Filosofia e Política

A dúvida, a inquietação, a contestação e a busca são próprias da investigação filosófica. As filosofias nasceram dessas atitudes diante das questões que instigam e inquietam mulheres e homens ao longo da história, desde os “mistérios” da natureza, passando pelas questões cruciais da existência humana, como o sofrimento, a morte, as angústias, até as questões éticas, políticas, sociais e culturais. No filosofar tudo cabia e tudo cabe, desde que o exercício do pensamento não permaneça no mero senso-comum ou apenas no bom senso, que não se reduza a mera especulação e teorização, mas traga contribuições e transformações concretas e necessárias para a vida cotidiana, em termos do que se chama filosofia da práxis.
Práxis, aqui entendida como um pensamento, uma reflexão que estimula a prática; mas uma prática que instigue o constante pensar, repensar e refazer conceitos, teorias etc, objetivando a transformação da realidade. Práxis não é mera prática; mas, ação, conduta. Ação e conduta que se identificam com o próprio modo de pensar, ser a agir no mundo, não só enquanto ação de indivíduos, mas principalmente enquanto ação coletiva. Um pensar e agir coletivos que levem a uma transformação social. Rosa Luxemburgo (Polônia/Alemanha, 1871-1919), Antonio Gramsci (Itália, 1891-1937), Adolfo Sánchez Vázquez (Espanha/México, 1915-2011), Paulo Freire (Brasil, 1921-1997), Carlos Nelson Coutinho (Brasil, 1943-2012), são alguns desses filósofos que contribuem para nosso entendimento acerca da práxis. Vale lembrar, principalmente, Karl Marx (Alemanha/Londres, 1818-1883), ao afirmar que os filósofos, até então, haviam interpretado o mundo; a questão mais importante é transformá-lo.
Atualmente, em várias partes do mundo, particularmente no Brasil, vivemos num chamado estado de exceção, que no dizer do filósofo italiano Giorgio Agamben (1942-), é aquele que “apresenta-se como forma legal daquilo que não pode ter forma legal”*; uma frágil democracia se mescla ao autoritarismo. Em nosso país, após um golpe midiático-político, instalou-se um governo declaradamente submisso às oligarquias econômico-financeiras nacionais e internacionais cujo propósito é consolidar o neoliberalismo, em que o mercado tem absoluta liberdade para ditar e implantar as regras da política, restringindo a ação do Estado sobre a economia. Daí os chamados direitos civis e sociais passarem a ser gerenciados pelas grandes corporações como mercadoria, imperando a suposta “livre” negociação, sobretudo nas relações de trabalho. Sabe-se daí, como diz o ditado, a corda sempre arrebenta do lado mais fraco. E toda essa forma de pensar e gerir a política estende-se como uma “práxis perversa” para todos os aspectos da vida humana, como a educação, a saúde, a cultura. Sejam observados projetos como o escola sem partido, o escanteio de matérias como Filosofia e Sociologia nos currículos escolares, a privatização de serviços básicos como energia e saneamento, a expropriação de territórios de populações indígenas e quilombolas, as intervenções em exposições e performances artísticas, entre outras, que temos presenciado ultimamente.
Enfim, o estado de exceção expõe um obscurantismo nas áreas do direito e da democracia, instaurando-se um estado policialesco, no qual o judiciário age como mandatário supremo, à guisa dos outros poderes, todos mancomunados, espetacularizando ações, inquéritos, conduções coercitivas, prisões… E os grandes meios de comunicação, especialmente a TV, corroboram e contribuem para levar ao delírio uma grande parcela da população que não foi e não é estimulada a pensar por si mesma, repetindo o pensamento único veiculado e tido como verdadeiro. Daí, pensamentos e comportamentos preconceituosos e discriminatórios (xenofobia, LGBTfobia, misoginia, linchamentos, intolerância religiosa etc) afloram e se sentem legitimados por boa parte dos que ocupam e usurpam cargos no Congresso, nos Supremos Tribunais e demais instâncias governamentais.
Mas, e daí? Para que serve afinal a filosofia? M. Gadotti, filósofo brasileiro, em artigo publicado no periódico Reflexão (PUCCAMP)**, já tematizava essas questões aliadas ao ensino e estudo da Filosofia. Naquela época, então sob uma ditadura militar, constatava que “na ordem do sistema capitalista, a única filosofia tolerada é a filosofia da alienação. O capital precisa cada vez mais de homens alienados. (…) As discussões sobre a opressão e a ditadura certamente não terão lugar numa classe de física ou de matemática”. Afirmava também que “a filosofia deixou de ser o lugar do debate dos grandes (e graves) problemas do homem contemporâneo. (…) Pretensiosamente, a filosofia dos especialistas, dos filósofos por profissão, recusa-se a tratar dos problemas concretos e urgentes dos homens, para servir às organizações políticas e econômicas do capitalismo”. Vivemos uma situação análoga. Daí a urgência de nos reapropriarmos da filosofia, entendermos a necessidade de um filosofar, como “exercício do livre debate, ensinar e aprender a problematizar o que parece evidente, necessário, correto; ensinar e aprender a contestar (…). Nesse sentido, cada vez mais o filósofo me parece como o homem da suspeita, o homem que não duvida apenas, mas vai além da dúvida, suspeita sistematicamente e sobretudo das evidências, das coisas que se apresentam de forma definitiva, das coisas claras, que há sempre algo que não se mostra, que está escondido atrás das aparências, suspeita da parcialidade daquilo que vê”.
Consideramos parte essencial do pensamento filosófico ver para além das aparências e debruçar-se sobre as questões do cotidiano, de um sistema que submete homens e mulheres como meros componentes de uma pretensa “máquina pensante” e lhes incute a ideologia de se tornarem, como diz o filósofo chileno V. Safatle***, empreendedores de si mesmos, cujos pensamentos, corpos e desejos são controlados pelos grandes “centros de tecnologia-entretenimento-informação” formadores de “um tripé basilar da economia mundial”, reduzindo-os a objetos e negando-lhes as individualidades e o primordial direito ao pensamento e ao agir autônomos. Defendemos um filosofar que colabore para o restabelecimento e a consolidação da democracia brasileira, inclusive pensando noutros modelos, que não apenas o modelo democrático representativo, como as democracias comunitárias e participativas, em que as pessoas, o povo possa se pronunciar em sua soberania e como origem do poder político.
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*Giorgio Agamben, Estado de Exceção, 2004.
**Moacir Gadotti, Para que serve afinal a Filosofia? Reflexão, PUCCAMP, 4/13, jan-abr/79.
***Vladimir Safatle, O Cirucuito dos afetos – Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo, 2015.
Marcelo Bezerra Oliveira / Paulo Roberto Grandisolli

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