a-crítica ou filosofia, institui-se como filosofia clínica, como um modo próprio em que a separação de seus termos (filosofia e clínica) desfaz a possibilidade de seu entendimento. Mas não será por isso que se absterá de lidar com teorias, com linguagens diferentes. E nessa lida, por diferenças, se dá a perceber, faz afirmações.

E, certamente, tem modos pressupostos de ver o mundo, mas não se institui como modo de ver o mundo. E é no estrito respeito ético para com a singularidade das demandas de seu partilhante que ela, como método clínico, se exerce. E em seu exercício é este modo muito próprio de incorporar os saberes provindos dos estruturalismos na EP que lhe dá possibilidade.

A estrutura, como método [caminho para], é parte constitutiva da filosofia clínica – sem ela não há FC. E é este o seu modo próprio de ser “estruturalista”.

NOTAS

nota 1 – Packter, Caderno A, pg 16

nota 2 – Lepargneur, pg 4]

nota 3 – Pouillon

nota 4 – Pouillon, pg 7

nota 5 – Eco, pg 252

nota 6 – Entre outras vantagens evita-se o escorregadio caminho das discussões sobre identidade, tão presentes e insatisfatórias nas discussões das teorias psicológicas

nota 7 – este é o ponto de observação nomeado como “Matemática Simbólica”

nota 8 – o gene do que é auto

nota 9 – como no tópico “Matemática Simbólica”

nota 10 – como no tópico “Autogenia”

nota 11 – “A Atividade Estruturalista”

nota 12 – escreve em 1962

nota 13 – Barthes, pg 19

nota 14 – Dosse

nota 15 – citação Dosse pg

nota 16 – citação Dosse pg

nota 17 – Dosse pg

nota 18 – Dosse pg

nota 19 – Deleuze, pg

nota 20 – Deleuze, pg 222

nota 21 – o momento de “preenchimento”, em q se realiza a “homologização” não é ainda estrutura, só se constituindo como tal, quando já estabelecida

nota 22 – Deleuze, pg 225

nota 23 – Deleuze, pg 229

nota 24 – Deleuze, pg228

nota 25 – Deleuze, pg 229

nota 26 – Deleuze,pg 231

nota 27 – Deleuze,pg232

nota 28 – Deleuze, pg 233

nota 29 – Deleuze, pg236

nota 30 – Deleuze, pg 300

nota 31 – Deleuze, pg 301

nota 32 – Eco, pg XXI

nota 33 – “…esta palavra “método” é formada do grego ‘meta” – que significa “além”, “para lá” – e de “odos” – “o caminho”. Método é o caminho que leva a algo, o caminho pelo qual estudamos um assunto”, conf Heidegger, pg 128

nota 34 – Eco, pg 362

nota 35 – Eco, pg 294

nota 36 – ele também uma singularidade

nota 37 – tomar-se-á aqui, “linguagem” como qualquer forma de comunicação, de modos de ação, postos “em comum” entre um outro

nota 38 – aqui se tomará só a constituição do partilhante para o

terapeuta, ou “no” terapeuta

nota 39 – tomadas aqui de modo genérico, cometendo a injustiça de estar colocando num mesmo balaio coisas muito diferentes

nota 40 – Badiou, pg

nota 41 – as categorias, na Filosofia Clínica, são: assunto, relação, circunstancia, tempo e lugar

nota 42 – Eco, pg 258

nota 43 “abstração falsamente considerada como real”

nota 44 – Eco, pg 300

BIBLIOGRAFIA

Obras Citadas

Badiou, Alain – “El Concepto de Modelo” – Ed La Bestia Eqüilátera SRL, Buenos Aires, Argentina, 1ª Edição, 2009

Barthes, Roland – “A Actividade Estruturalista” – in “Estruturalismo”, Editora Martins Fontes, São Paulo, Capital, 1ª Edição, s.d.

Deleuze, Gilles – “A Ilha Deserta e outros textos” – Editora Iluminuras, São Paulo,Capital, Brasil, 1ª.Edição, 2008

Dosse, François – “História do Estruturalismo” – 2 volumes, Co-Edição da Editora da Universidade de Campinas – Unicamp com Editora Ensaio, São Paulo, Capital, Brasil, 1ª Edição, 1993

Eco, Umberto – “A estrutura Ausente” – Coleção Estudos , Editora Perspectiva, São Paulo, Capital, Brasil, 7ª Edição, 2ª. reimpressão, 2005

Heidegger, Martin – “Seminários de Zollikon”- Co-Edição da Editora da PUC-SP – Educ com Editora Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro, 1ª Edição, 2001

Lepargneur, Hubert – “Introdução aos Estruturalismos” – Co-Edição da Editora da Universidade de São Paulo – Edusp com Editora Herder, São Paulo, Capital, Brasil, 1ª Edição, 1972

Packter, Lúcio – “Cadernos de Filosofia Clínica” – Instituto Packter, Porto Alegre, s.d.

Pouillon, Jean – “Estruturalismo – Uma Tentativa de Definição” – Editora Martins Fontes, São Paulo, Capital, 1ª Edição, s.d.

Obras Consultadas

Antonelli, Marcelo – “ Proximidades y Distancias – Presencia del Estructuralismo em la Obra de Gilles Deleuze” – in “El Estructuralismo em Sus Márgenes”, Ediciones del Signo, Buenos Aires, Argentina, 1ª Edição, 2011

Barthes, Roland – “O Grau Zero da Escrita” – Editora Martins Fontes, São Paulo, Capital, Brasil, 1ª Edição, 2004

Carvalho, José Maurício de – “Filosofia Clínica – Estudos de Fundamentação” – Editora da Universidade Federal de São João Del Rei, São João Del Rei, Minas Gerais, Brasil, 1ª Edição, 2005

Derrida, Jacques – “La estructura, el Signo y el Juego em el Discurso de las Ciencias Humanas”, in “La escritura y la Diferencia” – Editora Anthropos, Barcelona, Espanha, 1ª Edição, 1989

Heidegger, Martin – “A Caminho da Linguagem” – Editora Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro, Brasil, 1ª Edição, 2008

Juranville, Alain – “Lacan e a Filosofia” – Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil, 1ª Edição, 1987

Lacan, Jacques – “Escritos” – Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,Brasil, 1ª Edição, 1998

Levi-Strauss, Claude – “A Obra de Marcel Mauss” in “Sociologia e Antropologia”, de Marcel Mauss, “Introdução” – Co-edição de Editora da Universidade de São Paulo – Edusp e Editora Pedagógica Universitária – EPU, São Paulo, Capital, Brasil, 1ª Edição, 1974

Mafra, Taciana de Melo – “A Estrutura na Obra Lacaniana” – Editora de Freud, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil, 1ª Edição, 2000

Saussure, Ferdinand de – “Curso de Lingüística Geral” – Editora Cultrix, São Paulo, Capital, Brasil, 3ª Edição, 1971

Todorov, Tzvetan – “Poética Estructuralista” – Editorial Losada, Madri, Espanha, 1ª Edição, 2004

Alguns lances sobre a linguagem na prática da filosofia clínica

Abro a porta, ele me estende a mão, me olha, diz “tudo bem?”, entra, dirige-se à mesma das 3 poltronas e senta. Me pergunta de novo: “tudo bem?” e começa a falar. E a fala flui. São sons que saem daquela boca, sob a forma de palavras, de frases. E há tons diferentes e há volumes e ritmos diferentes.
Seus olhos parecem me ver, parecem também expressar algo. Ele tem uma postura física ereta, com o corpo quase imóvel. Faz pequenos gestos com as mãos e altera o tom da voz, como a dar ênfase, aqui e ali, ao que diz. Predominam as palavras, as frases. Ouço.
Como eu posso compreender os sentidos que ele procura me comunicar? Ao falar ele parece querer tornar comum – a mim e a ele – o que só era vivido por ele.
Usa palavras, forma frases com elas. Me observa, talvez procurando saber pelas minhas menores reações, se as palavras que escolheu indicam em mim aquilo que queria expressar.
Aquilo? O vivido, o sentido. O sentido do vivido.
As palavras transportam o sentido? Mas como? Como uma determinada palavra se impregna de um sentido? Mas como uma coisa material – um ruído, um som, um gesto, um desenho – pode carregar o afeto de algo vivido? E ser apropriado por outro (por mim)?
As palavras e as frases que ele usa parecem fazer parte de um repertório comum a ele e a mim.
As palavras – cada uma delas – estão numa espécie de estoque pessoal de palavras (um modo de memória) , que está como que vinculado aos estoques de muitas outras pessoas, formando uma comunidade interligada de estoques, uma comunidade lingüística. Ele, eu e os outros, ao longo de nossas histórias pessoais nos apropriamos (há quem chame a isto de aprendizado…) paulatinamente delas (palavras), num processo intrigante.
Os momentos iniciais (em geral na infância, entre o 1º. e o 2º. ano de vida) dessa apropriação de uma forma determinada (de um som na fala, de sinais corpóreos e outros) são vividos em relação com alguém que “indica” um sentido. Esse “alguém” vincula uma forma (sonora, gestos, expressões, etc) a algo que é percebido pelos sentidos do “outro”. E repete e pede que repita.
A repetição de uma forma similar, como a palavra, por exemplo, em momento posterior, permite a re-apresentação de algo percebido pelos sentidos, naqueles momentos originários. A palavra, agora, tem sentido, se vincula a algo, a algum afeto vivido. E o sentido, como na origem, busca se fazer comum, comunicar.
As palavras que este partilhante utiliza, em sua maioria, são sons que re-conheço, isto é, que fazem parte de meu estoque de palavras (como parte da comunidade lingüística, da qual ele também faz parte).
Na nossa con-vivência, aos sentidos que as palavras tinham em mim foram sendo agregados outros sentidos que se produziram – e se produzem – no nosso contato pessoal. Em mim e nele. Nele ao seu modo em mim ao meu. O sentido é algo vivo, plástico.
A mim, como filósofo clínico, cabe apreender os sentidos veiculados através dessa linguagem que vai sendo realizada nesta relação. No início, não há in-timidade, não há o contato com o que vem da timidez (do latim “timidu”, do que está ligado às aflições no enfrentamento da vida, aos temores existenciais).
Forma-se uma linguagem própria, nossa. Quando usa a palavra “amor”, por exemplo, fala do modo como ele vive ou viveu as suas relações, físicas, sensoriais, sexuais. E só. Para as relações que envolvem afeto usa outras palavras. Ele e eu, com ele.
Quando ele fala em “dia chuvoso”, sei a emoção que ele procura embutir nessa expressão exatamente. Tive a oportunidade de ouvi-lo expressar amplamente, por diversas vezes, importantes emoções similares vividas em “dias de chuva”.
Ou ainda, com outro partilhante, como o súbito enrijecimento físico, com o corpo ereto, tem o sentido de “fim da consulta”. Mas “corpo ereto, fim da consulta?”. Para nós é óbvio, o sentido é claro, límpido, afinal quantas vezes isso aconteceu entre nós? Inúmeras. E corpo ereto subitamente, só aconteceu para dizer isso: “tá na hora”.
As palavras podem ser vistas como fenômenos do mundo para indicar a presença sensível dos objetos que designam. Elas teriam um sentido isolado, sem necessitar de outras palavras para as explicar. Seriam palavras-objeto, cada uma podendo ser vista como uma afirmação. Mas esse sentido da palavra não foi dado, por assim dizer, por um poder independente de nós. E por isso de nada adiantaria uma espécie investigação científica sobre o significada da palavra. Uma palavra tem o sentido que lhe foi dado por alguém.
Esta pessoa à minha frente, tem seu modo singular de produzir sentido às palavras que usa. Esse modo foi e é composto por suas relações sociais, por suas formas de compreensão dos mundos que a cercam e pelos usos lingüísticos a que foi exposta e que, de diversas maneiras, incorporou como seus. Como eu, pelas minhas.
Ela escolhe, por assim dizer, palavras (e gestos, expressões, tons de voz) que podem veicular os sentidos que pretende expressar.
Ao fazer essa escolha ela coloca na palavra – que em si é inerte – sentido, significado, algo vivo. É, portanto, pelo uso que a palavra adquire vida, comunica, possibilita que algo se torne comum a quem fala e a quem ouve. As palavras, restritas à sua materialidade, são apenas sons, desenhos gráficos – rigorosamente, nem palavras seriam.
As palavras, as frases, se entrelaçam no discurso, na comunicação, no falar um com o outro, formando o sentido. O sentido das palavras se faz pelo seu uso. Para cada um. Cada qual com seu estoque particular em que uma palavra pode guardar muitos sentidos.
O partilhante na clínica através de suas expressões faz (ou pode fazer) referências que me possibilitam, como observador, vislumbrar o que está em seu espírito. Eu posso, como clínico, estar num lugar em que o que importa na linguagem não é mais a sua capacidade de nomear coisas, mas, a de me possibilitar por palavras, frases, gestos, tons de voz, entrar em contato com aquilo que ele me traz de si.
A partir de seu uso eu posso descobrir o significado, por exemplo, de uma vassoura. O significado de vassoura não está vinculado vivencialmente com o sentido do dicionário, lexicográfico. A vassoura significa na medida em que tem algo a ver com minha vida, com meus interesses, como a uso (objeto ou pensamento).
Um partilhante, pintor, artista plástico, relata a importância da vassoura, em certo período, no seu processo de pintura. Durante os anos em que viveu em Berlim, pode trabalhar num enorme atelier, que lhe possibilitou produzir obras de grandes dimensões. Seu instrumento primordial para pintar eram as vassouras. Relata com vívida emoção as múltiplas e surpreendentes possibilidades plásticas que elas lhe proporcionaram. Com o uso constante as vassouras passaram a ter, o mesmo sentido, a mesma familiaridade que outros pintores têm com os pincéis, quando trabalham em menores dimensões. As vassouras passaram a ter um sentido muito distinto do que até então tinham tido para ele, e nem por isso deixaram de ser chamadas de vassouras. Quando durante as consultas pensava ou dizia “vassoura” era a este seu familiar instrumento de expressão plástica que a palavra se ligava.
Outro, desenhista e ilustrador, tem como um de seus personagens principais uma bruxa. Foram muitas as consultas em que o tema principal foi a sua vassoura voadora. Ela passou a ser o veículo pelo qual ele se permitia imaginariamente sair de sua angustiante situação atual para uma outra, a princípio mágica, em que ele encontrava grande satisfação. Nesse período, algumas vezes logo no início da consulta, me pedia permissão para “pegar a vassoura” e se transportar para aquele mundo. Nesse processo, a seu modo, podia, trazendo muitos elementos vividos nesse “outro mundo”, refazer os sentidos de suas difíceis vivências presentes no mundo cotidiano. Desde então, para ele – e para mim, com ele – “pegar a vassoura” passou a ter um sentido bastante preciso.
Ainda outra, recém casada, me conta:” finalmente! Tirei a vassoura de trás da porta!”, referindo-se, com isso, aos relatos nas consultas anteriores, das situações aflitivas que a hospedagem de sua sogra, lá do interior de Mato Grosso, vinha lhe trazendo. E que a vassoura, lá, “com toda certeza, ajudou a espantar”. Naqueles dias, quando ela pegava a vassoura para colocar atrás da porta, não era o instrumento de varrer sujeira que ela tinha em mãos: mas o de varrer sogra pra fora…
É essa relação com o seu uso que provê, em última instância, o significado para as coisas. A possibilidade de dar sentido às coisas pelas palavras, estabelecer significados lingüísticos, depende de uma capacidade, do sujeito que fala, de transitar pela língua, uma capacidade de usar/produzir signos que sejam compreensíveis ao(s) outro(s).
No uso da nossa língua do dia a dia seguimos as regras da gramática, que mesmo não determinando o nosso comportamento, nos dá os critérios para o seu uso. É pelo hábito, por processos de ação e reação no interior de uma comunidade lingüística que a aprendizagem de uma regra se realiza. Esse aprendizado das regras se dá no interior de quadros e situações muito diferentes.
O que é azul para uma pessoa? O que ela vê realmente quando diz ver uma coisa azul? Eu posso ver num mural uma cartolina colorida em que está escrito “a cor desta cartolina é azul” e ao olhar para uma mancha fazer a correspondência de que ela tem a mesma cor, portanto, posso dizer que esta mancha pode ser chamada de azul. Mas azul não é deduzida da impressão colorida que recebo de minha percepção. Ela obedece, portanto, uma regra, que em grande parte das vezes nem sabemos qual é.
As regras são, ao mesmo tempo, necessárias e convencionais. E, por natureza, públicas. É impossível crer e seguir uma regra a título privado, porque para ser estabelecida e ter um valor, tem que poder ser avaliada e ser adotada pelos outros. Uma linguagem privada, isto é, uma linguagem que necessariamente não é falada e compreendida a não ser por uma pessoa, é um non-sense – porque linguagem para ser linguagem pressupõe critérios de aplicação comuns.
Todas estas observações, importantíssimas na prática da filosofia clínica (tomadas de Ludwig Wittgenstein), dão um potente argumento contra o solipsismo – em que, a única realidade do mundo é a de um “eu” subjetivo.
Com esta concepção todo um modo de conhecer se estabelece. Não é mais através de uma interioridade escondida ou de um mundo íntimo de idéias e de sensações. Desfaz-se a certeza cartesiana, onde o sujeito está perfeitamente consciente de suas sensações e de seus pensamentos (penso logo existo). No lugar do “eu” abstrato, metafísico, surge uma pessoa de carne e osso, que já faz parte de uma comunidade, que em sua natureza é linguística.
Em clínica utilizamos – ele e eu – as regras gramaticais da língua que praticamos no nosso dia a dia e, ao mesmo tempo, estabelecemos outras, que são só nossas. Nascidas nesta nossa relação. Uma língua nossa, uma linguagem. Para um “público” restrito – ele e eu – mas não “privada”, de um “eu”, solipsista. Uma linguagem que é familiar, talvez, às vezes, só a ele e a mim.
Na situação clínica, este partilhante à minha frente vive dimensões de vida que são anteriores a qualquer compreensão que ele ou eu possamos ter, ali, na consulta. Wittgenstein para ilustrar esse fenômeno usa um desenho que dependendo de onde você olha (da “visada” do observador), ora pode ser um pato, ora uma lebre. Se, de um mesmo objeto – o desenho – pode-se ver 2 coisas diferentes, então a experiência de ver o desenho/objrto não se constrói só na nossa percepção, como quer boa parte de nossa tradição.
Não há um ver, simplesmente. Esta experiência coloca o “ver” entre a “visão” e o pensamento. Um ver “como”, que, portanto, já de antemão é conceitual. Neste sentido, uma questão filosófica. O que se vê não é “qualquer coisa”. É uma “coisa” (o pato) ou outra “coisa“ (a lebre). “Ver”, portanto, muda de sentido, é um outro tipo de experiência, que advertindo um aspecto, leva o observador a modificar a “visão” de um objeto, que, ele mesmo – objeto, não se modifica, é o mesmo.
Assim, ali de onde uma frase surge já há um mundo em movimento, que de algum modo já compreende usos possíveis da linguagem.O partilhante tem uma espécie de estoque de formas de linguagem, memórias de usos convividos (de uma palavra, p.ex), impregnadas de sentido(s). Esta pré-compreensão, anterior à construção da frase, nasce do que se pode nomear como o “próprio a si”, ou o “próprio de si”, singular, peculiar a ele. É desse lugar – enigmático à sabedoria humana, ainda hoje -que brota o sentido, se estabelece o significado que poderá ser com-partilhado.
Ao significar, escolher um signo para transportar o sentido, talvez já se produza algum nível de ruptura do pleno sentido original. Plenitude (desse “sentido original”) que deixa vagando no mar de uma subjetividade desconhecida, pedaços de si, como um náufrago, e que coloca os outros pedaços no barco da linguagem, seja como um passageiro, seja como um clandestino. Algo talvez escape: o sentido não cabe no significado. O sentido é individual; o significado é compartilhado. Mas os resíduos, eles mesmos, não constituem uma “subjetividade” de outra natureza. Não há porque supor que eles não se apresentaram, não se deixaram surgir, por efeito de uma força de caráter inibidor (como pressupõe boa parte das psicanálises). O caráter do que vem anunciado é fragmentado, parcial. Ele indica a aquele que ouve. Os signos, muitas vezes, trazem mais do que aparentam trazer.
Há que saber ouvir, deixar que os signos de seu estoque pessoal se impregnem desses sentidos, disso que vem pelas palavras, como passageiros ou como clandestinos. E neste ato, na escuta, seja de algum modo qualificada (a palavra) como vindo de um “estoque particular”, produzido e disponível nesta e para esta relação.
E talvez este seja o aspecto ético mais importante na clínica existencial no modo proposto pela filosofia clínica. Procurar ouvir o que vem de lá em seu(s) modo(s) próprio(s).
Para Wittgenstein a ética é aquilo que não podemos falar. Está no domínio do indizível, do insensato, inteiramente distinto do domínio da lógica e ciência – onde as proposições, através das palavras, já têm o seu sentido. A ética se refere aos valores originários, da existência e, mais amplamente, aos problemas da vida. O clínico, às vezes, se vê lançado contra as fronteiras da linguagem convivida, e nesse salto a ética é o que lhe resta. Apreender o que vem do outro a partir de si.
A arte, às vezes pretende ser uma tentativa de dizer o indizível. Em determinadas experiências estéticas a vivência pessoal de um espectador pode encontrar um ponto de acordo com o mundo que ele apreende em uma obra, como uma totalidade, tal como se apreende a expressão de um rosto ou a de um gesto. Estas são coisas que não se explicam, mas que se vive, se percebe. E que muitas vezes são ao mesmo tempo “comuns” ou públicas.
Linguagem e clínica. Agora, sim, já está um pouco mais qualificado o que é para mim, um filosofo clínico essa tal “disposição para a escuta”, essa condição para caminhar junto com esta pessoa à minha frente. Caminho que em grego é “odos” e para onde ele leva é “meta”. A filosofia clínica possibilita criar um método singular, para esta pessoa. Isso: singular, só dela. A partir de sua história, suas circunstâncias, seus modos de se relacionar, de viver, com sua estrutura própria de pensamento, seus modos de agir.
Esse pode ser o lugar da clínica. Aqui estamos ela e eu. Esse modo é irredutível a um modelo, a um tipo, ou mesmo a uma linguagem última. Dar conta dele, ou aproximar-se dele, é o meu desafio, a tarefa clínica.

Ética e Filosofia Clínica – Coisas que a escuta ensina

Há muitos anos atrás, quando eu tinha exatamente nove anos, eu ouvi de minha mãe o que para mim foi, continua sendo e quiçá não deixará de ser, um dos mais revolucionários conhecimentos que tive na vida. Foi assustadoramente revelador o quanto eu me escondia do encontro com a verdade, que não era um objeto nem outra coisa senão o que unia os meus olhos ao mundo: um ponto de vista da totalidade e o seu inverso. Faltava-me, até aquele momento, o espelho de outros olhos com que se pode melhor enxergar a vida. Até então eu pensava que o mundo não era mais do que eu pensava ser, e que as pessoas se enganavam quando discordavam de mim. O mais absurdo foi me dar conta, algum tempo mais tarde, que o autoconhecimento não viria só de um olhar-se para dentro, mas de muitos outros ângulos. Precisaria observar como os outros me viam, portanto, antes, de saber vê-los com seus próprios olhos. Haveria depois que achar a possibilidade de algum entendimento entre as nossas diferenças. E, por fim, por maior que fosse o conflito resultante, nunca esquecer que o mundo é mais do que qualquer um vê, mas só é inteiro até onde a vista alcança. Que estranha lucidez é essa que obriga a consciência a ser humilde e jamais poder ver o que existe além do olhar, excitando a curiosidade para o infinito? Naquele momento, o importante para mim foi descobrir que o mundo é sempre maior que todas as verdades do pensamento.
A pretexto do que não me lembro bem, ela me disse: “não é o cobertor que esquenta você, meu filho… é você que esquenta o cobertor”. O mundo, impactante e imprevisto, girou na minha cabeça. Eu, que me sentia tão quentinho por causa da coberta, não imaginava que a verdade vinha da perspectiva, que o erro era a falta de um outro olhar, sobre o qual tudo mais existia. A coberta e eu (as coisas e os pensamentos) éramos verdadeiros, mas nossa relação era falsa. Na época descobrira o princípio de toda filosofia: que pensar o óbvio é fechar os olhos para novas “des-cobertas”. Desde então frequentemente me perguntei a respeito das pessoas, das minhas certezas, sobre tudo o que se escondia além das aparências e sobre como funciona o pensamento. Sem dificuldades, um dia entendi que eu era filósofo. Como todas as coisas parecem ter pelo menos dois lados, o meu lado instigador de criança sempre ficou do lado de dentro. Foi assim que iniciei meus estudos sobre ética, sobre gente… não apenas sobre o que parece ser certo ou errado, mas sobre os critérios desse julgamento. Por fim, mais tarde compreendi na Filosofia Clínica, de Lúcio Packter, algo mais do que o “amor à verdade” – significado grego da palavra filosofia. Comecei a ouvir na alma as verdades do amor. Jovem há mais tempo, depois de filósofo, tornei-me psicoterapeuta.
Antes da Filosofia Clínica eu consultava os filósofos, suas questões e métodos, intentava ser fiel ao contexto e conflitos de cada época em que suas obras foram escritas, no desejo de quem sabe melhor entender a marca de seus pensamentos e a profundidade de seus alcances. Mas ainda não aprendera a pensar meus próprios problemas – meus e de meu entorno – a partir do que eu lera até então. Falha minha e não de meus professores. Todavia, estudando com Packter, algumas vezes ele me desconcertava com a simplicidade poderosa de certas perguntas a respeito de dramas psicológicos facilmente encontrados na clínica de consultório, como esta: “Will, o que Platão diria para uma pessoa que acabou de perder o emprego, tendo filhos para alimentar, pagar escola, aluguel etc, e que por isso entrasse em desespero? ”. Eu sabia o que Platão afirmava em seus livros, mas ainda não sabia pensar platonicamente os problemas cotidianos da vida. Vencido o susto e posto ao trabalho, finalmente concluía, não sem algum orgulho de mim mesmo, algumas hipóteses teoricamente satisfatórias ou pelo menos defensáveis numa pós-graduação. Quando a mim tudo parecia novamente tranquilo, eis que me vinha o Lúcio de novo: “Meu querido, você está me dando uma resposta acadêmica, uma explicação teórica… A questão é outra e não é para mim, mas para aquele homem desempregado, usando a linguagem dele, que não é filósofo, que não sabe mais o que fazer da vida, mal compreendido pela esposa, que chora e pensa em suicídio. O que você faria para ajudá-lo se ele lhe aparecesse na sua frente pedindo orientação? Quero dizer, como você faria isso a partir do que Platão mostrava ser possível orientar as pessoas pela filosofia? ”. Perguntas como essa eu sempre reformulava assim: “com quantos pensamentos se constrói um barco? ”. Assim como um construtor de barcos sabe pensar corretamente as diferenças entre o bom e o ruim, muitas vezes a vida nos pede para reconstruir caminhos e sorrisos perdidos. Com isso aprendi que, bem mais que um sentimento, o amor é inteligente.
Dizem que é preciso respeitar as pessoas como elas são… e isso parece muito justo. Mas afinal, como elas são? Curiosamente as respostas quase sempre se antecipam às perguntas. É hábito de a maioria ter prévias explicações daquilo que ela própria não saberia fundamentar. Se se diz que fulano faltou com bom-senso, caberia a pergunta: o que é bom-senso? Se um crítico afirma que a vida em sociedade nos torna neuróticos e prova isso afirmando que desde Freud essa verdade está mais do que provada, inclusive mostrando os livros em que isso é dito, porque haveríamos de aceitar isso como verdade tão facilmente? Poderíamos questionar se de fato existe tal “neurose” e se o método freudiano é científico, válido, atual etc; querer saber o que é ciência e até mesmo buscar descobrir se existe algum método capaz de garantir suficiente segurança para afirmar o que é a verdade a respeito do que se pesquisa. E ainda que encontrássemos tais garantias em uma explicação, possivelmente haveria outras diferentes teorias igualmente bem fundamentadas, com novas perspectivas e conclusões. De resto, do ponto de vista ético, parece não haver dúvidas sobre o princípio básico do respeito: antes do que é dito, saber escutar.
Uma escuta clínica normalmente se interessa por localizar doenças ou tratar doentes. A escuta na Filosofia clínica difere por questionar o conceito de doença e, por conseguinte, o de cura, especialmente quando o assunto, longe das questões de natureza puramente física e biológica, refere-se a aspectos psicológicos e comportamentais, em que tudo não passa de valores comparados com valores. Dizendo assim, não se pode entender por clínica, nesta específica filosofia de consultório, qualquer significado próximo de uma ideia de tratamento daquilo que alguns insistem chamar de “disfunções psicológicas”, e que não passam de simples ou complexos modos individuais de ser, sem comparações diminutivas. Não faz sentido argumentar que o filósofo erra por não possuir conhecimentos científicos necessários para o diagnóstico de psicopatologias, sobretudo porque uma das maiores competências da filosofia está em desfazer falsos problemas e, com eles, a prática equivocada de suas consequências. Os diversos conceitos psicológicos de doenças mentais são muito relativos, por serem culturais, e pela razão de não estarem nem um pouco isentos dos interesses políticos e econômicos, dos mecanismos de classificação, controle e “ajustamento” aos estados de pressuposta normalidade. Em termos éticos, é inaceitável rotular alguém por “normal”, ou qualquer variação do seu contrário, por enquadrar-se nas normas científica e socialmente estabelecidas pelos poderes vigentes ou pelo nivelamento da maioria. É nesse sentido, sobretudo pela dignidade moral, que a Filosofia Clínica alivia o peso dos equívocos de significado da acepção de “loucura” versus “normalidade” e seus correlatos mais brandos (“neurótico”, “desequilibrado/descompensado emocionalmente” etc.), porém não menos cruéis em seu estigma de exclusão. Não há nisso novidades que já não tenham sido ditas em multianálises do poder, por filósofos como Michel Foucault em A História da Loucura e por literatos como Machado de Assis, em O Alienista.
Antes que alguém se arrogue algum direito de poder sob o status de alguma verdade, é preciso que se diga: todas as noções de verdade são discutíveis, com métodos próprios segundo as características de cada tema. O conceito de “verdade” pode se resumir em três tipos de conhecimentos diferentes:

  • O objetivo (do mundo material e das ciências exatas),
  • O intersubjetivo (próprio da cultura, dos desejos de relação, das ciências humanas em geral etc.), e
  • O subjetivo (único e intransferível da percepção de cada individualidade).

Tais dimensões da realidade se interagem constantemente, pois a totalidade da vida as pressupõe a cada instante, no entanto jamais se confundem. Exemplos: ouvir um médico sobre as estatísticas de avanço da metástase de células cancerosas de um paciente, argumentando que Deus não permitirá isso acontecer, é, com total perda de objetividade, não escutar o médico e, possivelmente, nem a Deus. É bastante apropriado afirmar que gosto se discute sim, e com razão; quando isso é relativo a um tempo e cultura específicos, sem valor universal fora desses limites. Neste caso, entre vinicultores, é correto julgar a qualidade ruim de um vinho, afirmando gostos com valor de verdade intersubjetiva. Todavia, seria um crime ético exigir mínima concordância subjetiva a respeito de fé religiosa, da preferência de cores, exprimindo com exatidão os sentimentos, as vivências e sensações comuns, pois ainda que as experiências pessoais se assemelhem nas aparências, a mesma sede, o estado de humor, o paladar e o exato gole de bebida nunca se repetem na vida, nem para si mesmo.
Seja como for, a Filosofia Clínica em particular não se ocupa do que é relativo, embora uma pesquisa da história, da sociedade e da cultura se faça indispensável ao entendimento do seu primeiro interesse: o indivíduo. Tal filosofia se dedica ao que é subjetivo, às pessoas e suas relações íntimas com o meio que as contorna e da maneira ímpar como elas o fazem. O filósofo clínico, enquanto terapeuta, tem uma única finalidade: cuidar daqueles que lhe pedem orientação existencial, entendidos não como pacientes, mas como “partilhantes”. O jeito de ser de cada um, por mais estranho que pareça aos que se acham melhores, não merece ser “curado”. O filósofo, portanto, não cura, cuida.
Todos temos um eixo de gravidade individual, uma estrutura que nos define, um modo próprio de existir, em que nela se pode supor, quem sabe encontrar, o equilíbrio das forças internas. Tal centro de sustentação não se advinha à distância em ninguém. Como planetas no espaço, cada alma é um mundo próprio, movimentando em torno de si mesmo a mesma vida que o leva além. Somos assim: simultaneamente constituídos de um universo interior e de um contorno ambiente. Somos, pois, o resultado e a renovação desse encontro de grandezas. O que às vezes nos parece ser gigante, noutras não é mais que um grão perdido na imensidão das galáxias. A esta estrutura individual da psique humana Lúcio Packter nominou de “Estrutura do Pensamento”. Sem prejulgamentos sobre a personalidade de quem não conhecemos bem, somente com uma profunda ética da escuta é possível “des-cobrir” quais são os elementos psicológicos que formam o centro de influência determinante de uma pessoa, que leva tudo o mais a ser fortemente atraído para ele. Algumas pessoas são marcadas pela emotividade e é através dos sentimentos religiosos que buscam solução para todos os seus problemas financeiros. Outras são muito racionais na educação dos filhos, mas a força do raciocínio depende essencialmente dos humores da vida sexual, de tal maneira que para melhorar os estudos deles é preciso cuidar do erotismo dos pais. Há quem deixe tudo para depois, priorizando a vaidade de sentir atlético em idade avançada, sem nunca haver dado importância ao fato de achar-se feio. Etc. Por fim, cada qual possui, constrói, extingue, reinventa… seu jeito único de ser. Ninguém merece ser tão facilmente “explicado” com um modelo genérico de personalidade que reduz as infinidades de mundos individuais só para justificar alguma teoria de destaque, por mais bonita que seja.
De maneira bem simples, o interior de alguém pode ser descrito e conhecido por meio de três perguntas: o que, para este indivíduo é absolutamente determinante e inegociável, ao ponto de sua presença estimular a vitalidade e na sua falta perder totalmente o equilíbrio de suas forças e, talvez, a própria vida? O que para ele é importante de tal forma que lhe signifique realização pessoal e valha muito o esforço por alcançá-lo; cuja falta seja penosamente suportável, mas perfeitamente substituída por outra coisa ou experiência de igual valor? Além disso, o que lhe é de tão pouco ou insignificante valor que não lhe faz muita ou nenhuma falta? Nos imprescindíveis detalhes, as respostas nunca se repetem de pessoa pra pessoa e, nalguns pontos sim e noutros não, se diferem em cada época e circunstâncias durante a vida. Com espanto, uma investigação rigorosa desses pontos nos obriga a reconhecer que coisas para nós absolutamente sem importância são determinantes para pessoas muito próximas de nós. Costuma ser mais difícil quando a situação é inversa. Uma simples palavra não dita, certo perfume, uma brincadeira ou um gesto qualquer, sem que o saibamos, podem magoar, trazer imensa alegria, recuperar lembranças do passado, ser motivo de amizade por toda a vida… Coisas assim acontecem muito mais do que nos acostumamos a perceber. Quanto maior o conhecimento dos modos de ser de si próprio e dos outros, maior a capacidade ética de respeito.
Mas estas não são questões didáticas a serem feitas em um questionário de avaliação psicológica e entregues ao próximo, muito menos na ante-sala do consultório. Quase nunca são perguntas. São verdades ditas na história de cada um apenas para quem sabe ouvi-las. Ouvir sem prejulgar exige compaixão, para colocar-se o máximo possível no lugar do outro, além de muita filosofia… filosofia da linguagem, epistemologia, lógica, pesquisas de estética, conhecimentos de política, noções de religião, farmacologia, literatura etc. Com muita competência, foi o que Lúcio Packter deu à filosofia: um sentido psicoterápico, um caráter clínico, um método de escuta da subjetividade tal que permite reconhecer todas as categorias de entendimento do ser humano, todos os traços existenciais da individualidade, seus signos, valores, pensamentos, corporeidade, emoções, funções de comportamento etc., tudo, enfim, que se possa afirmar como característica da psique humana e que a história do pensamento já produziu. E porque a filosofia é qualquer coisa que não dogma, este método terapêutico põe-se permanentemente aberto, pelo diálogo, às renovações que ainda hão de surgir.
Fosse a vida didática e a palavra aceita, bastaria explicar isso melhor, com alguns exemplos, dirimir dúvidas e muitos problemas decorrentes estariam definitivamente resolvidos. Eventualmente alguém funciona assim, por certo não a maioria. Há quem aprenda somente quando há uma relação de confiança e amor emanados de quem ensina. Também há quem recuse professores ou amigos e decida aprender tudo sozinho; quem prefira livros a pessoas; quem precise ver para crer ou pensar a respeito etc. Pessoalmente, depois de muito estudo, eu ainda teimo em tirar novas lições daquilo que minha mãe me disse aos nove anos. Teria Freud razão ao me analisar? Seria a psicanálise uma verdade universal em todas as épocas, culturas, idades, contextos econômicos e psicológicos diferentes? Ora… basta que haja a possibilidade de uma única pessoa desigual no mundo, distante do preceito de quem julga, para se cumprir o dever ético de primeiro buscar conhecer aquele que se quer julgar, ter consciência dos vários critérios de julgamento, permanecer autocrítico e humilde, para só depois afirmar conhecimentos da individualidade de alguém. Modelos sociológicos e tipos psicológicos ajudam na compreensão geral e são absolutamente necessários como um ponto de partida, amparados na pesquisa séria dos que se dedicam à ciência. Contudo, defronte a singularidade do outro, face a face, nenhuma teoria pode antecipar ou substituir a escuta, para se evitar os monólogos da tirania e a máscara da bondade. Quem não souber a escuta, saiba o silêncio.

Um possível exercício filosófico clínico do “Poema em linha reta”, de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

Uma possível introdução

É comum, nos cursos de Formação em Filosofia Clínica, recorrer a textos literários, aqui especificamente a poesia, para exercitar-se no método terapêutico a que a FC se propõe.

Acredito que esse seja também um ótimo e apaixonante exercício mesmo para Filósofos Clínicos já habilitados, entendendo a literatura como um excelente campo de desvelamento da “natureza” humana e das questões existenciais que a envolvem.

Sabendo que a construção do processo terapêutico em FC pauta-se na historicidade, na história de vida da pessoa, que denominamos partilhante, faz-se necessário, dentro das possibilidades, conhecer a história do autor abordado e/ou da(s) personagem(ns), nesse caso o autor do poema, a fim de daí também levantarmos os exames categoriais (assunto/relação/tempo/lugar/circunstância) que contribuirão para situar a pessoa e melhor apreender sua forma de ser/estar no mundo, na medida em que vão sendo observados os tópicos de sua Estrutura de PensamentoEP e os sub-modos informais de que faz uso, possibilitando um olhar mais atento, levando-o a uma reflexão mais elaborada da(s) questão(ões) que apresenta.

Obs.: neste “ensaio” faremos apenas o levantamento de alguns tópicos, ficando os sub-modos associados a estes para um futuro trabalho.



Um possível “retrato” de Álvaro de Campos-AC

Ao falar de AC, faz-se necessário, mesmo que já do conhecimento de muitos, lembrar de Fernando Pessoa-FP, escritor/poeta português (13/06/1888 – 30/11/1935) que, além de manifestar-se ao mundo através de seus escritos/poemas usando o seu próprio nome, também o fez através de seus heterônimos.

AC é um desses heterônimos, um dos “outros” de si mesmo, que teve seu nascimento provável aos 15/10/1890, vindo a falecer, possivelmente, na mesma data do falecimento de seu criador, 30/11/1935.

Para conhecer um pouco AC e de sua visão de mundo, pensamos que nada melhor do que fazer uso de um excerto de um de seus próprios poemas, Tabacaria, escrito em janeiro de 1928:

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.(…)”.


É bom termos claro que esta é apenas uma pequena amostra do que AC teria relatado de sua historicidade se, porventura, tivesse sendo acompanhado por um Filósofo Clínico. Isso porque, em FC, não é possível estabelecer, no processo clínico, uma interseção entre o terapeuta e o partilhante, se aquele não tiver um conhecimento mais detalhado da história de vida deste, feito as devidas divisões e enraizamentos e os exames categoriais que lhe darão suporte para o desenvolvimento da clínica.
Uma possível clínica filosófica de AC
Bem, suponhamos que AC, durante a clínica, tivesse apresentado o “Poema em linha reta” ao terapeuta:
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

–  o FC, já tendo dado os passos iniciais da clínica e avançado no levantamento da EP do partilhante e dos sub-modos informais de que este faz uso para lidar com suas questões,
– também fazendo uso dos sub-modos formais que considerasse mais de acordo com sua visão do modo de ser daquele, e também considerando este poema específico dentro do contexto maior de vida do mesmo,
– passasse a levantar alguns tópicos
– e assim procedesse:
Obs.: fazemos uso de versos “em bloco” e/ou referenciados para melhor visualizar os tópicos que destacamos, o que não exclui uma continuidade do trabalho, sabendo que em FC não há uma “conclusão”, mas um constante ir e vir no processo de conhecimento de si e do outro.
Tópico 1 – Como o mundo me parece: a visão e representação de mundo da pessoa, suas referências do mundo externo.
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!

Tópico 2 – O que acha de si mesmo: como a pessoa vê a si mesma.

Obs.: aqui o “O que acha de si mesmo” pode estar associado à “Singularidade existencial”, ao “Papel existencial”, aos “Valores”.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Tópico 5 – Pré-juízos: verdades a priori e subjetivas que a pessoa traz em sua “bagagem de ideias” e como isso determina suas escolhas.

Que tenho enrolado os pés publicamente no tapete das etiquetas
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Tópico 11 – Busca: metas, objetivos: para onde se direcionam as ideias.
Obs.: associação com “Axiologia” e “Pré-juízos”.
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Onde é que há gente no mundo?
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Tópico 12 – Paixão dominante: ideias recorrentes, que aparecem com frequência.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza
.

Tópico 18 – Axiologia: quais os valores importantes e sua importância no conjunto da EP do partilhante.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

…estou farto de semideuses.
Onde é que há gente no mundo?
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana

Tópico 19 – Singularidade existencial: modo de ser único; vivência dos valores próprios; características essenciais que constituem uma pessoa.
Obs.: associado ao “Papel existencial” e aos “Pré-juízos”; também a “Termos agendados no intelecto” (as expressões utilizadas e seus significados próprios).

Podemos observar na sequência de “eus” repetidos ao longo do poema, de modo especial a repetição do termo “vil”.
Tópico 22 – Papel existencial: aquilo que é nomeado como sendo seu papel.
Obs.: associado a “Pré-juízos” e à “Paixão dominante”.
Nas repetidas vezes que se diz “vil”

Obs. Geral: Em todo o poema pode-se também sugerir que há uma presença do tópico “Armadilha conceitual”, conjunto de conceitos a que a pessoa está presa, o que não significa que isso seja bom ou ruim, mas que podem ou não ser “quebrados”, a depender do peso, do papel que isso tenha em sua EP. O mesmo se daria para “Princípios de verdade”, que são verdades subjetivas e o modo e com quem são compartilhadas.
Uma possível consideração “final”
Como mencionado acima, não há uma conclusão, pois para a Filosofia e especificamente para a FC a pessoa está em constante construção de si mesma em sua interseção com o mundo e com as pessoas, demais seres, objetos que o compõem e acontecimentos que dele fazem parte. Por isso só nos é possível fazer considerações.
Bom esclarecer que alguns dos tópicos utilizados foram os que selecionamos para ilustrar o Curso de Introdução à FC que oferecemos presencial e on line pelo Recanto da Filosofia Clínica de São Paulo/SP. Isso deixa aberta a possibilidade de novas buscas e descobertas pautadas na historicidade de AC/FP que está implícita mas, principalmente, está para além desse único poema.
Ressaltamos que o termo “possível” utilizado nas partes deste trabalho foi proposital, no sentindo de que entendemos que a FC é um método terapêutico e de investigação não fechado em si mesmo que, embora rigoroso e pautado no conhecimento e na experiência da Filosofia e do filosofar, busca adequar-se ao universo de cada pessoa que procura a clínica e que também não está isento do olhar de cada Filósofo Clínico.
Que a literatura, especialmente a obra de AC/FP e a convivência com gente real e/ou imaginária continuem nos instigando nesse apaixonante exercício da Filosofia Clínica.

Paulo Roberto Grandisolli
[FClínica/Inst Packter; Filosofia/UCMG; GSS-FSP/USP] filósofo clínico, professor, administrador serv saúde, consultor