Poesia e atenção são fenômenos coextensivos. É basicamente disso que trata o livro de Lucy Alford ( Forms of Poetic Attention – Columbia University Press), e a partir do qual tentarei uma aproximação entre poesia e clínica; mais propriamente, entre poesia e a escuta em clínica.
Uma clínica que se pretende não violenta, que possibilite a abertura do campo de linguagem e de relação com o mínimo de violência, resistindo ao englobamento e metabolização significativa do discurso do outro, é a clínica da escuta intransitiva. Uma escuta amplamente aberta, concentrada na atenção antes do surgimento dos objetos da atenção. Uma escuta por meio da qual as palavras não são objetificadas e concretizadas a partir do discurso, mas sim uma espécie de escuta intencional, na qual nos situamos junto ao dizer do outro sem o englobamento do dito, possibilitando a manutenção da abertura do dizer inaugural sempre a cada vez mais uma vez. O singular é o diferente diferenciando-se no tempo finito de ser. Nunca o alcançamos. Falamos com o singular sempre em uma relação de distância abissal. A clínica é sempre a clínica diante do abismo que nos separa do outro. O outro é o abismo insondável.
A poesia se refere a uma certa forma de atenção, em sentido essencial. Não apenas como condição para apreender ou imaginar o mundo por meio de objetos intencionais; poemas lidam com a produção, o treino e a prática da atenção. A poesia, em sua forma particular de atenção, produz presentificação e, em seu ritmo, pode produzir e invocar a imagem, a sensação, a memória, mantendo viva a presença, performando aquilo que descreve, oferecendo-nos uma oposição a uma apropriação de mundo orientada por conceitos.
O poema pode modificar o estado de espírito dos leitores, produzir uma impressão de tempo em suspenso, fornecendo uma abertura por meio da qual o que está ausente e remoto se torna presente; uma espécie de presentificação poética que é também um acontecimento da verdade: desvelamento do Ser. Desvelamento do Ser refere-se a uma situação que permite que as coisas sejam experimentadas de uma forma absoluta, “nelas e por elas mesmas”. Buscar uma forma de atenção intransitiva é também evitar qualquer atitude mais forçosa e ativa, o que levaria o Ser de volta à soleira que ele precisa atravessar a fim de se mostrar, impedindo a imaginação de emergir. Podemos retomar aqui a diferenciação entre as formas de cuidado de Heidegger: cuidado próprio, no qual sustentamos, em seu peso e medida específicos, o campo que se abre a partir da relação com o outro, não englobando-o significativamente, e cuidado impróprio, quando invadimos e norteamos os caminhos que são sempre os caminhos do outro, os caminhos da diferença. A existência é intransferível e contra isso não podemos ir de encontro sem que ao mesmo tempo tal intransferibilidade não se anuncie com mais força e nitidez.
A produção de imagens na consciência humana é normalmente filtrada por conceitos e padrões discursivos enraizados a partir da tradição. É essa operação que reduz nossa imaginação à significados discursivos e produção de sentidos. Segundo a autora, a linguagem poética (em especial em sua forma prosódica) “previne esse nível e função elevados da consciência humana emergir, diminuindo o nível de tensão da consciência (Husserl). Contra o pano de fundo da evolução, seriam “regressivos”, propiciando a presentificação em uma dimensão ontológica da imaginação em vez de ocorrer na dimensão do sentido”. A diferença entre sentido e imaginação pode ser a origem e a razão para a impressão geral de que poemas têm um impacto mais intenso e emocional (são mais próximos da nossa percepção e do nosso corpo) do que textos escritos e recitados em prosa.
A atenção não é apenas uma entre as múltiplas funções e condições que constituem a base da poesia; antes é, na verdade, aquela dimensão central da consciência humana que a poesia, devido à sua estrutura específica, é capaz de desafiar em um nível particular de complexidade e é, assim, capaz de desenvolver e expandir. Nesse sentido, poesia tanto pressupõe quanto contribui para a formação de uma capacidade de atenção mais complexa e potente.
Nesse sentido, o desafio que as formas poéticas impõem às nossas formas de atenção podem contribuir para uma espécie de refinamento do exercício da escuta do outro. Na medida em que essas formas nos desafiam a permanecer na fenomenalidade própria do fenômeno, habitando, no limite, o que se deixa desvelar no tempo próprio do desvelamento, podem contribuir para uma maior resistência ao englobamento discursivo e consequente produção de sentidos do mesmo no outro. A linguagem poética pode contribuir para que o clínico deixe o outro ser o outro. A escuta em uma clínica não-pastoral é a escuta que tenta se manter, no limite, em escuta poética.
A presente colaboração teórica terá como referência principal o terceiro capítulo de Pedagogia da autonomia, um dos últimos textos deste autor, publicado especificamente em finais da década de 1990.
É precisamente nesta obra que Freire expõe sua compreensão sobre a escuta, o diálogo e o cuidado como inerentes à prática pedagógica libertadora. Sua afirmação acentua que a escuta é uma exigência.
Faz-se necessário considerar que há um pressuposto antropológico fundamental primigênio e fundante da epistemologia freireana, perpassando toda a sua prática pedagógica: os seres humanos somos seres inacabados; ou seja, não somos, mas estamos sendo. Trata-se, portanto, de uma característica ontológica. Vivemos e existimos em processualidade, em busca de ser, que o autor nomeia como SER–mais. Esta condição humana se dá mediante a construção da cultura, a criação e a transformação daquilo que chamamos natureza, pela atividade laborativa ou trabalho; fazendo uso da expressão verbal, a fala, a palavra e diversas outras linguagens ou semioses.
Toda a teoria freireana se volta para a afirmação da dialogicidade e da horizontalidade no processo intersubjetivo do conhecimento. De modo que não deve haver separação entre conhecer, ensinar e aprender. Quem ensina aprende e quem aprende também ensina, reciprocamente. Aqui, podemos fazer a substituição do binômio educador–educando, por filósofo/filósofa clínica–partilhante. Partindo dessa situação chamada situação gnosiológica, como momento de conhecimento, é que o autor explicita a necessidade do diálogo, do cuidado e da escuta. Sendo importante não esquecer que toda terapia consiste num processo eminentemente dialógico. O termo terapia, inclusive, tem sua origem num verbo grego que significa cuidar (terapeuw). O exercício da clínica é o exercício do cuidado para com as pessoas. Mas, um cuidado recíproco, entre terapeuta e partilhante; uma vez que Paulo Freire reafirma o conhecimento como processo que se dá na intersubjetividade. Porque a terapia também é um momento de conhecimento. E ninguém conhece sozinho, mas dialogicamente, com outros. Não há um eu penso, eu conheço, desligados do nós conhecemos, do nós pensamos. Assim como também é um processo educativo, pois filósofo/a e partilhante compartilham ideias, significados, perspectivas e visões de mundo.
É importante distinguir que o diálogo não é conversa nem bate-papo, mas o encontro entre pessoas que se respeitam ao pronunciar seus mundos, mediante a horizontalidade da comunicação. E não pode acontecer numa relação antagônica. Não se trata de igualdade niveladora, mas de cuidado na comunicação, pois a comunicação e a inteligibilidade se dão simultaneamente. A relação entre pensamento-linguagem-contexto não pode ser rompida. Vale lembrar o que a Filosofia Clínica chama princípios de verdade. E aqui surge outro componente importantíssimo nesta relação: o silêncio. Escuta, diálogo, cuidado e silêncio integram todo o momento deste encontro. Tais categorias possuem uma natureza ética. Numa referência direta a isto Freire afirma que “no processo da fala e da escuta a disciplina do silêncio, a ser assumida pelos sujeitos que falam e escutam, é condição “sine qua” da comunicação dialógica… É preciso que quem tem algo a dizer saiba, sem sombra de dúvida, não ser o único ou a única a ter o que dizer; nem o que tem a dizer é uma verdade acabada e alvissareira (…) Ao contrário, o espaço do educador democrático, que aprende a falar escutando, é cortado pelo silêncio intermitente de quem, falando, cala para escutar a quem, silencioso, e não silenciado, fala. A importância do silêncio no espaço da comunicação é fundamental. De um lado, me proporciona que, ao escutar, como sujeito e não como objeto, a fala comunicante de alguém procure entrar no movimento interno do seu pensamento, virando linguagem; de outro, torna possível a quem fala, realmente comprometidocom comunicar e não com fazer puros comunicados; escutar a indagação, a dúvida, a criação de quem escutou. Fora disso fenece a comunicação. Escutar é obviamente algo que vai mais além da possibilidade auditiva de cada um. Escutar, no sentido aqui discutido, significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro…”
Aceitar e respeitar a diferença é, deste modo, atitude sem a qual a escuta não pode acontecer. Portanto, escutar, respeitar, fazer silêncio, respeitar a palavra e os silêncios, estão dialeticamente relacionados e integram o cuidado terapêutico-filosófico.
Tudo o que sei acerca do método é que, quando não estou trabalhando penso as vezes que sei algo, mas quando estou trabalhando está bem claro que não sei nada.” John Cage
A ideia de uma clínica não pastoral se aproxima da ideia de uma espécie de estrutura do cuidado que se dá de modo próprio (Heidegger), ou seja: ao invés de ser uma clínica conteudista, que salta para o interior da literalidade e significância da linguagem e indica, guia ou sugere (matematização da existência) os modos de ser do outro, ela se retrai, se inclina e se sustenta, no limite da linguagem, abrindo um espaço possível para a abertura de campos de sentido próprios (e não a partir dos campos de sentido pretensamente positivos da tradição) e a possibilidade da conquista de uma significatividade própria, ou seja, liberando o outro para ser outro. É uma clínica da diferença, tomando por empréstimo o termo Deleuziano, onde a ideia de identidade é substituída pela de movimento incessante que engendra as formas a partir de si mesma. O outro é um abismo insondável, e só pode ser acessado formalmente, e qualquer tentativa de teorização a partir de estruturas teóricas apriorísticas se constitui na mais velada forma de pastoreio.
Se a escuta é, pretensamente, a principal atividade do terapeuta, como se daria a escuta em uma clínica não pastoral? Colocar-se à escuta própria da linguagem é experimentá-la para além dos hábitos da fala (o que não significa a rejeição desses hábitos) e expor-se ao domínio do estranho; tal estranheza não se dá sem a sensação por vezes claustrofóbica de angústia e solidão, pois nosso pensamento calculador e nossa linguagem habitual — imediatamente compreensível — tornam-se impotentes e falhos diante de acontecimentos inusitados que desequilibram nossos pequenos hábitos e costumes. Cabe ao clínico “não pastoral” inclinar-se e sustentar-se diante desse abismo, abrigado no espaço de intimidade (proximidade) da relação.
Uma clínica que quer estar a serviço do que existe precisa se organizar em torno de uma categoria livre, não sistemática, inassimilável, que não possa ser apropriada por nenhuma lógica operativa ou funcional. Às vezes é a categoria de natalidade, ou de começo. Às vezes é a categoria de liberdade, ou de emancipação. Às vezes é a categoria de diferença, ou de alteridade, ou de acontecimento. Às vezes é a categoria de abertura, ou de catástrofe. Em qualquer caso, uma categoria que tem a ver com o não-saber, com o não-poder, com o não-querer, e que não se pode definir nem tornar operativo, mas sim que, de algum modo, só se pode cantar, musicar, ritmar. Há algo no que fazemos e no que nos acontece que não sabemos muito bem o que é, mas que é algo sobre o que temos vontade de falar, e de continuar falando, de cantar, e de continuar cantando. A vida viva, aberta à sua própria abertura, por vezes de modo sincopado, por vezes de modo elevado, por vezes de modo caótico…
A clínica não pastoral seria a clínica enquanto experiência, e não experimento. Se a lógica do experimento produz acordo, consenso ou homogeneidade, a da experiência produz diferença, heterogeneidade e pluralidade. Se o experimento é preditível e previsível, a experiência carrega em si uma dimensão de incerteza que não pode ser reduzida. Posto que não se pode antecipar o resultado, a experiência não é o caminho até um objetivo previsto, mas sim uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem “pré-ver” nem “pré-dizer. O sujeito da experiência tem algo de um ser que atravessa e é atravessado pela existência, que simplesmente “ex-iste” de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente. Tanto nas línguas germânicas como nas latinas, a palavra experiência contém inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo. A clínica é travessia e perigo, assim como a existência.
Se chamamos de existência a essa vida própria, contingente e finita, a essa vida que não está determinada por nenhuma essência nem por nenhum destino, a essa vida que não tem nenhuma razão nem nenhum fundamento fora dela mesma, a essa vida cujo sentido se vai construindo e destruindo no viver mesmo, podemos pensar que tudo o que faz impossível a experiência faz também impossível a existência. E tudo o que faz impossível uma clínica não pastoral faz também impossível a clínica enquanto experiência, tornando-a experimento conduzido por um ou uma terapeuta, impossibilitando, assim, que o outro seja atravessado por experiências (por meio da linguagem própria, do silenciamento do mundo? Por meio da substituição das muitas palavras do mundo pelas poucas e simples palavras do ser? Por meio da relação de intimidade entre dois indigentes?). Em um mundo pobre em experiências, como bem nos alertou Walter Benjamin, é incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre. Uma clínica não pastoral se apresenta como uma clínica que luta com ardor, diante e ciente da dificuldade imanente a tal clinicar, para que experiências se tornem possíveis em meio ao que denominamos terapia, essa experiência tornada experimento pela tradição.
“E qual é o propósito de escrever música? Um, claro, é o de não lidar com propósitos, mas com sons. Ou a resposta pode ser dada sob a forma de um paradoxo: um despropósito proposital ou uma brincadeira sem propósito. Essa brincadeira, contudo, é uma afirmação da vida – não uma tentativa de dar ordem ao caos, nem de tentar melhorar a criação, mas simplesmente um modo de despertar para a própria vida que vivemos, que é tão boa se tiramos de seu caminho o nosso intelecto e o nosso desejo, deixando-a agir a seu modo.” John Cage
Em se tratando de um curso de filosofia clínica, cabe começar a perceber quais são as próprias representações de mundo (Tópico 1), como também a representação de mundo das/os autoras/es indicadas/os. Com a representação de mundo podemos perceber outros tópicos: axiologia, buscas, estruturação de raciocínio, princípios de verdade, modos e formas de conhecimento etc.
O cuidado com a linguagem que procuramos ter busca mais do que simplesmente prestar atenção à etimologia dos termos: tentamos exercitar uma aproximação com a fragilidade e com a dificuldade de tratar de algo tão delicado que é a clínica existencial.E isso parece que só é possível quando estamos dispostos a transitar pelo incerto e desconhecido.
Por sinal, antes de ser uma relação de conhecimento, é relação ética, ou seja, abertura para algo que não é “tematizável” ou assimilável. Sinto, às vezes, que as discussões ainda tendem a transcorrer no âmbito do que pode ser tematizado e assimilado.
Para mim, discutir abstratamente as/os filósofas/os e suas ideias consiste em permanecer no espaço temático da filosofia. Espaço este válido e legítimo como o de qualquer outra disciplina. Esse espaço do “tematizável”, seja por qual disciplina for, ainda é um espaço estranho ao fenômeno clínico, ainda é o espaço disciplinar de exercício do poder do conhecimento e, portanto, estranho à filosofia clínica.
A clínica filosófica, por ser experiência ética – simplesmente estarem relação com outrem – ou seja, abertura para uma qualquer singularidade, única e absoluta em si mesma, é um espaço de exercício de acolhimento e cuidado. Talvez, por isso mesmo se trate aqui de um outro tipo de potência: a potência de não encobrir o fenômeno com outras luzes, de fazer espaço, de dar um passo ao lado…
Dentre as múltiplas vozes que habitam a clínica não pastoral, a voz silenciosa – a voz sem voz do mistério – figura como condição imanente à uma clínica que não se pretende desveladora do estranhamento que nos atravessa enquanto seres que existem. A clínica sem lacunas, debitaria do pensamento freudiano e do conceito de inconsciente – signatárias da relação de causa e efeito – busca explicitar e fundamentar o que não é passível de fundamentação. Existir ultrapassa qualquer conceito, como bem disse Clarice Lispector. Por outro lado, a linguagem é nossa morada, como citou Heidegger, e é com ela que nos havemos a todo instante.
Clarice, com sua escrita transbordante de poesia, e Heidegger, com sua reflexão filosófica, pensaram a linguagem na dimensão do estranhamento, fato provocador para que o homem possa experimentar a linguagem para além dos signos linguísticos desconectados da existência. A linguagem, a partir dessas duas compreensões, é um espaço de invenção, onde todas as potencialidades do indivíduo são despertadas para dizer o mundo e a vida na contingência das palavras. Ambos pensaram a linguagem fora dos padrões linguísticos e aproximaram, com isso, a filosofia da poesia, sem, no entanto, descaracterizar a linguagem de cada uma. A linguagem poética é pensada como o caminho que nos leva de volta para o sentido genuíno da existência, um sentido subjetivo que ultrapassa a trivialidade de nosso cotidiano.
Um acontecimento nunca cabe no que nós queremos dizer. Há uma dimensão do escrever e do dizer que não subsiste para provar, para demonstrar ou para esclarecer, mas para existir no limite da linguagem, no limite do que há verdadeiramente para dizer. Busca-se algo que escapa ao entendimento, o que não quer dizer que escapa ao ser singular.Os fatos, narrados por meio dos modos convencionais do pensamento linear e do modelo re-cognitivo, trazem a marca da ânsia das informações precisas, locupletadas por significações estandardizadas pela tradição. Os acontecimentos, por sua vez, se desenvolvem a partir do fundo vazio e da liberdade que faz vir à tona o caos criador das palavras.
Os mistérios que nos habitam em silêncio são acontecimentos transfiguradores que extrapolam os fatos reais em uma desorganização na ordem. E na cadência antimelódica dos acontecimentos silenciosos e velados de nossa existência, o mistério irrompe em fascínio e improviso, descosturando o há muito costurado, fraturando o há muito engessado, “desmundanizando” o há muito “mundanizado” .
Uma clínica não pastoral é uma clínica cuja estrutura do cuidado se dá de modo próprio, ou seja: ao invés de ser uma clínica conteudista, que salta para o interior da literalidade e significância da linguagem e indica, guia ou sugere os modos de ser do outro, ela se retrai, se inclina e se sustenta, no limite da linguagem, abrindo um espaço possível onde a possibilidade para a possibilidade da concretização seja conquistada por si mesma a partir da conquista do próprio. É uma clínica da diferença, tomando por empréstimo o termo Deleuziano, onde a ideia de identidade é substituída pelo movimento incessante que engendra as formas a partir de si mesma. O outro é um abismo insondável, e só pode ser acessado formalmente, e qualquer tentativa de teorização a partir de estruturas teóricas apriorísticas se constitui na mais velada forma de pastoreio.
Colocar-se à escuta própria da linguagem é experimentá-la para além dos hábitos da fala e expor-se ao domínio do estranho; tal estranheza não se dá sem a sensação por vezes claustrofóbica de angústia e solidão, pois nosso pensamento calculador e nossa linguagemhabitual — imediatamente compreensível — tornam-se impotentes e falhos diante de acontecimentos inusitados que desequilibram nossos pequenos hábitos e costumes. A linguagem poética experimentada nas obras de Clarice e pensada nas obras de Heidegger é a linguagem irreversivelmente estranha, pois ela não nos serve para prestarmos conta sobre nossa existência, não nos fornece nenhuma informação sobre os entes, não nos ajuda a resolver e nem dizer nada de importante para os negócios humanos, não causa nenhum efeito; não classifica nada, não nos diz o que é o bem e nem o que é o mal, escapando, assim, de toda justificação teórica ou moral. Desse modo, habita-se a linguagem e se tende,por excelência, a construir, edificar e a criar no sentido de poiesis. Nesse sentido, é a linguagem quem nos domina.
Experimentar a linguagem como linguagem é colocar-se no vazio e ser tocado pelo nada de si mesmo. Desse modo, escapa-se, mesmo que por instantes, dos falatórios que exprimem a compreensão mediana que tudo compreende sem nada compreender propriamente, fechando a possibilidade de um dizer, de um escrever, de um ler e de um escutar atento à voz da linguagem originária. Pensar em nada, ainda mais em tempos de pensamento acelerado, é uma conquista de compreensão existencial da linguagem.
Concluindo, a literatura de Clarice Lispector e a filosofia de Martin Heidegger assumem a exigência de penetrar na essência da linguagem mediante o apelo da própria linguagem, liberando a linguagem enquanto possibilidade para ascender ao impenetrável que se oculta na própria linguagem. E tomando o mistério como a mais alta expressão da verdade, abre-se caminho para uma clínica que respeite a abissal distância que nos separa do outro, esse ser que habita a linguagem e que por meio dos limites da mesma pode reconquistar-se a si mesmo. Cabe ao clínico “não pastoral” inclinar-se e sustentar-se diante desse abismo, mas sempre abrigado no espaço de intimidade da relação.
Referências
BEZERRA, Cícero. Clarice Lispector: quando Deus acontece. Rio de Janeiro: Via Verita, 2021.
HEIDEGGER, M. A caminho da linguagem. Tradução Márcia de Sá Cavalcante Schuback, Petrópolis: Vozes, 2003.
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante Schuback, Petrópolis: Vozes, 1993. Parte I.
LISPECTOR, C. Um sopro de vida (pulsações). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves,Editora,1997.
LISPECTOR, C. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
NUNES, Benedito. Passagem para o poético; Filosofia e poesia em Martin Heidegger. S Paulo: Ática, 1992
APROXIMAÇÕES EPISTEMOLÓGICAS: PAULO FREIRE e GASTON BACHELARD
Marcelo Bezerra Oliveira*
Paulo Freire (1921-1995) e Gaston Bachelard (1884-1962) são contemporâneos em termos históricos e em perspectivas teóricas, por pertencerem ao construtivismo dialético-fenomenológico. Ambos compartilharam a afirmação básica da historicidade do conhecimento. Este é o traço geral que os aproxima, em suas características múltiplas e diferenciadas. Nestas anotações consideraremos somente alguns capítulos dos volumes citados na bibliografia.
Paulo Freire elabora sua gnosiologia tomando como base o binômio natureza e cultura, estabelecendo a distinção fundamental entre ambas; compreendendo por natureza tudo aquilo que os seres humanos encontram no mundo e que não foi criado por eles; e por cultura tudo aquilo que é construído pelos sujeitos humanos, tomando como objeto de transformação a natureza, mediante o trabalho. Natureza, trabalho e cultura são conceitos básicos para a compreensão da epistemologia freireana. Aqui, por enquanto, não vamos adentrar na questão da historicidade do próprio conceito de natureza. Apenas destacaremos as teses da epistemologia freireana, com as referências que faz à epistemologia de Bachelard. Não se trata de estabelecer paralelismo entre ambos. Daremos destaque para duas obras de Freire: Pedagogia da tolerância e Pedagogia dos sonhos possíveis. De Bachelard – A poética do espaço e O novo espírito científico.
Para Paulo Freire o ser humano está sendo no mundo com outros; como ser inacabado, inconcluso e consciente de sua inconclusão; que se constitui pelas relações com outros e o mundo cultural que inventa ao fazer história. O ser humano não se naturaliza, mas se historifica. A historicidade já aproxima os autores, por afirmarem essa dinâmica dos seres humanos e dos saberes que constroem.
A construção do conhecimento, em Paulo Freire, acontece no confronto intersubjetivo. O conhecimento é construído coletiva, social e culturalmente. Não há um saber produzido exclusivamente pelo indivíduo. O conhecimento se dá na relação dialógica, na dialogicidade entre dois ou mais sujeitos. Por conseguinte, não há um “eu penso”, “eu conheço”, desligados do “nós conhecemos”, “nós pensamos”. Não é o “eu penso” que constitui o conhecimento, mas o “nós pensamos” é que estabelece o “eu penso”, “eu conheço”. A dialogicidade é constitutiva de sua ontologicidade, de sua condição como ser-no-mundo-com-outros. Certamente neste modo afirmativo da intersubjetividade Freire se diferencia de Bachelard, que ainda permanecia na perspectiva da teoria clássica tradicional do conhecimento concebido como relação entre sujeito-objeto, embora, evidentemente, tivesse consciência da construção coletiva do saber científico.
Aproximam-se em suas epistemologias por não desligarem a construção do saber científico da atividade filosófica. Bachelard se refere constantemente à filosofia como indispensável no processo de construção do conhecimento das ciências. Inclusive, relativamente à produção das artes. A Filosofia e as ciências devem estar em aproximação. Em suas obras não há separação entre filosofia, poesia, literatura e psicanálise. Portanto, ambos possibilitam uma reflexão epistemológica sobre as dimensões da cultura. Uma reflexão aberta à diversidade epistemológica. Isto merece ser destacado.
Segundo Paulo Freire, somente diante de uma realidade cultural cognoscível mediatizadora da relação entre as pessoas (educador-educando, filósofo clínico-partilhante), poderá se estabelecer dialogicamente o encontro e a busca compartilhada do conhecimento (ou dos saberes). E só em tal condição é possível a inteligibilidade e a compreensibilidade dessa realidade objetivada na comunicação. Sendo oportuno relembrar a complexidade do que denominamos realidade, que jamais pode ser definida nem compreendida exaustivamente, por abarcar tudo aquilo que está para além do imediato.
Há uma historicidade na construção do conhecimento. Desde então, aparecem ou podem reaparecer os diversos níveis de diversidade e profundidade de saberes; seja o saber popular, o científico, o ideológico ou de classe, de gênero, etnia, etc. Paulo Freire surge no contexto das teorias do conhecimento com esta originalidade que consiste na afirmação, sistematização e fundamentação histórico-filosófica do caráter essencialmente dialógico do conhecimento. Algo que pensadores de tendências filosóficas anteriores não o fizeram, senão enquanto simples acenos tangenciais. Como Martin Buber, com a dialética EU-TU, assim como outros pensadores das filosofias existenciais que destacavam o ser-com-outros-no-mundo, denominada “comunicação das consciências”. Tal expressão tem sido usada para designar, por oposição ao subjetivismo, a experiência imediata da consciência do outro; por exemplo, no olhar, na corporeidade. Paulo Freire afirma que o ser humano é um corpo consciente, e que a consciência não é uma região espacializada do ser humano. Assim, Karl Jaspers nomeava esta relação usando o termo “Daseinskommunication”, ou seja, uma comunicação existencial em que o si busca apreender o outro como si. Quiseram expressar que “eu não tomo consciência daquilo que sou como ser isoladamente”. Eu me experimento na comunicação com outrem; que Freire chama “outreidade”. Tais elementos conceituais foram considerados pela epistemologia freireana, mas repensados na dialogicidade exercida pelos sujeitos no mundo cultural e histórico.
O intento de toda a obra freireana é pedagógico, mas a sua sustentação ou embasamento teórico é radicalmente de caráter filosófico. Ele a elaborou em sintonia com as epistemologias de Gaston Bachelard e de outros pensadores de sua contemporaneidade, a exemplo de alguns filósofos existencialistas, como Gabriel Marcel, Jean-Paul Sartre, Karl Jaspers, Martin Buber; psicanalistas como Erich Fromm, Frantz Fanon, acrescidos do suporte de outros clássicos da Filosofia, como Hegel, Karl Marx, Gramsci, Husserl; além de diversas referências pedagógicas de destaque no século XX, entre as quais Anton Makarenko e Anísio Teixeira. No entanto, sem aderir a nenhuma teoria ou ideologia que o caracterizasse como dependente. De modo que não se pode adjetivar a epistemologia fundante de sua teoria pedagógica com apenas um autor ou tendência filosófica exclusiva. O que se pode afirmar é que sua epistemologia se fundamenta no construtivismo dialético-fenomenológico, referenciado numa enorme diversidade de pensadores. Isto, entretanto, não significa ecletismo.
A filosofia de trabalho de Paulo Freire tem origem num elemento ético fundamental, muito mais que em teorias. O seu método cognitivo-pedagógico teve como objetivo essencial uma perspectiva filosófica que se empenhou em reafirmar e recuperar a palavra como direito humano, entre populações de trabalhadores analfabetos e silenciados. Sua pedagogia propôs a afirmação do ser humano como ser da palavra. Daí que encontramos, na fundamentação filosófica da sua obra principal, Pedagogia do Oprimido, um belíssimo texto-prefácio do professor Ernani Maria Fiori, intitulado “aprenda a dizer a sua palavra”. É desta raiz ética que desponta a sua epistemologia, fundada na dialogicidade e em pressupostos de filosofia da história.
A contribuição de Paulo Freire se orienta no sentido de possibilitar uma educação libertadora das condições opressivas. Por isto denominada pedagogia do oprimido, mediante a educação concebida como prática da liberdade. Lembrando que a categoria “oprimido” possui mais conotação ética do que mesmo sociológica; nomeando o explorado, excluído e silenciado pela cultura do latifúndio, que se caracteriza pela redução dos trabalhadores a uma condição de silenciados. A sua metodologia veio para restaurar a dignidade humana daqueles que, transformados em “quase-coisa”, não podem dizer a sua palavra. No sentido de ultrapassagem desta desgentificação. Afirmar e restaurar a condição humana desses excluídos como seres da palavra e da ação. A palavra e o diálogo são exclusivos da ontologicidade humana. Portanto, também numa condição de terapia existencial, tomando como exemplo a Filosofia Clínica; pois somente é possível a sua efetivação autêntica através do diálogo, através da palavra existenciada em condições de liberdade. Freire, inclusive, referiu-se a este processo educativo como um esforço de expulsão do opressor hospedado na consciência dos oprimidos. Pois os oprimidos se tornam hospedeiros dos opressores. Aliás, uma terapia verdadeiramente humanizadora não pode acontecer em situação antidialógica. Sem diálogo não há construção de pensamento, nem é possível restaurar ou refazer a existência. Por isto a epistemologia freireana poderá contribuir bastante no processo cognitivo-construtivo da Filosofia Clínica.
É mais precisamente na obra Extensão ou Comunicação? que Freire expõe a sua epistemologia, a sua teoria do conhecimento. E a inovação essencial desta gnosiologia consiste em superar a teoria tradicional que resumia o conhecimento à relação entre sujeito e objeto (S—–O). Para afirmar a precedência da intersubjetividade ou dialogicidade; porque nenhum sujeito conhece sozinho, mas com outros, mediatizados pelo mundo. Consciência e mundo coexistem simultaneamente; não há mundo sem consciência, nem consciência sem mundo. Disto vem outro princípio básico de sua teoria: a leitura do mundo precede a leitura das palavras. Não há “eu penso”, mas “nós pensamos”, no encontro dialógico mediatizado pelo mundo cultural dos sujeitos (S¹——–mundo——–S²).
No segundo capítulo deste volume o autor faz um verdadeiro redimensionamento da História das Filosofias, expondo sua crítica ao subjetivismo da teoria tradicional do conhecimento, desde os pré-socráticos até os pensadores existencialistas.
Freire, na sua teoria epistemológica, refere-se ao processo educativo que possibilita aos sujeitos envolvidos na ultrapassagem do senso comum, da consciência ingênua, da curiosidade ingênua, em direção à consciência crítica, à curiosidade epistemológica ou científica, pelo exercício dialógico do compartilhamento intersubjetivo dos saberes, objetivando a transformação de suas vidas, de sua realidade, rumo ao nível mais elevado do conhecimento reflexivo – a “práxis”. Esse termo resume o nível mais profundo da filosofia social, chamada desde Antônio Gramsci, filosofia da práxis. Isto supõe a educação, o trabalho cultural de reflexão, na construção dialógica, que é problematizadora das condições objetivas desses sujeitos. Pela educação como prática da liberdade, como busca. Isto supõe o perguntar, duvidar, não apenas “facilitar”, como pretendem as teorias conteudistas, psicologizantes e comportamentistas.
Na relação intersubjetiva, pelo encontro dialógico, as pessoas efetuam a admiração e readmiração da sua realidade cultural. Neste processo, essencialmente dialógico-horizontal, em que nenhum sujeito deverá se sobrepor aos demais, a realidade objetivada (admirada) se presentifica à percepção dos sujeitos do conhecimento. Todos se encontram para conhecer, perguntar, investigar, partindo dos conteúdos de sua realidade vivencial. Em Filosofia Clínica (FC) isto poderá ser posto como integrante da historicidade do partilhante. Todos sabem e não sabem algo. Todos ensinam e aprendem algo. Não há saber nem ignorância absolutos. Ambos são relativizados. Esta condição oferece o ponto de partida da busca e construção dos saberes da existência humana.
Num primeiro momento os elementos do conhecimento/investigação surgem como algo de que apenas a pessoa se dá conta, como algo que é pouco percebido.
No segundo momento, acontece o adentramento mais profundo do objeto percebido ou admirado e destacado da realidade ou contexto maior (a totalidade). São objetos, fatos, temas, assuntos, sentimentos, situados num contexto mais amplo, que pode ser uma história do lugar, da pessoa… (historicidade).
No terceiro momento, os sujeitos dialogantes (educador/a-educando/a, filósofa/o clínica/o-partilhante), dirigindo perguntas relativas a esses conteúdos, penetram mais na razão de ser daquilo que está sendo conhecido – o “ontos” do objeto; e a sua razão de ser, o “logos”. Dá-se o começo da tomada de consciência.
Esse dar-se conta, passando ao momento do pensar, possibilitará uma opinião ou doxa. Acontece, assim, um mergulho na profundidade do “objeto” (coisa, fala, ideia, acontecimento…), estabelecendo-se relações. Assim vai tendo lugar a cognoscibilidade do que foi “mirado”, “ad-mirado” e “re-ad-mirado”. Pela re-ad-mira-ação abrir-se-á o caminho do conhecimento, como busca das suas razões de ser e/ou não-ser.
Nesse caminho de escuta, observação, silêncios, ad-mira-ação e re-ad-mira-ação da realidade acontece o momento de se fazer o que Freire nomeou com os termos codificação e decodificação da realidade vivenciada e/ou observada. Certamente, aqui, no âmbito da FC, pode-se fazer uma referência ao tópico Semiose, visto se tratar da codificação das diversas formas de expressão, linguagens, etc. A codificação se refere às várias representações de mundo trazidas pelos educandos/partilhantes. São as representações gráficas, pictóricas, fonéticas, artísticas, que expressam as vivências pessoais e culturais dos sujeitos em dialogicidade. Refletem a polissemia da linguagem. Que, todavia, não pode ser confundida com uma representação unívoca, do tipo publicidade. À codificação segue-se a decodificação como leitura ou leituras e interpretações do que foi codificado. Trata-se de um dos momentos mais complexos da construção do conhecimento, para que haja o que Freire chama conscientização.
Na verdade Freire fala em interconscientização, por ser recíproca, para ambos, no processo dialógico. Há um co-pensar, uma interconscientização de ambos, seja educador/a e educando/a; ou filósofo/a clínico/a-partilhante. Pois ninguém conscientiza ninguém; mas todos se conscientizam no processo de construção dos saberes. Há co-aprendizagem, co-pensamento e interconscientização. Num processo de dialogicidade e reciprocidade que se pode chamar transcognitividade.
Deste modo, acontece a tomada de consciência, num primeiro momento; que tenderá e poderá ser progressiva, em direção à “conscientização”. Entretanto, isto não é automaticamente. Pois a consciência é transitiva, dinâmica, mas poderá intransitivar-se. Poderá interromper o processo cognitivo, se submetida a situações de opressão, autoritarismo; enfim, quando a dialogicidade é rompida. Quando a comunicação se torna ausente e a relação passa a uma condição de verticalidade, ou seja: quando uma das partes envolvidas no processo se impõe autoritariamente provoca a interrupção da comunicabilidade e do compartilhamento; e o diálogo pode ser rompido. Isto atinge “os princípios de verdade” (PV). Quando se gera antagonismo entre as pessoas envolvidas, fraturando-se a horizontalidade dialógica, não haverá mais comunicabilidade. Porque foram atingidos negativamente os PV. Lembre-se: isto não se refere à diretividade ou momentos expositivos de conteúdos da aprendizagem, que devem acontecer. O que Freire refuta é o autoritarismo e o nivelamento entre as partes do processo. O professor não pode ser antagônico ao aluno, nem querer nivelar-se. São diferentes, mas não antagônicos. Também não se devem confundir. O mesmo vale para a relação filósofo clínico/partilhante. Sobre isto deve incidir uma reflexão sobre a eticidade desta condição para ambos.
Em situações de trabalho social, cultural ou político, na inexistência ou ruptura da dialogicidade, pode acontecer o extremo da intransitivação, pela fanatização da consciência. Freire se fundamenta teoricamente em Gabriel Marcel, ao nomear esta contradição. Havendo isto, desde então, as pessoas buscam soluções mágicas, lideranças autoritárias, etc. Acontece a perda da confiança dos próprios sujeitos envolvidos, a perda da amorosidade, a rejeição à mudança, por medo da liberdade. Este medo da mudança e da liberdade tende a gerar a crença em soluções imediatas, rápidas, tecnicistas e, inclusive, com apelo à violência, dando origem a situações que chegam ao ódio e à desesperança, naturalizando até a morte; como nas situações históricas de desenvolvimento de práticas que a Sociologia e a Psicanálise nomeiam como fascistas. Instalam-se o ódio ao diferente, o ódio à diversidade, a rigidez de princípios, o dogmatismo, incentivando o ódio de classe, como estamos constatando atualmente, no Brasil e em diversos países do mundo atual. Instala-se uma falsa consciência de que a história pode ser estacionada e negada em termos de processo.
À parte esta referência sociológica necessária, Freire sempre se refere aos dois momentos da cognitividade como sendo a curiosidade ingênua e a curiosidade epistemológica. O conhecimento gerado pela dialogicidade possibilita a saída da primeira rumo à segunda. Isto só acontece mediante uma orientação educativa. E a educação é sempre uma situação gnosiológica. Por conseguinte, a situação de busca que acontece na terapia filosófico-existencial, por exemplo, no contexto da FC, também se constitui como uma situação educativa e gnosiológica entre filósofo/a clínico/a e partilhante. Pois a terapia em geral possibilita outras perspectivas de conhecimento.
Decorrentes da complexidade do processo cognitivo brotam os chamados erros e obstáculos epistemológicos, compartilhados pelas terminologias de Paulo Freire e Gaston Bachelard, ambos pertencentes à concepção histórico-construtivista do conhecimento. Em duas obras de Freire há referências diretas a Bachelard: Pedagogia da tolerância e Pedagogia dos sonhos possíveis. Ambas tratam da leitura do mundo e da leitura das palavras, destacando as questões relativas aos erros e obstáculos impostos aos sujeitos no processo de aprendizagem e sistematização dos saberes. Aqui vale destacar as contribuições de Freire e Bachelard à crítica da interpretação positivista dos fatos e saberes. Para ambos não há dados fixos, fatos puros, ciência pura. Os dados são dados dando-se. Bachelard se rebelou contra o que chamava “imortalidade dos fatos”; que o senso comum da ideologia neoliberal quer impor como o termo “domínio dos fatos”. Pois os fatos sempre são interpretados. Não há fatos soltos. Tudo está num contexto. O conhecimento sempre tem algo de interpretação. Fatos não são coisas, como afirma o positivismo sociológico.
Em Pedagogia da tolerância, especificamente no capítulo 3, em forma de diálogo, Freire reflete com o interlocutor (Patrick) sobre questões de etnociência e senso comum, partindo da pergunta: “há episteme no saber dos indígenas”? Freire responde afirmando que “em todo processo de compreensão do mundo há um processo de produção e compreensão do conhecimento. Em todo processo de produção do conhecimento, está implícita a possibilidade de comunicar o que foi compreendido, o que você faz não apenas com a linguagem oral, mas também com desenhos e com várias outras linguagens. (…) A minha convicção é de que a gente tem que partir mesmo da compreensão de como o humano com quem a gente trabalha compreende (…) a minha grande preocupação é com a ética: como é que eu respeito a cultura do outro. Mas respeitar a cultura do outro não significa manter o outro na ignorância sem necessidade; fazê-lo superar sua ignorância não significa ultrapassar os sistemas de interesses sociais e econômicos de sua cultura. É como se houvesse gente inteligente num outro planeta, noutro universo, e viesse aqui e dissesse a mim que eu devo pensar da forma absolutamente contrária àquilo que penso, pois lá já se pensa diferente. Não posso me submeter a uma coisa dessas.” E Freire repete que “o conceito de ignorância é um conceito relativo; pois, em primeiro lugar, ninguém é absolutamente ignorante. Ninguém. Você ignora coisas e sabe coisas. O ser humano fundou-se com base na curiosidade. Esta é a fonte fundamental do conhecimento. Mas a curiosidade também gera interesses e usa interesses. É preciso compreender como a compreensão do outro se dá e se na chamada cultura científica você tem um caminho que dá um resultado possivelmente mais exato que o outro caminho que está sendo usado. No mínimo você se obriga a mostrar que há. Eu sou pela defesa permanente da revelação, ao educando, das diferenças, que há diferenças, e que vale dizer que você não pode ficar numa perspectiva estreita e exclusivista: só como eu penso é verdade, mas pelo contrário, discutir as possibilidades das diferenças legítimas. E´ por isso que, nessa questão epistemológica da passagem do saber do senso comum para um saber científico, eu acho que há uma superação, e não uma ruptura. A curiosidade que empurra o conhecimento é a mesma, seja a do índio e a da gente; o que há é uma superação no encontro dos achados; quer dizer, pode ser que até, eticamente, a gente fique atrás, mas, do ponto de vista da compreensão da realidade e do mundo, a gente, rigorizando a busca do objeto, pode achá-lo com mais precisão, o que não significa que você invalide o achado do índio. Eu acho que há muita arrogância nossa, dos intelectuais, dos cientistas. Isso nos faz cair na arrogância, é autoritário e não democrático; e viola as qualidades ontológicas do ser humano”.
O diálogo trata da pesquisa de um estudante que teve sua tese rejeitada por um professor que não admitia o saber indígena como episteme, pois dizia que só há episteme na ciência. E conclui o diálogo perguntando: “…mas o conhecimento do índio não tem esse rigor que você está dizendo, porque eles não sabem a escrita. Mas como posso dizer que não tem rigor, quando eles conversam todos os dias sobre os acontecimentos e estão se socializando? (…) Um conhecimento que faz tantos anos que vem sendo elaborado e socializado, porém não escrito, mas vivenciado. Como você pode dizer que não é um conhecimento que tem tanto rigor quanto o seu? (…) No fundo, quer dizer que, lamentavelmente, isso é uma tese de Bachelard, grande epistemologista francês, filósofo e poeta. Gaston diz claramente que a passagem de um nível para outro é radicalmente fundada na ontologia, acho que isto é superação. E, precisamente porque o nosso lado é o lado do poder, a superação se dá em favor de nós; se o lado do poder estivesse no dos índios, a superação seria deles; mas como eles não têm poder de mandar em nós, nós dizemos que superamos em favor de nós”.
Em outro texto, Pedagogia dos sonhos possíveis, especificamente no capítulo “alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra”, ainda discute a mesma temática, com ênfase nas categorias do “erro” e dos “obstáculos epistemológicos” no contexto da aprendizagem. Coloca em destaque a constatação das duas leituras: a leitura do mundo e a das palavras. Acrescenta que “os educandos relacionam a essa leitura anterior do mundo, se relacionam os signos e símbolos da interação local do estar-no-mundo, dessa presença no mundo que se vai construindo enquanto comunicação e historicidade”. Sua insistência principal se volta para o respeito que educadoras e educadores devem ter relativamente aos níveis de conhecimento que os educandos trazem ao ambiente educacional, e que necessariamente expressam sua identidade cultural e passam pelo corte de classe social. “… educandos trazem uma linguagem, uma sintaxe, uma semântica; que os linguistas chamam competência linguística. Entretanto, em geral nas escolas há um desprezo burocrático por tudo isto que se deu antes das escolas, e que vai continuar se dando, apesar da escola. Como se a escola assumisse por decreto divino a tarefa de apagar da memória e do corpo consciente dos meninos essa linguagem, que é também sentimento, comportamento e percepção do mundo. Ou seja, desrespeita-se a dialética própria no reconhecimento e construção dos seus referenciais de tempo, espaço e, portanto, de sua situação histórica. A negação deste saber experiencial revela uma ideologia elitista e autoritária da escola. A escola é autoritária e elitista, entre outras razões, porque só aceita como válido o saber já montado, o saber pseudamente terminado. Aí há um erro científico, também um erro epistemológico. É que não há saber nenhum que esteja pronto e completo. O saber tem historicidade pelo fato de se construir durante a história e não antes da história nem fora dela.Então, o saber novo nasce da velhice de um saber que antes foi também…”
Não se trata de manter os educandos no nível de saber em que eles se acham. Pelo contrário. Mas é preciso evitar que educadores pensem numa progressão de conhecimento no sentido da hierarquização atual do conhecimento; como se o estabelecimento de uma norma culta para a escola fosse o único caminho para se chegar a uma norma mais culta, com critério ideológico. Passando a conotação de que na escola se ensina um saber puro cuja excelência deva ser defendida das impurezas da linguagem das classes trabalhadoras.
Freire propõe que educadores/as e educandos/as progridam reconhecendo outros conhecimentos, inclusive das classes populares, das minorias étnicas, etc. E declara: “lembremos Bachelard, que sugere verdadeira “pedagogia do erro”, na qual o erro deve ser revisto não como reflexo do espírito cansado, mas, na maioria das vezes, como um obstáculo epistemológico, um obstáculo ao ato de conhecer e um desafio da realidade ao seu enfrentamento …é o obstáculo ideológico ao não prosseguimento no reconhecimento ou na construção de outros conhecimentos… Seria preciso que a compreensão do erro em Bachelard fosse democratizada. O que quero dizer é o seguinte: que a grande maioria dos educadores passasse a entender o erro assim e passasse também a acrescentar à compreensão do erro, enquanto obstáculo epistemológico, a compreensão da força da ideologia, quase sempre na raiz do obstáculo epistemológico. E em lugar de óbice para o processo de conhecer, o erro passaria a constituir-se como um momento do processo. Quer dizer, um momento importante. Um momento fundamental do processo de conhecer é errar… isto diminuiria o autoritarismo de educadores que fazem do erro um motivo de punição. O que a gente precisa fazer na prática pedagógica é mostrar que, se a curiosidade se equivoca ou erra, não deve, por isso, ser punida. Eliminar essa conotação punitiva. Avaliar sim, mas considerando também aquilo que houve no tempo vivido pelos educandos, não apenas no tempo da escola, considerando que a escola raramente busca fazer a ligação do que ela aprende na escola com o que aprende no mundo. E considerar que não existe rigorosidade pura. Toda rigorosidade convive com o seu contrário; pois a ingenuidade é ponto de partida para a própria rigorosidade. Não despreze a ingenuidade, não ponha entre parênteses as emoções e sentimentos”.
Tais são alguns dos tópicos que podemos discutir com base nestes pensadores, em termos de epistemologias que contribuem para o aprofundamento do pensamento filosófico em geral e, especificamente, da Filosofia Clínica.
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BIBLIOGRAFIA:
BACHELARD, Gaston. Os Pensadores. S. Paulo; Abril Cultural, 2ª ed. 1984.
FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro; Paz e Terra, 2013.
___________. Pedagogia da Tolerância. Rio de Janeiro / São Paulo; Paz e Terra. 2016.
___________ Pedagogia dos Sonhos Possíveis. Rio de Janeiro / São Paulo; Paz e Terra, 2018
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*Autor do livro “Pressupostos epistemológicos da pedagogia freireana”, publicado como edição do autor, pela Type Digital Solutions, São Paulo, 2020.
Aqui se discutirá a legitimidade de uma clínica que trata das questões existenciais de uma pessoa.
A palavra “legitimidade” se forma a partir da junção de “legi”, que significa “lei”, com “timidade”, relativo a “timo”, que significa alma, espírito, sentido, trazendo a idéia daquilo que impregna, que dá vida, dá sentido à lei,à norma, ao hábito, ao costume, a uma teoria. Um conjunto de saberes, como os levados a uma clínica, será “legítimo” quando for aceitável por uma comunidade, pressupondo, assim, um certo “con-senso” – um sentido que se torna comum – de opiniões.
Esses sentidos comuns das opiniões vinculam-se na “terapia”, na área da “clínica existencial” a uma certa submissão à autoridade dos conhecimentos científicos. Os tratamentos, de modo geral, a partir do final do século 19, sempre pretenderam estar amparados numa teoria, que por sua vez estaria firmemente vinculada a certas idéias, que “lá no fundo”, “lá no fim” tinham uma espécie de impregnação na verdade. A ética, o respeito pelo ser humano a ser cuidado, estariam resguardados pela certeza, proveniente da solidez dessa teoria, que seria em última instância, verdadeira.
Em síntese: a ética clínica estaria garantida por um conhecimento que é certo, sólido e verdadeiro.
Isso, afinal, não é razoável? Como agir, como pensar com responsabilidade ética sem esse parâmetro, essa evidência, sem essa garantia dada pela idéia da verdade? É possível conseguir a certeza em algum conhecimento como se tem com ela?
Não se chegará a isso. Uma clínica existencial, quando se exerce no âmbito da ciência, promete percorrer o solo firme das evidências filosóficas, guiada por regras claras e distintas. Mas não é isso q acontece. Volta e meia tropeça , dá com enigmas, mistérios: no lugar de apoio em chão firme encontra abismos, dúvidas, áreas desconhecidas. E muitas vezes a idéia de uma natureza humana, incognoscível nos seus limites, é invocada para explicar ou justificar isso. Mas, leitor, repare que curioso: o material da clínica não é exatamente essa natureza humana, surpreendente, pouco conhecida, e tão variada, que cada vez se apresenta de uma maneira? Como é que de saída isso não é levado em conta?
Durante o século 20 o universo de certeza e verdade que sustentava a confiança no campo das ciências perdeu o seu predomínio, pouco a pouco. A pesquisa científica, conforme se aprofundava, des-cobria a fragilidade de seus pressupostos e, simultaneamente, sua relação de dependência constitutiva com a linguagem – esta sim, apesar da fragilidade que a constitui, uma atividade propriamente humana.
No âmbito da física nuclear, em 1933, Heisenberg (nota 1), por exemplo, comentava que ao buscar descrever teoricamente os fenômenos atômicos seria preciso ”fazer a distinção entre o fenômeno e o observador… mas, do lado do observador, somos forçados a usar a linguagem da física clássica, simplesmente por não termos outra linguagem com que expressar os resultados. Sabemos que os conceitos de linguagem são imprecisos, têm uma aplicação limitada, mas não dispomos de outra linguagem…” para, mais à frente, ser bem explícito : “aprendemos que essa linguagem é um meio de comunicação e orientação inadequado. Apesar disso, ela é o pressuposto de todas as ciências” (nota 2). Sublinhe-se e retenha-se o que escreveu um dos cientistas mais respeitado em todo o mundo: a linguagem com suas limitações é o pressuposto de todas as ciências.
Em outro âmbito, muito distinto, vê-se Lacan, ao tratar da cientificidade da psicanálise, escrever: “…nenhuma linguagem pode dizer o verdadeiro sobre o verdadeiro, uma vez que a verdade se funda pelo fato de que fala, e não dispõe de outro meio para fazê-lo”(nota 3). Não pode haver uma verdade fora da linguagem. Para ele o lugar da verdade é o inconsciente e, neste registro, ele afirmará que o “inconsciente é estruturado como uma linguagem”. O psicanalista francês apenas transmuta as questões, mantendo-as no campo de uma pseudo-verdade ou, melhor ainda de uma “suposta-verdade”, sustentada pela força de repetição dessa genial ficção operatória que é a noção de inconsciente.
No campo da filosofia clínica Gustavo Bertoche destaca que o filósofo francês Gaston Bachelard revela “nossa inevitável insuficiência (do conhecimento, no campo das ciências); e,faz-nos ver que não existe um pensamento maduro em sua gênese”, lembrando que para uma idéia se aperfeiçoar “é preciso colocá-la em questão , expandi-la em uma problemática e, principalmente, abri-la ao debate , torná-la pública, desde o início”. Em outras palavras: trazê-la às linguagens possíveis. Generoso, Bertoche procura mostrar que a “consciência da incompletude essencial de nossas concepções é uma consciência libertadora” (nota 4).
2. Ciência, Lógica e Linguagem
Já na virada do século 19 para o 20, especialmente por conta das conquistas técnicas, a fé na ciência imperava. As pesquisas e os conhecimentos mais diversos buscavam se adaptar aos padrões científicos e era através da lógica – “a ciência do bem pensar” (nota 5) – que seria possível reduzir o nível de confusão, de incerteza, de imprecisão no campo do conhecimento, da pesquisa e da prática científica. A linguagem e a lógica tornavam-se objetos cada vez mais importantes para as teorias científicas.
Na Alemanha, no último quarto do século 19, os trabalhos de Frege (nota 6) ligavam a matemática, à lógica e à linguagem. As questões que desenvolveu germinaram de tal forma que ainda hoje é referência obrigatória no campo dos estudos da linguagem. Em 1872, pergunta: “A apreensão de uma verdade científica passa, normalmente, por vários estágios de certeza (em seguida pergunta) … como podemos assegurar-lhe (a uma proposição) finalmente uma sólida fundamentação?”. E responde, em seguida, “o método de prova mais seguro consiste, obviamente, em seguir estritamente a lógica, que abstraindo as características particulares das coisas, apóia-se exclusivamente nas leis sobre as quais se baseia todo o conhecimento” (nota 7). O “mais seguro” é abstrair do caráter “particular das coisas”. O caminho: a lógica.
Só a lógica, livre das contingências, das indeterminações, dos contextos, da história, poderá ser o fundamento seguro para o conhecimento científico – ela (a lógica), por sua força de evidência, o legitima. A linguagem para Frege, entretanto, “não é regida pelas leis lógicas” (nota 8) e “nas partes mais abstratas da ciência, torna-se cada vez mais inequívoca a falta de um meio que permita, ao mesmo tempo, evitar incompreensões quanto ao pensamento de outrem, e também equívocos sobre o nosso próprio pensamento. Tanto um como o outro têm sua causa na imperfeição da linguagem, já que temos que usar sinais sensíveis para pensar.” (nota 9). A linguagem seria “imperfeita”, por sua ligação com a sensibilidade humana, o que o leva a concluir pela necessidade “…de um sistema de sinais carente de toda ambigüidade ,e cuja forma rigorosamente lógica não deixe escapar o conteúdo” (nota 10) . Escapar da “ambigüidade”, do “imperfeito”, da “ligação com a sensibilidade humana”.
Bertrand Russell(nota 11) , leva essa questão de Frege para o ambiente britânico e americano e a toma como objeto principal de seu trabalho. “A reestruturação da lógica levada a cabo por Russell é idêntica, em espírito à efetuada por Frege…tendo os 2 grandes lógicos chegado a resultados praticamente idênticos de modo independente” (nota 12). No desenvolvimento dessa co-laboração, entretanto, houve uma “crise” provocada pela descoberta do que ficou conhecido como o “paradoxo de Russell” (nota 13), que levou Frege a abandonar a crença na possibilidade de reduzir uma ciência (a aritmética) à lógica. Sua confiança no caminho lógico é abalada.
Para Russell, ao menos inicialmente, o mundo dos sentidos parece se identificar com o mundo real: a “realidade” sendo aquilo que os sentidos captam. Ele notará, entretanto, que o que é dado pelos sentidos “é muito menor do que naturalmente muita gente supõe, e muito do que aparece como dado imediato, é obtido através da inferência” (nota 14), sendo, portanto, conhecimento derivado. O conhecimento sensível está ligado obrigatoriamente com o conhecimento de um homem específico – o “lugar” dos sentidos. O seu desafio será o de estabelecer a possibilidade do “conhecimento singular”- de cada homem – se tornar partilhável com outros homens em busca de uma maior generalização desse conhecimento. Não é Platão, não é Descartes, não é Kant, não é Hegel e não é Locke, nem Hume. Isto seria possível através do que ele chama de “construções lógicas”. Nesse sentido, a lógica funcionaria, ela mesma, como uma espécie de linguagem, compartilhável pelos homens singulares, que daria conta de representar ou dizer o real ou o mundo existente.
Ele não nega que as interpretações cotidianas das experiências perceptivas e as palavras de uso corrente, implicam teorias ou modos de ver em contexto. Mas o que ele busca e propõe será excluir o elemento de interpretação presente na linguagem ordinária do dia a dia, ou mesmo das teorias, e inventar uma linguagem artificial, com a mínima teoria possível, a mínima contaminação com o sensível, com o contingente. E, por esse caminho se poderia chegar ao dado puro. E que deve haver um dado puro é (a juízo de Russell) uma conseqüência lógica irrefutável. Afinal de contas, no limite da pesquisa deve se chegar a um dado e, um dado – por definição – é o que não é inferido, o que está aí. O dado pode não ser verdadeiro e pode não dar a certeza que se quer. Ele funcionaria como a memória, que sabe-se que falha, mas mesmo sabendo disso, ela é a base para muitas coisas em que se acredita e de conhecimentos que se desenvolve” (nota 15). O “dado” fundamenta o conhecimento científico e nesse próprio ato desfaz a possibilidade de legitimidade – política, social – dos saberes não “puros”, “não abstratos”, históricos, contextuais (nota 16) .
Mas volte-se ao tempo de Frege para não deixar de notar que naquele último quarto do século 19, no mesmo mundo acadêmico freqüentado por ele estavam Dilthey (nota 17), Brentano (nota 18) Freud (nota 19) e Husserl (nota 20).
A profundidade, complexidade e a extensão do pensamento e do trabalho de Husserl talvez possa ser explicada, em parte, por esse ambiente. A influencia que a fenomenologia trouxe à filosofia do século 20 e, ao campo propriamente clínico existencial, foi imensa. Nas “Investigações Lógicas” (nota 21) diz logo na primeira frase: “A necessidade de fazer começar a Lógica com reflexões sobre a linguagem foi frequentemente reconhecida do ponto de vista da técnica lógica” (nota 22). Lá se lerá que as discussões sobre a linguagem devem ser feitas como uma espécie de preparação filosófica indispensável para a “edificação da lógica pura”, como condição a que se chegue a uma “clareza inequívoca” sobre os objetos próprios a serem investigados. Há, portanto, uma espécie de inversão: no lugar de a lógica “garantir” a clareza da linguagem, como era para Frege e Russell – e todos os seus seguidores – será necessário agora discutir a linguagem para se chegar a construir a “lógica pura”. O que se buscará são as condições para o desenvolvimento da ”fenomenologia pura”, como um domínio de “investigações neutras”, no qual (as) diferentes ciências possam estabelecer as suas raízes”. A “fenomenologia pura” é o solo, a terra,o húmus para todas as ciências.
Os “objetos” (nota 23) para os quais a “lógica pura” está voltada são “dados sob vestes gramaticais”, dados que estão “como (que) embutidos nas vivências psíquicas concretas” (nota 24). Esses dados “vestidos de linguagem” junto com as vivências formam o que ele nomeará como “uma unidade fenomenológica” (nota 25). Será a partir destas unidades fenomenológicas complexas que o lógico trabalhará, sem tomar como “dado” as vivências psíquicas de um caso singular. “Ao lógico puro não interessa primaria e propriamente o juízo psicológico, isto é, o fenômeno psíquico concreto, mas, sim o juízo lógico” (nota 26) , uma espécie de significação aglutinada ou aglutinação de significados. Deixando a “relação real” entre os atos – os juízos empíricos – para o que Husserl chamará de “relação ideal” em que “a consideração subjetiva cede o seu lugar à objetiva” (nota 27) . E esse será o seu caminho, procurando desenvolver uma “fenomenologia pura”, livre, ou pelo menos independente das contingências vividas pelos homens em suas vidas concretas.
Heidegger, assistente e aluno dileto de Husserl, em seus primeiros trabalhos buscava distinguir a esfera imutável da lógica daquele mundo dos fatos psíquicos, mutantes e dependentes do tempo. Ao psicologismo ficaria limitado o acesso à validade, uma vez que por definição ela não é dependente do tempo. Para ele, nesse primeiro momento, o que é válido, o que é legítimo, tem o caráter da permanência no tempo: será sempre. Mas, desde a tese de livre docência sobre Escoto, como nota Vattimo (nota 28), “Heidegger reconhece explicitamente que a filosofia não pode deixar de levantar o problema da validade das categorias, isto é, da lógica, não só de um ponto de vista imanente, como também de um ponto de vista “transeunte” , isto é, de um ponto de vista do seu valor para o objeto…trata-se de ligar explicitamente a historicidade do “espírito vivente” e a validade intemporal da lógica”(nota 29) . A sua questão central se torna a questão do ser, vinculada à questão da existência, do “espírito vivente, histórico”. E “existência” no caso do ser-humano, “deve entender-se no sentido etimológico de “ex-sistere” – estar fora – ultrapassar a realidade simplesmente presente (como era visto o ser, até então) em direção da sua possibilidade” (nota 30) . E aqui pode-se apreender outra noção central de Heidegger – talvez a condição básica da possibilidade de uma clínica – quando ele define o ser humano, em sua essência como um “poder-ser” (do ponto de vista de quem a procura) e, “compreensão-de-ser”(do ponto de vista de quem atende a quem procura).
Em Viena, capital cultural do mundo ocidental à época, Freud (nota 31) , a partir de seu trabalho clínico, desenvolveu a hipótese teórica tremendamente fecunda do “inconsciente” , que trouxe outros parâmetros para se pensar o ser humano, suas relações consigo próprio, com o mundo e com os outros. Abriu um âmbito terapêutico original e próprio – o das psicanálises – de pertinência clinica e cultural ampla, séria, articulada e transformadora. Com ele “…um novo ouvinte é inventado, digamos, outro tipo de intérprete” (nota 32) . Vivendo e respeitando os valores de seu tempo, buscou incansavelmente, estar em consonância com os valores da ciência, onde isso fosse possível, sem violentar os saberes que o enfrentamento dos desafios de seu trabalho trazia: ”Um intéprete… (que) está de acordo com a ciência, mas (que) é também um intérprete que visa um saber diferente daquele da ciência” (nota 33).
Ferdinand Saussure (nota 34) , entre 1906 e 1911, na Universidade de Genebra, através de seus cursos de lingüística geral, colocou a linguagem como objeto de estudo, mas de um modo muito próprio, não dando importância às questões da filosofia da linguagem, do sentido e da referência, como fizera Frege e seus continuadores. Para ele havia uma predominância da língua – “princípio de classificação”, sistema abstrato – sobre os elementos. O exercício da língua se dá pela linguagem, entendida como esse sistema de signos. Ela será, primordialmente, compreender a relação entre as palavras. A linguagem fica autônoma, auto-referida, não mais ligada à vida do homem, numa espécie de campo científico próprio: o da lingüística. E será deste modo de tomar as questões da linguagem como sistema – estrutura – que se impregnará a cultura francesa, pelo menos, pelos seguintes 50 anos. O “estruturalismo” com presunção científica desenvolvido por Levi-Strauss (nota 35) bebe diretamente dessa fonte.
A tentativa mais acabada e articulada na direção de produzir certeza teórica através da lógica e da linguagem foi desenvolvida também em Viena, na primeira década desse século, por Wittgenstein (nota 36) . Esse é o tema central de seu Tractatus Logicus Philosophicus (nota 37). Nessa obra (nota 38) ele procura submeter o dizer humano ao modelo do dizer cientifico, isto é, do dizer controlável, que decide sobre os fatos do mundo. Ele busca “a” linguagem que assegure isso. Uma expressão, ou uma proposição será entendida quando se dominar a regra do seu uso. E o que estabelece essa regra é a lógica: “a maioria das questões e proposições dos filósofos provém de não entendermos a lógica de nossa linguagem” (nota 39). E a lógica, num processo de decantação analítica induzida da linguagem, chegaria a uma única forma de expressão, ” perfeitamente decomposta”. A linguagem, ali, então, passa a ser cálculo, comandada pela lógica. Poderia, portanto, trazer precisão, segurança, certeza, estabelecer verdades, fundamentos sólidos, razões últimas. A linguagem lógica, científica, potencialmente chegando ao “fundo”, à última instância, evidencia a verdade, torna-a legítima. O significado de uma expressão científica, portanto, será o resultado da aplicação restrita das regras da lógica à linguagem (nota 40). De uma certa perspectiva, é o ponto mais “alto” – ou mais “fundo” – a que pode chegar a ciência, a técnica ou a metafísica. O conhecimento científico, finalmente, estaria legitimado.
3. O Desfazimento da Verdade como Certeza
Com o passar dos anos, entretanto, o próprio Wittgenstein se tornará o maior crítico do seu Tractatus. Ele considerará que não é a regra do uso (a lógica) mas o próprio uso da expressão lingüística que definirá o significado dessa expressão. Nesse novo modo de ver, o sentido do que se diz é dado no uso que se faz das palavras, dos sons, dos gestos. Ao “usar” uma palavra, um gesto, a pessoa inventa ou repete um sentido que escolhe para ela, para ele: a palavra e o gesto não têm mais um sentido “último”, “em si”, mas está referido às suas vivências e as que supõe de seu interlocutor. Ela pode abrir sua mão direita, juntar a ponta do indicador à ponta do polegar e com este gesto indicar ao seu colega norte-americano que “está de acordo” com o que ele disse; o seu colega gaúcho, no entanto, poderá entender que com este gesto está agredindo seu colega. As referências existenciais são diferentes, o que traz sentidos muito distintos ao aparente mesmo repertório vocabular. Não é mais a lógica, mas sim o contexto, as circunstâncias que passarão a interferir no modo definidor, na produção e, no entendimento do sentido de uma proposição, de uma palavra ou de um gesto.
Nesta perspectiva, o modo de entender a própria história – a historicidade – interfere, quase determina, o conteúdo da linguagem de uma pessoa. A linguagem não será mais vista como algo único e uniforme, mas como uma grande variedade de ações possíveis, como “…comandar…descrever um objeto…relatar um acontecimento… expor uma hipótese…inventar uma história…fazer uma anedota…pedir, agradecer, maldizer, saudar, orar” (nota 41) “Essa pluralidade não é nada fixa (como se fosse) um dado para sempre; mas (são) novos tipos de linguagem…o termo “jogo de linguagem” deve aqui salientar que o falar da linguagem é uma parte da atividade ou de uma forma de vida” (nota 42) . E para ficar com este alumbrante autor-crítico de si mesmo: “É interessante comparar a multiplicidade das ferramentas da linguagem e seus modos de emprego, a multiplicidade das espécies de palavras e frases com aquilo que os lógicos disseram sobre a estrutura da linguagem (e também o autor do Tractatus Lógico-philosophicus) “ (nota 43).
Essa crítica incisiva à uniformidade e à unidade da linguagem tira as bases nas quais se suportam as noções que a ciência vai buscar na lógica. Em última instância, do pensamento predominante no ocidente. A ruptura é profunda e ainda se está aprendendo a viver sob sua influência neste início de século 21. Não há mais “a linguagem”, mas as linguagens, agora referidas a “formas de vida”. Cada pessoa tem a sua própria “forma de vida”, pode passar a ser vista e tomada, em clínica, em sua peculiaridade, em sua singularidade.
A lógica considerava a fala como um resultado, portanto só observava o conteúdo do que é falado. Uma clínica ocupada nas condições do viver de uma pessoa, busca assimilar a “fala”, a linguagem, como um processo semântico, buscando ver de onde ela surge, onde está inserida, vinculando-a à sua historicidade própria. Os contextos de referências de significados e sentidos, de onde vem, por onde passa e passou essa “fala”, vale dizer esta pessoa, cada pessoa. Há, com isto, uma atitude muito diferente quanto à busca de sentido.
Nesta mesma direção, ainda que com muita diferenças, pode-se observar que também em Heidegger, de Ser e Tempo (nota 44), o sentido é produzido pelo envolvimento do homem nas suas atividades cotidianas, no seu mundo, na sua práxis. A linguagem acontece, se realiza, “fala” no fato. “ A linguagem é o pronunciamento da fala” (nota 45) ou ainda , “a linguagem fala” (nota 46). A “fala” é um “deixar ver”, articulação com a situação em gestos ou palavras. O traço principal da linguagem está na sua função referencial. Há uma relação entre o “dito” com “algo” que se procura tornar ”visível”. Deixar ver é “ver por si mesmo” esse “algo”. E esse “algo” se mostra (no modo) a partir de si mesmo.
Esse “mostrar-se” em si mesmo de um “algo” é o que Heidegger entende por “fenômeno” (nota 47) . Fenômeno é o”mostrar-se” de “algo”, que “vem ao encontro” a partir desse “algo”. A fenomenologia para ele, é o âmbito que estuda esse modo do “mostrar-se”, a “via de acesso e o modo de comprovação”. De seu ponto de vista, “fenômeno é somente o que constitui o ser, e ser é sempre ser do ente” (nota 48) . A questão do “ser” é a mais universal e, ao mesmo tempo, se dá na singularidade mais restrita, deste ser humano histórico, em circunstância, em sua facticidade. Mas para ele, filósofo, o ser humano será tomado na perspectiva ontológica (nota 49), o ser humano será concebido como o ser-aí ou, o ser-o-aí, ou o Dasein (nota 50). Ele oporá ao ponto de vista lógico o ponto de vista existencial.
A clínica, no entanto, como não cansa de nos alertar o próprio Heidegger (nota 51), não é ontologia. Uma clínica não tem como tarefa discutir o que “este ser humano é”, qual o ser-deste ser humano. O campo é “ôntico”, dos entes, deste ser humano aqui à frente, não em seu “ser”, mas em seu “estando”, seu “já-sendo-aqui”. Nestas circunstâncias. Não se trata com o ser humano – homem ou mulher – ab-strato, como se ele fosse tirado de um estrato, de uma estrutura de conhecimento que não está presente no “mundo”, meta-físico. Cuida-se deste ser humano aqui em sua relação com os fatos que compõem incessantemente o seu estar-no-mundo. Trata deste “ser humano de fato” que se apresenta, “aqui”, à frente do/a clínico/a. Parte daqui. Toma este “ser humano concreto”, este “ente” em seu contexto, em sua singularidade. Não há relação com a universalidade. Por isso o visar da clínica é ôntico. É encarnado. Não é ontológico, não tange a verdade. Não trata com doentes, com pacientes, trata com pessoas que trazem parte de suas vidas, que partilham modos de sua existência. Não é tarefa do/a clínico/a des-vendar um pretenso ser-do-partilhante, a sua verdade, já dada ou a se obter. Ele/a já é o que é, a sua própria verdade é essa que ele/a vive. Em clínica, talvez, seja mais estar com ele/a em seus “estares”, em suas questões. Acompanhar suas pré-ocupações, seus modos de constituir-se e refazer-se. Cuidar.
A fala deste/a partilhante à frente do/a clínico/a é linguagem – e não apenas “sons” – porque ao se manifestar ela já traz uma articulação de significações própria, sempre capaz de modificação, em modos de ser seus nos “mundos”, singulares. Quando posto em relação com o/a clínico/a, com este mundo que inventa e que se lhe apresenta – um/a clínico/a, ou este outro ser humano – lança e remete “algo” de si.
A propósito de “falar”, Heidegger lembrará a importância de se fazer uma distinção radical entre a pura nominação (nota 52) e a enunciação (nota 53) . Na nominação deixa-se ser o que é a aquilo que está presente. É certo que a nominação implica aquele/a que nomeia, mas o próprio do nomear é, justamente, que aquele/a que nomeia não intervém a não ser para desaparecer ante o ente: é como se ele/a desaparecesse, sumisse, evaporasse. Ao contrário, na enunciação aquele/a que enuncia intervém intercalando-se. “E se intercala como quem domina o ente para falar sobre ele” (nota 54) . Esta distinção pode ser muito esclarecedora do papel da” fala” na clínica onde o pronunciar do/a partilhante será predominantemente “enunciativo”, na medida em que estará “falando” de “si mesmo/a”, enquanto o ouvir do/a terapeuta será inicialmente, de preferência e, na medida do possível, “nominativo”, isto é, ele/a inclinará sua atenção ao nome, procurando encontrar o nomeado com a menor inter-ferência possível de sua própria historicidade ou escolhendo pré-dominar este aspecto de sua historicidade. Esta postura clínica facilita a possibilidade de apreensão, por parte do/a clinico/a, do que é próprio a aquele mundo humano e, que se apresenta através desta linguagem que fala. Uma linguagem que tem essa característica de estar em tensão entre a sua singularidade própria e a possibilidade de se tornar “com”: sem esse “com”, nunca é demais lembrar, não seria linguagem. Linguagem, então, também referida a uma, a esta vida.
O Heidegger maduro, segundo Loparic (nota 55) conceberia a linguagem de modo muito diferente (nota 56) daquele tomado por Wittgenstein, uma vez que ele não buscaria “elucidar o verbalizado, mas, precipuamente, apreender o apenas “acenado” ou “gestado” e, neste sentido, indicado”. Para isso, notará como “o tema do silêncio ganhou uma importância cada vez maior no seu pensamento…. entre as “figuras” do dizer, o silêncio, e mesmo o silêncio sobre o silêncio”. Loparic lembrará que isto seria uma reafirmação e ao mesmo tempo, um ultrapassamento do parágrafo 7 do Tractatus, que diz “sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar” (nota 57). Uma indicação clínica preciosa.
Como, aliás, “escuta” o pintor paulistano Sérgio Fingermann: “Com o silêncio aprendemos a ver no escuro. Aprendemos novos tons de escuro. Aprendemos a ver o visto. O silêncio ensina que a noite tem suas claridades. Às vezes, o silêncio se transforma em esfera transparente. Imobiliza-se. Fica “sendo”. È uma espécie de gerúndio. É como cápsula que se contém: fica sendo o não-ver. Fica sendo o não-estar. É o caminho até nossa solidão. Há chamados do silêncio. Há sentimentos que vêm de lá, ou, então, são feitos ali. No silêncio pensamos sem palavras.” (nota 58)
Para Loparic “não existiria mais qualquer possibilidade de tomar o termo “dizer” como sinônimo de “verbalizar”. O termo “dizer” deve ser entendido a partir do sentido do verbo “dicere”, em latim, (que quer dizer) anunciar solenemente e, que por seu turno, remonta à raiz indo-européia “deik” ( que teria o sentido de) mostrar, apontar, indicar: in-dicar” (nota 59) A palavra antes de ser uma “parábola” é uma “dica”. A fala antes de contar uma “fábula” é um gesto que desoculta uma “gesta”, “em última analise até o “calar”, verbal ou corpóreo, passa a valer como um modo de dizer indicial, precisamente daquilo que está além do alcance de qualquer ato fonético ou comportamental (nota 60). Heidegger ao dizer que “a linguagem fala” preserva o caráter originário “indicativo” do dizer humano. In-dica o vivido.
Por caminhos e razões diferentes Wittgenstein e Heidegger desconstruíram a noção de “verdade” como certeza científica de um modo radical. Simultaneamente e, de modo diverso, trazem a possibilidade de discutir a legitimidade da clínica existencial de outro modo, que não havia antes deles. Karl Otto Apel (nota 61), que trabalhou no campo da filosofia e da semiótica filosófica, vislumbra essa aproximação pela referência às noções de “mundo da vida”, na tradição fenomenológica e “forma de vida”, em Wittgenstein: “(em ambos) há uma absolutização do a priori da contingência do mundo da vida…aludindo à exigência de consistência pragmática do filosofar” (nota 62). Para este autor, Heidegger e Wittgenstein dizem que para a filosofia ser consistente em sua prática, não será possível não levar em conta o contexto, as circunstâncias da vida vivida. Se isso é assim para a filosofia, sempre em busca das condições de universalização dos conceitos, então, para a clínica – o reino da singularidade – isto é definitivo. Não há possibilidade de um pensamento clínico, conseqüente e eticamente responsável, sem a impregnação constante das contingências. Em clínica o ético é con-tingente – o “ente” “tingido” pelo que é “com”.
Os dois filósofos, para Apel, tornaram possível esse “giro crítico da linguagem e do sentido” e, noutro âmbito, um “giro pragmático-linguístico e hermenêutico da filosofia”. Acompanhar esta argumento – sem aderir a ele – facilitará, talvez, o entendimento de como a questão ética foi re-colocada, mormente para o que interessa a este trabalho, a legitimidade da clinica existencial. Ou, em outras palavras, como uma clínica consistente e responsável, pode ser pensada no lugar do incerto.
4. A Certeza Incerta
A noção de certeza e sua importância não nasceu com o homem: foi criada por ele. A certeza para o chamado “pensamento moderno”, que vai ser a base para a verdade científica, vem da evidência vivida por uma pessoa em sua experiência interna. O certo é aquilo que ela acredita perceber, e não a existência real, efetiva, de coisas ou pessoas no mundo externo, por exemplo. Os objetos verdadeiros são os objetos da sua consciência, vale dizer, as suas próprias percepções, as sensações, ou as representações que faz do mundo externo. As coisas e as pessoas do mundo externo são, para esse “sujeito”, o resultado das inferências que faz sobre a sua base de dados, que são, por sua vez, imanentes – imantados no ente – à sua própria “consciência”. E será essa “in-ferência” – a “ferência” do “in”, do interno – que tornará legítimo o pensamento, que justificará a verdade, trará a certeza. Na clínica existencial, um modo de expressão disso é o/a terapeuta que diz: “eu sei que ele é assim, eu sinto isso, percebo o seu ser” e passa a agir e a se relacionar com essa pessoa “in-ventada” por ele/a.
Aquilo que uma pessoa toma como realmente existente no mundo externo, no entanto, poderia estar somente na sua cabeça. Como é o caso também do sonho ou do delírio. Na história da filosofia o primado do interno, do que está “dentro” de si, tomado como base suficiente para o conhecimento, tem uma tradição importante, que começa com Descartes no século 17 e vai – pelo menos – até Husserl no século 20. A discussão, aqui, não é sobre aquela certeza subjetiva da experiência interna, como “sentir dor” (nota 63) , ou viver uma revelação mística. Ou mesmo que uma pessoa possa ter a impressão de ter apreendido o “ser” de uma outra pessoa”. O que se questiona é que se possa privilegiar essa certeza pessoal – que é legítima – como um conhecimento do mundo externo válido para as outras pessoas, entre as pessoas, intersubjetivamente: tomá-la clinicamente como verdade definitiva – válida em qualquer circunstância, legítima por si. Como faz a ciência moderna.
No limite do conhecimento da ciência, lá, no “mais fundo”, está, como base, essa certeza da experiência interna. Em outras palavras, o que se traz aqui como questão é que um conhecimento, para ter validade, para ser legítimo, não pode estar fundado na experiência interna de certeza vivida por uma única pessoa. E, uma pessoa que não se apresenta, que não pode ser confrontada, que é desencarnada, ideal, fora do mundo, meta-física, ou transcendental.
E o trágico é que é esse mesmo “saber” é que vai justificar – tornar justo – modos de interferência clínica socialmente legitimados, sobre uma pessoa, que irão da alteração de seus processos psíquicos através de intromissão de substâncias químicas com muitos danos corporais, do aprisionamento e/ou imobilização física (camisas-de-força, internação compulsória), da imposição de intenso sofrimento físico (choques elétricos, banhos de contrastes térmicos), até a mutilação definitiva do seu corpo físico (lobotomia) (nota 64).
Se a experiência interna, mesmo num ser humano “histórico”, fosse aceitável como origem do conhecimento comum, universal, aquele que está conhecendo teria que poder expressar as certezas dessas experiências internas, mas o faria numa linguagem privada, que ninguém mais poderia entender, pois só designaria idéias privadas, como em Locke (nota 65). Mas uma linguagem privada não é concebível porque suas regras – as sintáticas e as semânticas – não poderiam ser ensinadas nem aprendidas por meio de critérios publicamente acessíveis para se seguir regras. A rigor, nem linguagem seria. Mesmo na tradição kantiana a pessoa poderia chegar a conhecimentos válidos, por si mesma, sem necessidade de compartilhar significações com os outros – estabelecer linguagem – uma vez que o critério formal de verdade é o da concordância das idéias com as leis gerais do entendimento e da razão. Buscar a concordância com os outros seria útil para evitar erros, porém, não necessário.
Para visar a questão em outro âmbito, pode-se perguntar como essa experiência interna de um “eu” único, des-historicizado, pode ser justificada como base para um conteúdo de significados, de sentidos, que seja compreensível, que tenha a possibilidade de uma comum-apreensão. Para que algo seja compreensível por outra pessoa teria que estar pressuposta uma linguagem, um modo de partilhamento com outros.
5. Linguagem e Contexto
Com-partilhar com outros um conteúdo vivido significa estabelecer uma linguagem, isto é, obedecer (seguir) uma regra de comunicação que se torna pública (ao menos para esse público compartilhador). E essa regra por tornar-se pública, se torna controlável. Como lembra Wittgenstein “um só não pode seguir uma regra” (nota 66). Só haverá compreensão se existir uma linguagem (com)vivida pelas pessoas envolvidas, um “jogo” comum, com suas regras. Este é um pressuposto, um tipo de a priori, do “jogo de linguagem” da compreensão. Este “pré”, esta “regra”, precisa valer para os interlocutores: se não for assim não se estabelece uma “con-versa”, uma linguagem. A regra compartilhada – esse “pré” – é, por definição, intersubjetivamente válido. Partilhante e clínico aceitam, de antemão, como regra de organização dos sons, que quando emitirem sons aproximados de “ver-me-lho” estarão se referindo a aquela cor ali (nota 67) . Mas nada os impediria de usar o som “red”,”rouge” ou “taramentouiste”, para indicá-la, mostrá-la, dar sua referência.
Esta regra, esse “pré” compartilhado, “entre”, é que torna possível a compreensão de “algo” como “algo”. Para Apel, este seria um novo paradigma da filosofia , uma vez que a primazia da teoria do conhecimento passa à experiência no mundo externo. Experiência que não é certa, porque é tomada por cada pessoa de um modo, mas que, desse modo, através dessa regra compartilhada – a linguagem – é passível de ser compreendida e aceita publicamente. Além disso, a linguagem é controlável e corrigível segundo certos critérios, eles também, pactuados. Muito diferente, portanto, da certeza subjetivo-privada da experiência interna.
Novamente: não se está aqui excluindo a legitimidade das vivências “internas” de uma pessoa. Ao contrário. Clarice Lispector: “Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada” (nota 68) A “verdade inventada”, em trânsito, em constituição – com-instituição – nesse grafar em palavras o que era “pré” até então e, que aqui, numa outra pessoa, transforma um pré – seu – em sentido, com o qual lida. Eventualmente lida com esse “sentido” tomando-o como uma “terrível limitação”. Ou não. A qualquer um/a é dada a liberdade da “certeza subjetiva”, ainda que, em contato com outra pessoa ela possa compartilhar regras, saberes, conhecimentos. Como Clarice. Ela escreve, outro partilha das suas vivências. Vive-as, inventa-as, agora a seu modo.
Um “louco” talvez seja alguém que não encontra linguagem para compartilhar seu mundo “interno”. E, por seu mundo próprio não ser apreendido por outros, ele é tirado do convívio social, por uma parte desses outros. Passa a ser tratado como “diferente”, perigoso – já que desconhecido – deve ser afastado da “comum-unidade”. O “louco” pode ser alguém desesperado em busca de linguagem, em busca de contato, de poder mostrar suas vivências, de ser compreendido – até por si mesmo – mas que tem dificuldade em se utilizar de regras sintáticas e semânticas que pudessem ser compartilhadas por outras pessoas – e consigo. Raramente o “louco” é uma pessoa com comprometimentos corporais, físicos ou químicos na origem das dificuldades de suas vivências e con-vivências. Muitas vezes elas são adquiridas: não poucas vezes, através dos tratamentos.
O argumento usado por Descartes nas Meditações (nota 69) “é possivel q eu esteja sonhando”, para Wittgenstein não tem qualquer sentido, uma vez que essa “afirmação” estaria ela mesma sendo sonhada. Essas mesmas palavras só teriam significado se seguissem uma regra fora de si, independente de si. Não se pode saber se alguém ao pretender seguir uma regra, segue essa regra de modo certo ou de modo errado sem a possibilidade de recorrer a uma instância independente da sua própria “consciência”. Não haveria diferença entre o significado de seguir a regra e o significado de crer que se segue a regra. E, justamente nesta supressão da diferença entre fazer e crer que se faz, é onde se baseia a certeza indubitável da experiência interna na filosofia moderna. Com todas as letras: a certeza científica, a verdade provinda dela, é uma questão de fé (nota 70) . O que Wittgenstein permite é mostrar que diferentes jogos de linguagem – religião, ciência, filosofia, psiquiatria, psicanálise, filosofia clinica – ao serem comparados, facilitam a descrição do uso que as pessoas fazem, em seu cotidiano, da linguagem.
Um jogo de linguagem já pressupõe, para sua existência, outros jogos de linguagem, os quais por sua vez têm que estar entretecidos com a práxis de uma “forma de vida”. Nomear, formar uma linguagem, é um ato mental notável, quase um batismo de um objeto. Mas esse nome não leva consigo nenhum significado compreensível ao objeto. Ao nomear “isto” como “mesa”, se estará dando um predicado linguístico a “isto”. E é por esta razão que não há possibilidade de se criar uma teoria do significado linguístico “universalmente válida”, por intermédio da coordenação de “nomes próprios lógicos” com dados “puros” dos sentidos enquanto partes de um mundo qualquer. O jogo lingüístico da denominação já pressupõe os jogos de linguagem, isto é, dependem do contexto de vida prático, que por sua vez constitui o universo possível de referências para as palavras, vale dizer, as possibilidades de seus significados.
Os usos da linguagem por uma pessoa no cotidiano, estão entretecidos com suas expressões corporais, com as suas atividades, com as suas interpretações do mundo. Ela já está enredada com os outros na interpretação lingüística do mundo, que em seu cotidiano está sempre já guiado por essa interpretação. O pensamento cartesiano não se dá conta disso, de que em seu ponto de partida – “penso logo existo” – já está tomando como pressuposto muito mais que o “puro pensamento”. Está pressupondo uma linguagem e, portanto, uma comunidade de comunicação. Há um “pré”, um a priori do pensamento que é a linguagem (nota 71) . Os “outros” já estão lá, pressupostos, mas, a eles o raciocínio de Descartes não dá voz. E quando aquele “ puro pensamento” – o cogito – se afirma pretendendo dizer o que é válido e o que não é, o que é certo e o que não é, o que é verdadeiro, ele já está no terreno do discurso argumentativo, sem dar ouvidos ou voz aos outros. A sua certeza, a sua verdade, o que considera válido ou legítimo, não passam de argumentos.
Mesmo no mais radical distanciamento que a reflexão possa se colocar – seja em Descartes ou mesmo em Husserl – sempre já estará pressuposta a linguagem como meio, como lugar da validade intersubjetiva do sentido, em conjunto com a intersubjetividade comunicativa. Para Heidegger, lido por Apel, mesmo Kant, em última instância, partiria de uma pressuposição cartesiana de um “sujeito que existe isoladamente” e também, do primado da experiência interna desse sujeito (nota 72). A diferença e a relação entre “dentro” e “fora” da consciência de uma pessoa só pode ser compreendida se já estiver pressuposto que essa pessoa existe, que ela é um “ser no mundo”. No “ser” já teriam que estar, que conter, os entes que “estão”, que “existem” fora dessa pessoa. Kant sempre lastimava o “escândalo” da Filosofia: a falta de prova da existência do mundo externo. Heidegger dirá que o “escandaloso” é que “ se espere e se tente sem cessar semelhantes provas” (nota 73) . O mundo já é mundo. O homem “munda”, forma mundo. Wittgenstein vê a filosofia e seus mal-entendidos como conseqüência da falta de entretecimento de sentido de seus jogos de linguagem – “que caminham no vazio” – com a práxis da vida.
O “mundo da vida” – “lebenswelt”, em alemão – na leitura que Apel faz de Wittgenstein e Heidegger, permite a ambos uma base mais profunda que o da tradição moderna. Ele seria pré-reflexivo , se daria como um “pré”, “antes” do próprio pensamento. O “mundo da vida” seria mais “compreensível”, teria mais “sentido”, seria mais significativo, para os homens viventes.
6. Mundo da Vida e Contexto
O conceito de “mundo da vida” foi introduzido por Husserl em seu livro “As Crises da Consciência Européia” (nota 74), para ancorar, para fundamentar os pressupostos do conhecimento científico e filosófico. “Fazem parte de todo o pensar científico e de todo o questionamento filosófico obviedades previamente disponíveis, que o mundo existe, que existe sempre previamente”(nota 75) . Esse “mundo pré-dado”, ele dirá, “é pré dado a todos nós…pré dado como “o” mundo, o universal-comum. Ele é o solo permanente de validade, uma fonte constantemente pronta de obviedades a que recorremos sem mais, como homens práticos ou como cientistas”(nota 76). Mesmo a lógica só pode ser legitimada, validada, “confirmada” por algo que vem antes, que se relaciona com a vida dos homens em suas práticas, com o “mundo da vida”: “o relativo ao sujeito…é em última instância fundamentador da validade de ser teórico-lógica para toda a confirmação objetiva, ou seja, funciona como fonte de evidência, fonte de confirmação….o que é efetivo no “mundo da vida”, como ente válido, é, por conseguinte, uma premissa” (nota 77) . Para Husserl, para sua fenomenologia, sublinhe-se, resuma-se: o “mundo da vida” é uma premissa, um a priori.
“O “mundo da vida” é um domínio de evidências originárias…para o acesso científico ao mundo da vida fazer valer o direito originário destas evidências e sua superior dignidade, frente à das evidências lógico-objetivas, no que se refere à fundamentação do conhecimento. Tem de ser …trazido à evidência última, o fato de que toda evidência das produções lógico-objetivas…tem as suas fontes ocultas de fundamentação na vida …produtiva…O caminho conduz aqui desde a evidência lógico-objetiva… de volta à evidência originária na qual o “mundo da vida” é, em permanência, pré-dado” (nota 78). Não é pouco o que Husserl afirma na frase anterior: mesmo a evidência “lógico-objetiva” só se fundamentará na evidência mais “originária” do “mundo da vida”. Ele complementará lembrando que mesmo “as teorias são configurações humanas, pertencentes, assim, a essa unidade concreta do “mundo da vida” (nota 79) .
Gadamer (nota 80) que acompanhou de perto o trabalho de Husserl e depois o de Heidegger, termina seu trabalho sobre “o mundo da vida” dizendo: “ gostaria de concordar com o impulso ético que reside na idéia husserliana de uma prática nova estabelecida em termos do “mundo da vida”, mas, colocar ao lado desse impulso…o antigo impulso de um autentico “sensus Communis” (nota 81) seria inadmissivel” (nota 82)
Para Apel, Wittgenstein e Heidegger chegaram, cada um a seu modo ao “mundo da vida” , e foram muito mais radicais do que Husserl no confronto com a tradição filosófica. Husserl teria mostrado como as ciências, ao buscar sentido, baseadas em idéias e abstrações estavam, de fato, tomando como pressupostos os “sentidos” que seriam próprios do ”mundo da vida”. Como Husserl era um “filósofo da consciência”, os sentidos do “mundo da vida” se constituiriam e se legitimariam, intersubjetivamente, através da intencionalidade de uma consciência pensante. Em outras palavras a constituição dos sentidos estariam submetidos a uma consciência (ainda) transcendental-solipsista. Husserl não teria se dado conta em seu raciocínio que essas constituições, mesmo no “mundo da vida”, já estão, sempre, enquanto publicamente válidas, mediadas linguisticamente e que, nessa medida, já pertencem a certas formas de vida condicionadas sociocultural e historicamente (nota 83).
Neste ponto, talvez, é onde se encontram os limites de uma concepção clínica baseada numa fenomenologia husserlliana, que nos seus limites estaria condicionada a uma consciência – ainda – solipsista, em que o “outro”, como tal, “sociocultural e historicamente” condiconado, não se constitui. Em Husserl as subordinações intencionais da consciência do ego, que são pré-linguisticas, têm que fundamentar as constituições de sentido do “mundo da vida”: o sentido é “dado”, instituído a partir da consciência e, na consciência. Para Wittgenstein e Heidegger esse mesmo “mundo da vida” se situa no lugar do que não pode ter base, do que não é “baseável”(nota 84) . Em Heidegger, na figura do “projeto lançado” (o ser-lançado), historicamente condicionado como “ser-no-mundo” (nota 85); em Wittgenstein na figura das “formas de vida” que constituem o pano de fundo dos jogos de linguagem que em cada caso se utiliza. Haveria, portanto, uma pré-compreensão do “mundo da vida” que é lingüística e historicamente condicionada. E por essa razão se torna impossível retroceder a um “ponto zero” do pensamento, onde este se acharia livre de preconceitos (nota 86). O pensamento sempre se dará a partir de pré-juízos, de pré-conceitos.
Em Husserl há o exercício de uma intencionalidade de uma consciência pura, auto-reflexiva. Para Apel a reflexão da consciência, como exercício do pensamento, é que poderia produzir essa evidência de que a significatividade do “mundo da vida” pressupõe uma constituição de sentido pré-reflexiva. Essa constituição de sentido pré-reflexiva tem como base um “pré” que é corporal – de onde se estabelecem as perspectivas – e, um “pré” prático dos interesses – que motivam o conhecimento – e, ainda, um “pré” que se expressa pela facticidade (por seu ser de fato) e pela historicidade como ser-no-mundo. Estes “prés” seriam como uma pré-estrutura necessária à compreensão do mundo , que precede ao – para ele – a priori da reflexão sobre o que é válido, o que é legítimo.
Mas estes “prés” não são uma volta para a experiência interna, lugar onde tudo se dá, isolado do mundo, como se vinha criticando?
Não, porque esses “prés” já são, eles mesmos, conseqüência da relação com o “mundo”: eles são con-formados pela linguagem. Já são exercício. Cada “a priori pré reflexivo” já é um modo de linguagem. Um modo de linguagem ligado, conectado à primazia da vida prática. Essa “vida prática” constitui sentido. E se refaz nesse exercício. Faz a “ex-peri-ment-ação”: a ação de sair de si – “ex” – se relacionar como o movimento em torno – “peri” – e voltar-a-si. Essa “relação com o movimento em torno”, ao ser absorvido, nesse próprio ato, descreve a constituição disso, a linguagem. Tomada para si o “resultado” próprio/singular do contato-com-o-mundo, aquilo que fora extro-vertido-de-si, não é mais “aquilo”: passa a ser um “outro aquilo” que é o que se está nomeando como “pré”.
E será esse “pré”, assim constituído, sempre re-constituindo-se, que conformará, dará forma à nova “ex-peri-ência”: o “estado” – a “ência”- em que a relação “ex” com “peri” se faz. Em outras palavras, na própria língua a palavra-conceito de “experiência” já está pressupondo um “pré” que a constitui: sem esse “pré” não há experiência possível. Sem um modo de linguagem – aqui se entende linguagem assim – não se realiza experiência. Linguagem constitui mundo.
7. Ética, Legitimidade e Linguagem
A linguagem é esse “pré” que se dá “entre”. Entre um e outro, num e noutro, só se dá em relação. É, por definição um sentido comum pré-acordado, um consenso. Linguagem privada é um contrasenso, ou mais propriamente: a loucura. A legitimidade da clínica existencial se faz através desse modo de consenso pré-estabelecido que é a linguagem. Será só através da experiência ininterrupta da linguagem que uma comunidade poderá aceitar o sentido de um tratamento, de uma terapêutica.
Este sentido de legitimidade pela linguagem, na “área clínica”, desfaz a submissão das teorias à autoridade dos conhecimentos científicos. As ciências são importantíssimas, mas seus princípios e seus modos não são aplicáveis neste campo de saber. Aqui os conhecimentos partem do singular para chegar ao singular, são caminhos sempre em constituição, exercício entre o pensamento e a prática e, suas referencias são éticas. Não se amparam em “teorias” vinculadas a certas idéias – filosóficas -, que em seus limites encontrariam certeza ou ao menos uma certa impregnação na ”verdade”.
A ética, neste campo, se dá através de um consenso, do ir e vir. Ela não está em algum lugar obscuro, a partir do qual emanaria suas “ordens”: a ética se coloca na claridade das ambigüidades humanas, ali onde a linguagem se faz. A ética não fala de “exatidão” pois “pertence à estrutura essencial do fenômeno ético – e clinico – o fato de que aquele que atua – um e outro – deve saber e decidir por si mesmo e não permitir que lhe arrebatem essa autonomia por nada” (nota 87). A ética não pode ser entendida como um exercício de “filosofia da vida” (nota 88). A vida é um modo de ser próprio, singular, cada qual abrindo-se para as suas circunstâncias, o seu mundo, a sua memória. “A estrutura da existência não pode ser confundida com um existencial derivado… o que é “bom” no viver também é um conceito derivado… o bom originário é a herança que nos provém da tradição e tem o sentido daquilo que favorece ou facilita o nosso ser-no-mundo” (nota 89). História, tradição, memória, herança que vem através desse “em comum” privilegiado que é a linguagem. Linguagem que cria a possibilidade da com-preensão – a “a-preensão com” – que “valida o valor”, dá sentido à ética. Legitima.
A linguagem ao dar sentido à ética através da compreensão, por sua característica de exercício constante de apreensão no ir e vir de sentido, permite o re-vigoramento do sentido ético na prática clínica. Lá, algumas vezes, não ser compreendido pode ser melhor do que se tornar prisioneiro do que o clínico entende como “o bem” para si. O “bem estar”, a “paz de espírito”, a ”tranqüilidade”, a “felicidade” podem não ser o seu “assunto” (nota 90), a sua querença em clínica. Sem o exercício ininterrupto da linguagem não há clínica legitima.
No trabalho de “contenção” de uma pessoa “em surto”, com comportamento agressivo e violento, é imprescindível criar a possibilidade de estabelecimento de outros modos simultâneos de linguagem (nota 91) , pelas quais ela possa entrar em contato com sua própria humanidade, sua constituição espiritual. Imobilizá-la certamente evitará que outras pessoas sejam atingidas ou feridas, mas com isso aquela pessoa ainda estará lá, mesmo presa, com suas vivências, desatendida, inapreendida, em sua solidão muitas vezes desesperada. Para que se acalme lhe invadem o corpo com violência socialmente autorizada, através de produtos químicos, esperando-se o efeito – que não deixa de ser “mágico”, mesmo sendo “controlado” – daquelas substâncias. Sua vida, seus viveres são como que afastados de seu próprio domínio, para lugares longínquos, brumosos, confusos. Nessa lonjura espiritual em que passa a viver, maior será sua dificuldade para tornar comum as suas vivências, mais difícil estabelecer uma conversa, transformar seu mundo interno. E não se desqualifique a dificuldade dos contentores, não se valide só com isto a – valorosa e necesária – luta antimanicomial. Aqueles que estão fazendo o seu papel, obedecendo ordens, como aqueles que os contestam por terem vivido outras tantas experiências similares, não seriam capazes, eles mesmos, de estabelecer uma linguagem mínima, entre si? Todos têm a sua razão, falam de um lugar defensável, mas, há um que sofre em seu corpo, em seu espírito as terríveis conseqüências desta afonia. Contido, drogado/medicado, ele é inserido numa lógica de isolamento que, no mais das vezes, trunca sua possibilidade de vida futura autônoma. Também aqui a clínica só se legitimaria através da linguagem. Quem com o olhar, ou com o ouvir de um breve relato diagnostica um transtorno, uma síndrome, autorizando o uso da força social comum, para em seguida golpear-lhe com uma cápsula ou uma injeção, poderia se dedicar ao exercício da linguagem: ouvir este que chega; ouvir e conversar com quem o traz; trocar conhecimentos com quem está a seu serviço, “treinando-lhes os ouvidos”; trazer para perto, dialogando com quem pensa diferente e que vem de outras experiências, colegas ou não, envolvendo-se e envolvendo-os nas soluções, antes de repetir os próprios procedimentos. Trata-se de desinternalizar, desmanicomializar a si próprio neste seu papel existencial. Tramar linguagens. Clinicar. Legitimar-se.
O sentido do que se afirma para os outros ou para si é liberdade em exercício. Re-instituição da sua lei própria, que se projeta e se repõe como linguagem, para si, para o outro, disposto, a apreender, a compreender. O sentido de sua lei – a legitimidade – não perde sua natureza humana, transitória.
Cláudio Fernandes 2013 e 2020
Notas
nota 1 – Werner Karl Heisenberg, 1901 a 1976, físico alemão, formulador da “teoria da incerteza”, ligado à teoria quântica, Nobel em 1932
nota 2 – Heisenberg, A Parte e o Todo, pg 154 e 155
nota 3 – Lacan, Jacques , Escritos, pg 882 (Jacques-Marie Émile Lacan 1901 a 1981, psiquiatra e psicanalista frances, ficou conhecido por suas contribuições à psicanálise, tomando por base sua clínica e uma leitura muito pessoal dos textos de Freud, incorporando aspectos do estruturalismo frances, da lingüística, da matemática e da filosofia)
Nota 4 – Bertoche, Gustavo, Realidade e Realização – a dialética do real na epistemologia de Bachelard, pg 233
nota 5 – talvez ainda como parte da herança da tradição da lógica de Port Royal
nota 6 – Gottlob Frege, 1848 a 1925, matemático, filósofo e lógico alemão, considerado um dos pais da filosofia analítica e da filosofia da linguagem
nota 7 – Frege, Conceitografia pg 43 in Lógica e Filosofia da Linguagem
nota 8 – idem, pg 61
nota 9 – Frege, Sobre a justificação científica de uma conceitografia pg 59
nota 10 – idem, pg62
nota 11 – Bertrand Russell, 1872 a 1970, matemático, lógico e filósofo britânico, com um amplo espectro de obras em várias áreas do conhecimento humano, foi muito influente nas formulações teóricas sobre lógica e linguagem, nas déadas de 20 e 30 do século 20, Nobel em 1950
nota 12 – Santos, Luís Henrique, pg XIV , de de vida e obra de Russell – Os Pensadores
nota 13 – “tudo aquilo que implica a totalidade de uma coleção não deve ser membro da coleção”, pg XVII
nota 14 – Russell, pg “nosso conhecimento do mundo exterior”
nota 15 – idem, pg 154
nota 16 – serão muitos os desenvolvimentos de seu pensamento, seguindo várias direções, com idas e vindas, mas não está no escopo deste trabalho descrevê-las ou desenvolvê-las. Fique apenas o registro, que a questão da relação da linguagem com a lógica, do controle das indeterminações constitutivas daquela por leis certas e seguras desta, colocada por Frege, se tornou a de Russell e de toda uma tradição da filosofia, como para Carnap, Wittgenstein e, Austin
nota 17 –Wilhelm Dilthey, !833 a 1911, historiador, psicologista e sociólogo alemão, considerado o pai da tradição historicistal
nota 18 – Frans Brentano, 1838 a 1917, filósofo e psicologista alemão, que introduziu o conceito de intencionalidade, é considerado uma gande influência na formação de Freud
nota 19 – Sigmund Freud, 1856 a 1939, medico neurologista austríaco, criou a psicanálise, e foi, talvez, a figura intelectual de maior influência no ocidente no século 20
nota 20 – Edmund Gustav Albrecht Husserl, 1859 a 1938, filosofo alemão, foi o criador da fenomenologia transcendental, um dos movimentos filosóficos mais importantes no século 20
nota 21 – “investigações lógicas”
nota 22 – Husserl, pg 1, Investigações Lógicas dem , pg 1
nota 23 – Husserl trabalha sob a noção “metafísica” de um “mundo”, newtoniano-galileico, composto de sujeitos e objetos
nota 24 – Husserl, pg 3, Investigações Lógicas
nota 25 – idem
nota 26 – idem
nota 27 – idem, pg 36
nota 28 – Gianni Vatimo, 1936, filósofo italiano, discípulo de Hans-Georg Gadamer, com trabalhos importantes sobre Heidegger e Nietzsche
nota 29 – Vattimo, pg 10 e 11 “introdução a Heidegger”
nota 30 – idem, pg 24
nota 31 – o marco inaugural da psicanálise – “A Interpretação dos Sonhos” – também é de 1900
nota 32 – Soller, pg 33 “O inconsciente…”
nota 33 – idem, pg 34
nota 34 – Ferdinand de Saussure, 1857 a 1913, lingüista suíço, cujas idéias serviram para um grande desenvolvimento dos estudos linguísticos, com grande destaque pela incorporação de suas idéias no movimento estruturalista frances, no século 20
nota 35 – Claude Lévi-Strauss, 1908 a 2009, antrpólogo e etnólogo frances, considerado o pai da antropologia moderna e do estruturalismo
nota 36 – Ludwig Josef Johann Wittgenstein, 1889 a 1951, filósofo, matemático e lógico austríaco, talvez o mais influente autor nos campos da lógica e nos estudos da linguagem
nota 37 – Wittgenstein, Tractatus
nota 38 – esse trabalho caracteriza o chamado “1º. Wittgensten”, que será criticado por ele mesmo, o “2º.Wittgenstein”
nota 39 – Wittgenstein, pg 165, Tractatus – 4003
nota 40 – a partir deste ponto de vista a clínica existencial deveria preferencialmente ser exercida por lingüistas, matemáticos, ou engenheiros de informação, cientistas cujo requisito fundamental seria uma sólida formação em lógica
nota 41 – Wittgenstein, pg 23, “investigações”
nota 42 – idem, pg 22
nota 43 – idem, pg 23
nota 44 – Ser e Tempo
nota 45 – Heidegger, pg 224, Ser e Tempo
nota 46 – Heidegger, pg 10, Caminhos da Linguagem
nota 47 – idem, pg 67, Ser e Tempo
nota 48 – idem, pg 77, idem
nota 49 – o que é, o ser…etc..
nota 50 – referir algumas formas de se tomar isso
nota 51 – citando Seminário de Zollikon e Seminário Thor
nota 52 – “nennen”, em alemão
nota 53 – “aussagen”, em alemão
nota 54 – Heidegger, pg… Seminário de Thor
nota 55 – Zeljko Loparic, 1939, filósofo croata naturalizado brasileiro, é um dos maiores especialistas contemporâneos em Kant e Heidegger e se dedica a estudos de psicanálise, na vertente de D. Winicott
nota 56 – Loparic, pg 288, “Verdade e Respeito”
nota 57 – Wittgenstein, pg 281, “Tractatus”– é como termina-o
nota 58 – Fingermann, pg 12
nota 59 – Loparic, pg 289, “Verdade…”
nota 60 – Lopairic cita Heidegger para quem a linguagem é uma Sage (gesta) e q a Sage é uma Zeige (dica). A etimologia não serve para provar nada mas para ajudar a pensar aquilo que é nomeado, mas q ainda não foi desdobrado”
nota 61 – Karl-Otto Apel, 1922, filosofo alemão, da 2ª geração da escola de Frankfurt com Habermas, desenvolveu uma teoria da linguagem, que ficou conhecida como semiótica filosófica transcendental, tendo em seus trabalhos aproximado o pensamento de Heidegger ao de Wittgenstein
nota 62 – Apel, pg 73, “Semiótica transc..”
nota 63 – Wittgenstein, pg 98 e 99, “Investigações”
nota 64 – e o modo de expressão desse saber são as “psicopatologias”, em geral um mal arrazoado compêndio de observações viciadas em seus modos de apreensão, por agentes e “cientistas” com pouquíssima vivência nas ocupações de cuidados humanos
nota 65 – Locke, pg…. ,” Sobre o entendimento humano”
nota 66 – Wittgenstein, pg 138-242 e 243-363, “Investigações”
nota 67 – a questão de por que usamos esses sons-signos “vermelho” e não outro, está fora da esfera desta discussão, pois se entraria em questões teóricas da linguagem, que não cabem aqui
nota 68 – Lispector, pg 25, “Aguaviva”
nota 69 – Descartes – Meditações sobre a Filosofia Primeira
nota 70 – nada contra a dimensão religiosa, mas que se dê o nome próprio a cada coisa
nota 71 – a ação pela qual se pretende tornar algo –isso, aquilo – comum – o que era “um” se tornar “com”
nota 72 – Apel, pg 37, “Semiótica”
nota 73 – Heidegger, pg , Ser e Tempo
nota 74 – “As Crises da Cs Européia” como uma reação a Ser e Tempo (que foi a ele dedicado), de seu discípulo, assistente e amigo Heidegger
[nota 75 – Husserl, pg 89, “Crises…”
nota 76 – idem, pg 99, idem
nota 77 – idem, pg 103, idem
nota 78 – idem, pg104, idem
nota 79 – idem, pg 106, idem
nota 80 – Hans-Georg Gadamer, 1900 a 2002, filósofo alemão, discípulo de Heidegger, desenvolveu amplos estudos em hermenêutica filosófica
nota 81 – o “senso comum” de Descartes
nota 82 – Gadamer, pg …. “Hegel,Husserl, Heidegger”
nota 83 – Apel, pg 72, “Semiótica…”
nota 84 – forçando um pouco a língua portuguesa
nota 85 – ver Loparic “Ética e Finitude” pg 19 e seguintes
nota 86 – no sentido que lhe dá Gadamer e que será objeto de observações no capítulo sobre aspectos da filosofia clínica, a seguir, neste trabalho
nota 87 – gadamer, pg 313, “Verdade e Método”
nota 88 – Heidegger, pgfo 10, “Ser e Tempo”
nota 89 – Loparic, pg 307, “Verdade e Respeito”
nota 90 – na filosofia clínica o tratamento é orientado a partir do “assunto” que a pessoa traz. É dividido em “assunto imediato”, aquele primeiro, a queixa inicial e “assunto último” que poderia ser traduzido como “a questão da pessoa”,, aquilo que a move
nota 91 – o esforço das pessoas – enfermeiros, familiares – na tarefa de imobilização, também pode ser uma tentativa de estabelecer linguagem
Hrant Dink foi um jornalista Armeniano assassinado na Turquia em 2007. Em uma entrevista concedida no mesmo ano de sua morte, Hrant, que durante sua vida lutou para que o genocídio armênio praticado pelos turcos fosse reconhecido, relatou uma história sobre seu avô, reproduzida abaixo.
Antes de o genocídio começar, em 1915, o seu avô, que seria deportado junto com toda a família, permaneceu em sua fazenda até o último instante possível tentando consertar a máquina que faria a próxima colheita da safra. Seu filho, pai de Hrant, disse-lhe: “pai, nós não estaremos aqui para a colheita, seremos deportados. De que adianta consertar essa máquina?” O velho homem disse: “Eu tenho que… Outros fazendeiros chegarão e farão a colheita. Não podemos deixar a máquina quebrada. Eles precisarão dela.” De fato ele foi deportado e morto logo depois.
O exemplo acima nos conduz a uma breve reflexão: somos seres beneficiados pelo sacrifício de muitos que vieram antes de nós. Pessoas desconhecidas que em seus dias de silêncio e sem holofotes lutaram por nós, habitantes do tempo presente; pessoas que sabiam que não colheriam os frutos de seus atos. Alguns poucos se tornaram personalidades conhecidas por suas lutas éticas, como Gandhi, por exemplo; mas milhares de desconhecidos, no silêncio de suas vidas, também lutaram pelo legado das gerações futuras…
Quando paramos para refletir acerca de nossas vidas individuais, por mais que nós insistamos, não saberemos se os anos que ficaram para trás foram melhores ou piores que os anos que virão pela frente. Cada novo dia pode trazer consigo, em suas dobras de tempo, surpresas e eventos que podem marcar nossas existências de modo maravilhoso ou trágico. No entanto, enquanto sociedade, quando olhamos com lucidez e crítica para nosso tempo, é difícil escapar de um sentimento de pessimismo. Penso que tal negativismo, dentre outros fatores, repousa substancialmente na percepção de que as relações humanas estão frágeis, desgastadas e a ponto de ruir; com as necessidades básicas satisfeitas, nossa época é o tempo da “espetacularização” e da superficialização dos afetos; da dissolução dos espaços públicos de debate; do narcisismo e do egocentrismo.
Gostaria de ampliar o olhar sobre nosso tempo, trazendo à discussão o filósofo Hegel e sua dialética histórica.
A tradução literal de dialética significa “caminho entre as ideias”; através do diálogo e da argumentação capazes de distinguir claramente os conceitos definidos na discussão entre opostos, tese e antítese, carreadoras em si de “partes da verdade”, exageros e distorções, chega-se a uma síntese que traz em si mais “partes da verdade” e menos exageros e distorções. Hegel nos traz a ideia de que a evolução da humanidade se dá de modo dialético.
Segundo Hegel, a dor e um novo olhar para a dor é o inicio da possibilidade do novo construído a partir de relações de superação. E a mensagem de esperança reside em uma espécie de confiança histórica da superação e construção do novo, cujas imperfeições serão contrapostas e engendrarão a síntese a partir de diálogos, reflexões, conflitos e construções, e assim por diante. O método dialético nos incita a revermos o passado à luz do que está acontecendo no presente, questionando-o em nome do futuro, em nome do que “ainda não é”. E se fizermos um breve exercício de reflexão, podemos conjecturar acerca de nosso tempo e do novo que, não sem dificuldade, tenta se insinuar.
A partir da revolução industrial, e mais recentemente com a revolução tecnológica, o humano cada dia mais se torna um ser mecanizado e utilitarista, cuja razão instrumental reifica o outro humano, estabelecendo com o mesmo uma relação objetal. O outro é visto como um meio para fins próprios. E quando vemos movimentos de retorno a uma “humanização” perdida, estamos em uma relação de oposição dialética. Por exemplo, quando começamos a nos insurgir contra os abusos da ciência, que assumiu para si o papel de estabelecedora da verdade, estamos nesse processo. Um dia a ciência nos prometeu a felicidade, a paz e a harmonia entre as pessoas; mas quando fomos obrigados a assistir pessoas sendo transformadas em fumaça na 2ª guerra mundial, começamos a perceber que algo estava errado. E o problema não está na ciência em si, mas na mercantilização e desumanização que caminhou ao lado do progresso científico e tecnológico.
Introduzirei agora em nossa discussão o chamado “nascimento humanizado”, uma espécie de movimento humanista contra os abusos provocados pela técnica no trabalho de parto e no nascimento das crianças.
Para muitas pessoas o parto é apenas o modo pelo qual a criança vem ao mundo, importando apenas o resultado final, ou seja, a criança no mundo. No entanto, refletindo sobre o fenômeno em si, facilmente chegaremos à percepção de que o parto, seja por via vaginal ou cirúrgica, é o ato (ação e sensação) através do qual uma vida se inaugura no real; é muito mais que apenas o nascimento de mais uma criança no mundo. O parto é o ato de amor e doação inaugural dos pais que conceberam essa criança. A criança, para esses pais, é como os novos fazendeiros que chegarão para cultivar a terra. No entanto, diferentemente da ética absoluta do senhor da fazenda, que prescindia do nome dos sujeitos da próxima geração, a criança é cria; carne da carne, sangue do sangue; vem do ventre, vem da terra; vínculo maior entre humanos não há. A ética se impõe (ou deveria) com robustez, instinto e força. Penso que atitude ética fundamental dos pais em relação aos filhos se dá no ato inaugural desse novo ser que vem ao mundo.
Pois bem. Intuitivamente, como seres de natureza, não é difícil chegarmos à conclusão de que deve haver algum sentido natural, alguma importância fisiológica para a mãe e para o bebê no período de tempo denominado “trabalho de parto”. Mas para quem se mecanizou em demasia e prefere legitimar a ciência à natureza, ofereço-lhes então a própria ciência e seus inúmeros estudos que atestam os benefícios para mãe e filho que “entram” em “trabalho de parto”. Dito isso, torna-se difícil e um contrassenso qualquer argumento contrário a respeito da necessidade de se respeitar o tempo do parto; qualquer argumento contrário à importância de se “entrar” em trabalho de parto assume ares, para mim, de passionalidade histérica.
No entanto, em nosso país, o número de cirurgias abdominais agendadas para a extrusão do bebê sem que o mesmo tenha entrado em “trabalho de parto” é assustador. A criança, em sua fragilidade absoluta, é “arrancada” de seu meio natural e de seu estado de natureza, chegando ao mundo de modo abrupto, antecipado e artificializado. Os médicos, exercendo o poder, e os pais, por falta de informação e apoio e/ou por comodismo e/ou medo, são os agentes comumente envolvidos nesse ato de violência contra a criança que vem ao mundo privada de seu momento de transição entre a vida uterina e a vida fora do útero.Com exceção das situações onde a ciência é bem vinda e cuja intervenção prematura se faz necessária e pode salvar vidas, o parto é um ato humano, natural, visceral; negar essa passagem do tempo onde se põe em marcha uma cascata de eventos biológicos, tanto na mãe como na criança, é negar também a biologia a partir da qual a criança foi gerada.
A casuística individual não está em questão aqui; tampouco há espaço para um julgamento moral. O que trago aqui é uma reflexão ética radical em relação ao egocentrismo, comodismo, medo, mercantilismo e narcisismo imperante em nossa sociedade a ponto de não permitir nem mesmo que nossos filhos venham ao mundo no seu tempo.Trato aqui de uma cultura artificializada e mecanizada de vida que é capaz de vilipendiar até mesmo a chegada de nossos filhos. O que dizer então das relações entre as pessoas do presente? E o que dizer das relações com os desconhecidos das próximas gerações?
A condição maquinal dos seres humanos modernos pode parecer uma limitação, uma fraqueza da sociedade infantilizada, anestesiada e egocentrada. Na verdade, penso que tal condição agigantou-se e assumiu proporções ainda mais drásticas: tornou-se condição de sua sobrevivência. Joseph Conrad, em seu conto Anoutpostofprogress, de 1896: “O indivíduo contemporâneo é moldado pela sociedade até o mais íntimo de seu ser; poucos se dão conta de que sua vida, a própria essência de seu caráter, suas capacitações e ousadias não passam da expressão de sua crença na segurança do meio que os cerca. A coragem, o autocontrole, a confiança; as emoções e os princípios; todo grande pensamento e todo pensamento insignificante não pertencem ao individuo, mas à multidão; a multidão que acredita cegamente na força irresistível de suas instituições e de sua moral. É a grande marcha da humanidade anestesiada pelo mito do progresso. Mas o mito do progresso é poderoso, como uma prisão perpétua. E fora dessa prisão perpétua, o indivíduo não sabe o que fazer da própria liberdade, tamanho o medo e o pavor diante da percepção de que toda ideia de controle e segurança diante da existência não passa de ilusão. E por isso precisam da prisão que esfola sua intimidade e determina sua vida”. O individuo contemporâneo descrito por Conrad (atentem para a data em que foi publicado o conto: 1896) caminha, paulatinamente,para um estado de perda da autoimagem e da identidade; perdido e incapaz de entender a realidade que o cerca, é deformado e absorvido de modo irrefletido por essa realidade.É sujeito passivo, um personagem de si mesmo que vive de modo inautêntico e é levado pela “massa”. Voltando o olhar para nosso tempo, um tempo que ainda vive sob a égide do “mito do progresso”, e um tempo onde vicejam as grandes epidemias de depressão, ansiedade, suicídio, medicalização e drogadição, precisamos, enquanto sociedade, buscar uma espécie de “reorientação” diante da realidade que nos cerca.Caso contrário, continuaremos sendo absorvidos e deformados pela mesma.
Uma última reflexão: também as crianças de nosso tempo, imersas na cultura da artificialidade desde o nascimento, estão cada dia mais medicadas e cometendo atos de violência e suicídio. E se tais dados não forem suficientes para ensejar uma reflexão mais demorada e profunda sobre a nossa cultura, nossos medos e nossas relações, a começar por nossos filhos, é melhor deixar a máquina para a colheita quebrada mesmo, pois tudo estará perdido.Hegel, que tentou estabelecer um esquema histórico que explicaria e anteveria os novos passos da humanidade, talvez não tenha contado com o absurdo de nossos tempos: em uma época com tantos recursos e facilidade de comunicação, viceja, ao invés do dialogo, a solidão e os ataques pessoais entre os adultos carentes, egocentrados e infantilizados.
O ano de 2020 caminha para seus últimos meses. No entanto, o desfecho desse ano “caótico” (mais para uns que para outros, iluminando ainda mais o claro o abismo social que nos separa), não será simbolizado pelo natal e pelas festas de final de ano, mas sim por uma vacina. E para muitos, asensação um tantovaga e incômoda – de que o tempo está passando depressa demais e a existência se esvaindo como areia entre os dedos – ganhou contornos de desespero. E é sobre a percepção da passagem do tempo que os convido a uma reflexão a partir do pensador francês Bergson (1859-1941).
O filósofonos trouxe o conceito de que vivemos em dois mundos: o mundo externo, com o qual nos relacionamos através do instinto e da inteligência (que nos direcionam para o mundo da matéria) e o mundo interno, o qual acessamos através de nossa intuição.
Quando acessamos nossa interioridade transcendemos a existência dura e concreta e fugimos da mensuração do relógio. Aceder à nossa interioridade significa escapar, ultrapassar a nós mesmos, criar, expandir nossa consciência e dilatar nossa existência enquanto essência. Esse tempo é inapreensível e perene porque nos modifica e nos transforma, deixando rastros eternos e não se consumindo em si mesmo.
O mundo material sensório-motor, ao contrário, em seu enquadramento cada dia mais utilitarista e instrumental, nos rouba facilmente a real percepção do que significa cada milagroso segundo de nossas existências. Bergson denominou “tempo de latência” o tempo decorrido entre um estímulo recebido e a resposta subsequente. E é nesse intervalo, quando ficamos com nós mesmos, que habitamos o nosso mundo interno e nossa originalidade. Um mundo onde as resistências e os disfarces são dissolvidos e onde refletimos,imaginamos, viajamos e criamos; um mundo onde nos aproximamos de uma transcendência possível e criadora e a partir do qual engendramos açõeshumanizadas. E nesse interlúdio entre o estímulo e a reação, o tempo caminha a lentos e (potencialmente) prazerosos passos. É no silêncio de nosso mundo interno que nos encaramos verdadeiramente no espelho e nos aproximamos de quem verdadeiramente somos. É nesse “espaço” que nossos potenciais latentes e quase infinitos pululam e anseiam por vir à tona até a superfície da existência. É através da reflexão, da meditação, da imaginação, da criação, da leitura, da musicalidade, do prazer estético que entramos em comunhão com o que se chama de divino, milagre da vida.
No entanto, basta um discreto olhar ao mundo que nos cerca para observarmos que nossas existências estão cada dia mais voltadas para o mundo externo. Trabalho, entretenimento, aparatos tecnológicos, aparências…. Nossasrespostas tornam-se condicionadas e automatizadas, desprovidas de exercícios intuitivos, afastando-nos sobremaneira de uma vida e de uma existência mais humana. Tornamo-nos seres mecanizados que seguem em rebanho em busca de “bens”, em nome da competitividade, da felicidade (comumente egoísta) e do “sucesso”. E nas poucas horas livres mergulhamos na tecnologia excessiva que nos cerca e nos consome. Agimos e interagimos na matéria e confundimos nosso eu-profundo com o eu-material utilitarista e hedonista. Padecemos da pior forma de escravidão: a escravidão que impomos a nós mesmos sob o signo de uma suposta liberdade.
E é por habitarmos tão pouco nosso mundo interno que sentimos o tempo esvair-se tão velozmente. Os dias sucedem-se uns aos outros em velocidade vertiginosa e fugaz.E quando paramos um pouco nossos afazeres para um olhar mais demorado e refletido, vem o susto: a semana já acabou, o mês já terminou, mais um ano se foi…
É fato inquestionável queos tempos, as velocidades e os valores mudaram. E precisamos nos adaptar e celebrar os avanços e conquistas da modernidade, evitando o saudosismo ingênuo, idealista e contraproducente de um (suposto) tempo mais feliz que não volta mais.Mas tampouco precisamos embarcar de modo irrefletido na onda subjetivista do antropocentrismo radical que valida a individualidade acima de tudo.A tecnologia deve vicejar a serviço de uma ética humanista e não como instrumento de controle e distorção da natureza humana. Aqui não cabe uma discussão maior a respeito do tema, mas eu gostaria de deixar umamatéria que me é muito cara para reflexão.
A literatura (em seu sentido mais amplo: uso estético da linguagem escrita) é uma forma de resistência, pois para ler precisamos “perder tempo”, desacelerar, repousar nossa mente em um lugar tranquilo e sereno, distante da agitação autofágica da modernidade tecnológica e egocêntrica. Quando lemos dilatamos nossa sensibilidade e nossa percepção de mundo e de existência; estimulamos nossa criatividade e nossa imaginação; ampliamos nosso vocabulário e nossa capacidade de articular ideias e palavras e de interagir com o mundo e com as pessoas através de uma linguagem mais sensível, elaborada, autêntica e marcante. Não à toa o nível de leitura de uma sociedade guarda relação direta com o grau de desenvolvimentoda mesma. Não à toa a triste situação de nosso país guarda relação direta com o fato de que, segundo recente estudo, mais de 70% da população brasileira não lê um único livro ao ano e nosso índice per capita é de 1,7 livro/ano…
Entre tantos desejos, planos e metas para o ano e para o mundo “supostamente” pós-pandêmico que se nos insinua repleto de possibilidades, deixo essa singela e humilde mensagem: o tempo “corre” depressa porque nós fazemos nossas horas de vida “correrem” descoladas do que realmente importa e resiste ao tempo. E cabe a cada um de nós, dentro de nosso âmago e de nosso silêncio íntimo(ainda inalienável), refletirmos sobre nossas existências e sobre nossos passos para os dias que virão, com ou sem vacina.
O conhecimento da experiência humana, no ocidente, talvez possa ser dividido em áreas ou campos muito diferentes entre si. Numa primeira aproximação estariam a educação, a religião, a arte, a ciência e a filosofia, cada uma caracterizando um modo de experimentar e conhecer que se subdividiria em modos muito diversos, através dos séculos.
Com o tempo cada divisão acabou se transformando em critério do que seu objeto é, ou seja, se tornou a medida de sua constituição, de sua essência. A medicina que cuida do corpo material do homem. Nessa inversão a experiência perde seu valor de constituição, sua linguagem fica dependente do que essa área de especialização define como válido, como verdadeiro. Ela se torna uma instancia de decisão do que é possível e do que não é, como uma espécie de filtro, que só permite passar determinados aspectos das experiências, dos fenômenos, das coisas.
Na clínica que trata de questões existenciais isto se tornou dramático e trágico, porque não havendo uma área própria, ela ficou encaixada no âmbito da ciência, sob a divisão da Psicologia ou da Medicina – neste caso subdividida como Psiquiatria. Muitas foram as razões históricas para este percurso, mas isto não justifica a permanência disto neste início de século 21. O século passado foi palco de uma profunda reviravolta das bases do pensamento ocidental, com alterações definitivas nos padrões e fundamentos das ciências.
A clínica existencial não tem um campo próprio de referências que acolha as suas práticas, as suas teorias, os seus métodos, os seus valores, suas tradições, seus saberes, suas dúvidas. Um campo próprio para ela não pode ser de natureza semiológica, porque as suas questões não nascem do olhar, mas teria de ser um campo semântico, porque tratam dos sentidos, produzidos pela escuta, como se verá à frente.
Num campo semântico próprio cabem todas as clínicas que se baseiam na escuta: as psicanálises – junguianas, kleiniananas, bionianas, freudianas, reichianas, lacanianas, winicottianas, etc – certas psicologias – associacionistas, rogerianas, da personalidade e outras – as dasein-analises, as filosofias clínicas e outras. Outras práticas que oscilam oscilam entre a escuta e procedimentos provindos de semiologias científicas como algumas psicologias – comportamentais, funcionalistas, gestaltistas, skinneristas – ou as clínicas psiquiátricas. Cabe interlocução, conversas, trocas de experiências num campo de fato apropriado.
Não há clinica, nesse campo, sem linguagem. A linguagem não fundamenta, ela legitima. Nestes modos de clínica há uma linguagem que se estabelece entre o clínico e quem o procura, num processo de expressão, impressão, assimilação e transformação de sinais sonoros e gestuais, de parte a parte. Sinais que procuram se tornar veículos de vivências. O clínico busca apreender o que está indicado nas palavras, nas expressões, nos gestos, e nas combinações do que “vem” de lá, desse outro.
Falar e ouvir são práticas comuns, cotidianas, ordinárias. No dia a dia é pratica comum transmitir e interpretar mensagens. O habitual é tomar-se o que a outra pessoa diz a partir das próprias referencias sem atentar para as suas referências, como se as palavras, os gestos, as expressões, tivessem um só sentido, um significado óbvio, comum a todos. Como se as referências de uma pessoa fossem as mesmas das do “mundo”. Isto gera muita confusão, mal entendidos, controvérsias. O “ouvir clínico”, entretanto, exige cuidados diferentes, especiais. É um campo de significações próprio. Em construção.
As ciências não estão isentas de dificuldades. Talvez, sofram de forma até mais aguda, na medida em que são também atividades dependentes da linguagem e, de outro lado, têm para si um elevado grau de exigência de certeza, de segurança e de precisão. Que nenhuma linguagem humana pode oferecer. O pressuposto básico do qual elas partem é que o significado de uma expressão (sonoro ou gestual) é denotativo, isto é, estritamente informativo, referencial, objetivo. Fala-se do mundo, “como o mundo é”. Pressupõem, portanto, uma certa “realidade” em que há um sujeito que observa e, um objeto observado, claramente distinguíveis, um do outro. O objeto referido ou denotado pela linguagem, estaria “no mundo”, poderia ser claramente definido, distinto de qualquer outro. O “real” são os sujeitos e os objetos, a linguagem um modo de acesso a eles, de descrevê-los.
Nesta vertente está o trabalho clínico de um terapeuta “científico”, “técnico”, que busca “des-pato-logizar” – desfazer a doença ou o sofrimento – para recuperar os significados verdadeiros, sólidos, certos para qualquer pessoa. Usando a lógica, a linguagem, uma linguagem lógica. E por isso a pessoa se torna “paciente”, o “objeto” no qual se fará uma intervenção. Ela tem um sofrimento, um desequilíbrio, está doente, precisa de cuidados seguros, firmes, sólidos, que se apóiam numa verdade. Trazê-la ao normal, à norma, à normalidade, (re)aproximá-la do mundo “real”, das “coisas objetivas”.
A clinica
Na área do atendimento às demandas das questões vivenciais, em toda extensão em que isto possa ser imaginado ou vivido pelas pessoas, a maior parte das psicologias e as psiquiatrias são conjuntos de conhecimentos (métodos, teorias) e de tratamentos que se propõem a estar no campo da Ciência. Como atividades desse campo, buscam obedecer aos seus critérios de objetividade, medição e controle. Como conhecimentos, se baseiam em certezas, de natureza filosófica, que estão, portanto, fora de seu âmbito de atuação. E assim, de fora, vem o suporte, o fundamento, o seu contato com a verdade evidente que, além disso, os legitima. A legitimidade de um tratamento científico viria de fora de sua própria experiência, de um outro campo, indefinido, nebuloso. Dito, por dificuldade e facilidade, filosófico.
Mesmo no campo já mais propriamente da clínica existencial pode –se notar essa dificuldade. Para Christian Dunker a “definição do que vem a ser psicoterapia ainda hoje é objeto de confusa classificação… seja pela sua orientação teórica, por seus critérios de habilitação, por seus fins ou por sua eficácia diferencial. Sua afinidade circunstancial com práticas mágico-religiosas, com estratégias científicas ou com visões de mundo particulares combina-se com um amplo dispensário de técnicas (corporais, grupais, farmacológicas, pedagógicas)” (Dunker pg 20). Já para Renato Mezan “psicoterapia é em 1904 um método de trabalho pertencente à Medicina, e que procura curar as doenças ditas “nervosas” através de meios psíquicos e não através de meios físicos…uma doença seria “nervosa” se não tivesse causas físicas… ou distúrbio orgânico” (Mezan pg 312). No início, ainda segundo Mezan, a psicoterapia era “idêntica à psicanálise…(e para Mezan) a única psicoterapia” (Mezan pg 314) . Para Dunker, também, Freud teve um papel “fundador e inaugural” no campo das psicoterapias, tornando-se quase o protótipo do terapeuta nesta área, com “uma recorrente combinação entre experiências de observação e experiências de tratamento psíquico…antes de se tornar psicanalista…era um clínico e um psicoterapeuta” (Dunker pg20).
No ambiente acadêmico, no mundo da Medicina e para o público leigo, há muita dificuldade em se estabelecer com clareza o que é uma “terapia”, uma “psicoterapia”, uma “análise”, um “tratamento psiquiátrico” ou um “acompanhamento terapêutico”.
Esse modo de entender a clínica “do espírito” veio da tradição da medicina do corpo. Nela, o médico ou o clinico seria “sobretudo, um leitor dos signos que formam o campo de uma semiologia e [que] organizam uma diagnóstica de forma a justificar as escolhas de tratamento… o clínico é também um prático e sua figura descende do cirurgião barbeiro, do médico de família ou do profissional liberal, cujo habitat natural é o consultório e antes disso, a casa ou a rua, não o hospital ou a universidade…“(Dunker pg 21). Com muita pertinência, assinalará que “o clínico, no sentido da ciência médica moderna, deve submeter sua prática à primazia do método de tal forma a fazer corresponder…as regras da investigação científica às regras da condução do tratamento” (Dunker pg 21].
O campo da Ciência em que se inserem os cuidados ligados aos sofrimentos e aos modos de existir da pessoa está circunscrito à área da Medicina chamada de Psiquiatria. Como área médica os sofrimentos são tomados como “sintomas”, sinais indicadores de patologias, de desequilíbrios, de doenças, de “transtornos mentais”. Os tratamentos são baseados em quadros nosológicos ou psicopatológicos. Há uma espécie de bíblia, que serve de referência à toda prática psiquiátrica e mesmo a alguma prática psicológica: o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM. Ainda que note que nenhuma definição especifique adequadamente os limites precisos para o conceito de “transtorno mental”, nessa publicação ele é “conceituado como uma síndrome (conjunto de sintomas ligados a uma doença)” (DSM IV pg XX)…que deve ser considerada como uma manifestação de uma disfunção comportamental, psicológica ou biológica no indivíduo” (DSM IV pg XXI)
Tome-se como exemplo os “transtornos obsessivo-compulsivo” “essencialmente” definidos como “obsessões ou compulsões recorrentes”. Lá se diz que “obsessões” são“idéias, pensamentos, impulsos ou imagens persistentes que são vivenciados como intrusivos e inadequados e causam acentuada ansiedade ou sofrimento” (DSM IV pg 398). A pessoa vive aquilo como algo “estranho” a si e sobre o qual não tem controle. Já as “compulsões são comportamentos repetitivos ou atos mentais cujo objetivo é prevenir ou reduzir a ansiedade ou sofrimento… a pessoa sente-se compelida a executar a compulsão para reduzir o sofrimento que acompanha uma obsessão ou para evitar… uma situação temida” (DSM IV pg 399). Caracterizada a manifestação dessa “disfunção”, pelo julgamento clínico, isto é, através da interpretação de um relato de comportamentos e sentimentos, o próximo passo será definir o tratamento adequado. O médico faz a função de um leitor de sinais, referidos a esse protocolo de patologias, previamente determinado.
“A farmacopéia e a terapia comportamental (um dos modos de psicoterapia) são consideradas tratamentos de primeira linha para o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC)”(Cordioli pg 285). Em quadros de intensidade leve ou moderada a terapia comportamental “pode ser utilizada de forma isolada…[quando] apresentam obsessões, com crenças muito fortes sobre seus temores… com ansiedade ou depressão intensas, a farmacopéia poderá ser a única terapia viável (talvez por muito tempo)”(Cordioli pg285). O tratamento começa com inibidores seletivos da recaptação da serotonina ou clomipramina; não funcionando, aumenta-se a dose; não dando resultado, troca-se de medicamento; não funcionando, busca-se potencializar associando com outras drogas; não tendo resultado adequado parte-se para “combinações não usuais, ECT e clomipramina EV; e se não funcionar, parte-se para a neurocirurgia” (Cordioli pg 285 e seguintes). A avaliação do sucesso no tratamento também será feita a partir de relatos, eventualmente, acompanhado de exames de controles químicos. Sucintamente, em apenas uma página de um dos livros mais utilizados por médicos (não só psiquiatras) no Brasil, podemos observar o modo de proceder e o pensamento científico em seu franco exercício pela Medicina. Praticamente a negação da clínica.
Em sua característica mais peculiar, “clinicar é dobrar-se, inclinar-se diante do leito do paciente e interpretar os sinais significativos de seu corpo. Em outras palavras, aplicar sobre esse corpo determinado olhar e derivar desse olhar um conjunto de operações”(Dunker pg 399). Olhar, respeitando sua condição e, interpretar, para “captar a lógica do (de um) desvio” (Dunker pg 400]. Interligada à noção de clínica está a de “tratamento”, que originalmente era entendido como “o trabalho da experiência e do oficio de transformação …e que com a modernidade clínica, adquire a conotação de condicionada pelo emprego de um método” (Dunker pg 402).
Daqui, portanto, a noção atual de tratamento como o exercício articulado da clinica em um caso ou em um grupo de casos. Ele estaria constituído pela classificação dos signos, ou seja, por construção de semelhanças que se repetem em uma classe e, pela ordenação, isto é, por regras que organizam os sinais ou signos percebidos. E nessa própria tarefa de classificar e ordenar se institui uma forma de linguagem, em que se estabelece “uma semiologia”, pela qual os signos, índices, sintomas e traços se organizam. A partir dessa “semiologia” é que o clínico trabalhará buscando estabelecer diferenças, sobre um solo, portanto, de certos padrões estáveis pré-estabelecidos.
A semiologia clínica
“Uma semiologia se torna então o fundamento da clinica médica, estabelecendo uma linguagem particular, circunscrita aos signos que lhe dizem respeito” (Dunker pg 404). Os signos quando estão classificados e ordenados aparecem como sintoma, sendo legitimados por essa descrição e pela consciência do médico. Aquilo que no início era uma queixa genérica, pelos “sinais” passam a ser considerados como “sintoma”, no universo clínico. Como enfatizará Dunker “essa passagem implica sua captura no discurso e, sua sanção na ordem médica”(Dunker pg 405). A legitimidade e a validade, da fala do paciente desaparece. O médico ouve mas não escuta o paciente. Uma atitude neutra, impessoal, pretensamente facilitaria sua referência a uma observação isenta na comparação, na indexação com um padrão de patologias. Em outras palavras, o “signo” só existe quando o sujeito é o medico, pois é ele que estabelece, legitima e certifica a doença como tal.
Na clínica médica os signos só se tornam signos a partir do olhar do clínico sobre o corpo da pessoa. O que a pessoa conta e fala não tem importância, “possui valor secundário e suspeito” (Dunker pg 406). As informações que o paciente traz só adquirem peso quando correspondem a algo que o médico observa na analise do corpo do paciente. O “olhar clínico” é aquele incisivo, direto, neutro, sem interferência. E o notável, sob este aspecto, é que a clínica, em seu exercício está muito longe de encontrar resultados homogêneos, certos, idênticos. Sua natureza é a de uma atividade exercida por um homem na relação direta com outro homem, mais ligada à sua sensibilidade do que à sua capacidade intelectiva, mais uma arte do que uma técnica. O campo em que trabalha leva-o a tomar decisões e a assumir riscos, num campo em que predominam as incertezas.
Essa prática clínica de olhar e significar, são como um exercício de leitura semiológico. O passo seguinte – o diagnóstico – já é uma atividade propriamente, que já pressupõe uma organização já estabelecida da semiologia, um quadro classificado de doenças, nosológico. No diagnóstico a atividade é intelectual, dependente de um modo racional de relação entre os signos, num contínuo trabalho de transposição de situações singulares às genéricas. Como trabalha por hipóteses pode ser corrigida, verificada e reformulada. Sua legitimidade vem dos resultados que obtém.
Dunker lembrará que além da semiologia e do diagnóstico a clínica moderna supõe também uma teoria da causalidade ou uma “concepção etiológica” (Dunker pg 411). Um modo baseado nas idéias de “causa” como “culpa”, responsabilidade ou questionamento ou, de outro tomando causa como antecedente e conseqüente, como efeito ou determinação (Dunker pg 414, 415).
A última operação da clínica clássica é a terapêutica. Ela deve incidir, na medida do possível, sobre as causas e não sobre os efeitos, estabelecendo uma hierarquia das metas: como curar, controlar, mitigar. Além disso, deve estabelecer as estratégias de meios a empregar, definindo tipos de intervenção, ordem de procedimentos e, as táticas pelas quais a ação se dará: as principais técnicas (intervenção cirúrgica, por exemplo) e as auxiliares (fisioterapia).
Não é o que acontece nas clínicas que trabalham com o “espírito”, com a “alma”, com a “mente”, com a “ psique”, como a psiquiatria, a Psicologia, a Psicanálise, a Filosofia Clínica e outras. Não tendo a referência do corpo para dirigir o olhar, passam a depender quase que exclusivamente do uso da linguagem, da escuta. O delírio, por exemplo, é uma realidade composta de “palavras e não por tecidos ou hematomas”. Como escreve Dunker “a totalidade na qual o delírio se inclui não é a totalidade fechada do corpo, mas, o universo aberto das significações”. Alguma “objetividade” pode vir de um vocabulário que inclui “atenção, memória, imaginação, pensamento, vontade, consciência”, para tentar produzir uma “totalidade artificial”. Algo análogo ao corpo orgânico, uma espécie de corpo psíquico, para onde poderia se transportar as mesmas leis de equilíbrio, funcionalidade e homeostase, postulados para o funcionamento dos tecidos” (Dunker pg 326).
A clÍnica psiquiátrica
Na Psiquiatria há uma espécie de transcrição do relato ou da fala de uma pessoa para a linguagem dos sintomas, referidos nos quadros psicopatológicos. Diferente das clínicas que cuidam do corpo, ela não pode construir uma semiologia descrevendo todos os funcionamentos normais e os patológicos, as regularidades e as diferenças. Isto seria um despropósito sem tamanho similar a aquele descrito em 1884 por Machado de Assis em sua magistral novela O Alienista.
Lá, pode-se ler as incríveis, mas plausíveis, experiências vividas pelos habitantes da cidade de Itaguaí quando lá se instalou a “Casa Verde”, um local apropriado para o tratamento e isolamento das pessoas diagnosticadas como doentes pelo personagem dr. Simão Bacamarte. Investido pelos legisladores locais, de uma autoridade sem limites, provinda de um pretenso saber científico indiscutível, ele exercita o poder da clínica psiquiátrica ultrapassando as raias do delírio. Vê-se como paulatinamente a população vai sendo recolhida para aquela instituição, por conseqüência direta de uma atividade diagnóstica, baseada numa semiologia – ela sim um perfeito delírio – que vai, cada vez mais, tornando patológicos os comportamentos humanos mais banais. As “razões científicas” vão se sobrepondo de tal modo aos usos e aos costumes locais, que num certo momento grande parte da população está internada. A trama só se resolve pela genialidade do escritor, que mantendo a lógica científica que comanda o desenrolar dos acontecimentos, faz com que a “evolução” da pesquisa do psiquiatra acabe por levá-lo a “libertar” a todos os internados e a internar a si mesmo. Para o discurso científico a auto-internação foi como um momento sublime, com toda a força legitimadora daquela verdade produzida, a partir da qual a confiança se torna plena. Para o leitor, estarrecido, fica um exemplo acabado da possibilidade de como um delírio investido pela autoridade de um agente da Ciência, nesta área, pode ter o predomínio sobre a vida social, das pessoas. E isto realizado por um escritor brasileiro, mais de meio século antes das pesquisas e trabalhos de Michel Foucault.
A Psiquiatria, como clínica, não conseguiu desenvolver uma terapêutica não medicamentosa. Já passou e continua passando pelas “técnicas” de sonoterapia, contrastes químicos, choques elétricos, contrastes térmicos, hipnoses e tantas outras, que buscam colocar o corpo em certas situações sob controle do médico, com a intenção de “alterar a linguagem que habita esse corpo” (Dunker pg 431]. Nessa linha que se poderia nomear como diretamente intervencionista estão, por exemplo as técnicas lobotômicas em que se desfaz, por cirurgia, ligações nervosas, levando a pessoa, na maior parte dos casos, a estados catatônicos, a situações muitas vezes catastróficas. Mas poderiam estar, também, as técnicas de intervenção química, pelas quais, se procura controlar o comportamento, disposição ou humor de uma pessoa. Isso é feito através de certos mecanismos de controle de variação de alguns elementos no sangue, um quadro de comportamentos classificados e ordenados: as psicopatologias, os quadros nosológicos.
Com os resultados das pesquisas feita pelos laboratórios farmacêuticos com os neurotransmissores, a clínica psiquiátrica passou a ser pouco mais – nos melhores casos – do que uma técnica de prescrição e controle de efeitos de drogas que atuam diretamente no comportamento, humor e disposição da pessoa. E faz isto com pouca reflexão sobre as razões (etiologia) de um determinado comportamento, humor ou disposição. Os pretensos conhecimentos são organizados em manuais práticos, que apenas em suas introduções indicam suas origens. Estas se ligam predominantemente a institutos de pesquisa direta ou indiretamente ligados à industria farmacêutica ou a departamentos universitários ou agencias governamentais, em que os corpos diretivos não escapam à sua grande influencia. E com isto os conhecimentos se tornam algo que aparece pronto, provenientes de fontes complexas, distantes da experiência imediata, em que trabalhariam pretensamente pessoas altamente especializadas, capazes de manipular fórmulas abstratas e saberes inacessíveis, próximos dos mistérios e enigmas vividos desde sempre pelos seres humanos.
Mesmo sem definir com clareza o que seria um comportamento adequado, uma variação de humor aceitável ou um grau de disposição normal, um psiquiatra pode trabalhar com grande desenvoltura através de diagnósticos físicos e poucas observações comportamentais, direta ou indiretamente relatadas. Seu objeto de observação primordial não é o corpo, mas também não é o “espírito”, a psique ou os estados mentais da pessoa. Se já não precisava muito do olhar em seu trabalho, agora se aproxima do requinte de dispensar também a escuta. Trabalha predominantemente com planilhas, modelos, controles numéricos, preocupa-se em controlar quantidades, dosagens. O reino do “deus da mensuração…que entende a doença em termos de desvios com respeito à normalidade…a questão é: como fixar um tal índice?” (Hegenberg pg 28). O homem se torna corpo químico, a ser manipulado e avaliado a partir de variações quantificáveis.
Nos tratamentos psiquiátricos, predominantemente, o homem se transforma em campo de experimento químico. As práticas clínicas tendem a validar o diagnóstico a partir do “tratamento” que está à disposição. Isto, neste ambiente, quer dizer: o médico vai usar o corpo da pessoa para testar a sua hipótese de diagnóstico, decidindo entre as drogas disponíveis aquela que lhe parecer mais adequada. O tempo despendido no processo de avaliação dessa decisão, muitas vezes, não passa de alguns minutos. Ele já sabe, já viu quadros semelhantes. Sem ouvir a pessoa, como não ouviu os anteriores. E a validade do tratamento será dada pelos seus “resultados”, isto é, em nova consulta, com talvez menos tempo de avaliação – é um “retorno” – em que os critérios para o relato da pessoa é a “objetividade”, além da brevidade. E, assim, nesse processo de adequação do diagnóstico à experiência do “tratamento”, se faz a possibilidade da singularização: cria-se a possibilidade de transformar a variedade de psicofármacos disponíveis, em algum modo de adaptação ao corpo, ao organismo desta pessoa, em suas peculiaridades. Isto na melhor hipótese. Em alguns casos é tomado o cuidado de se fazer verificações, “controles” periódicos para aferição das dosagens, para se fazer uma avaliação dos resultados nos comportamentos, humores e disposição da pessoa. Sem ouvi-la. O que se busca nessas consultas de “controle” é verificar se o uso continuado da droga ainda está surtindo o efeito desejado. Aquele corpo, esquecido da sua humanidade, foi relegado a um campo de experimentos químicos, numa tragédia cotidiana, que de tão genérica, não toca mais aos homens e às mulheres que a praticam.
Como exemplifica Dunker “o déficit de atenção com hiperatividade surge como uma síndrome epidêmica na medida em que existe um tratamento que lhe é definido”, como o uso indiscriminado de Ritalina é um exemplo, próximo do criminoso. Ou como nos quadros descritos como de “depressão”, em que os tratamentos são cada vez mais deduzidos dos efeitos do uso dos antidepressivos e combinações com outras drogas. A legitimidade se faz através da incorporação das referências que constam nos manuais – com a primazia unificadora do DSM – e se tornam o “saber” que orienta a prática psiquiátrica e outras (clínica geral, clínica geriátrica, etc). Nestes novos modos de proceder não há porque pesquisar e relacionar motivos de diferenças de comportamento, humor ou disposição, uma vez que o tratamento poderá se dar apenas nessa relação com esse quadro de referencias, com essa precária semiologia. Dunker pergunta-se se neste mesmo quadro de “estabelecimento de uma verdadeira teoria empírica do sujeito” não poderiam ser colocadas as pesquisas da neurociência e de parte da genética.
A fragilidade da semiologia na clínica psiquiátrica e nas clínicas que acompanham seus quadros nosológicos ou psicopatológicos, tem sua origem na desvalorização e diminuição no processo de escuta. Um quadro de sinais, de sintomas depende essencialmente “do relato do sujeito em primeira pessoa. Sem o relato não há como distinguir…uma face de tristeza de uma depressão, a presença ou não de uma alucinação” (Dunker pg 433).
Semiologia é palavra composta por “semio” que significa sinal ou signo e, logos, cujo sentido imediato é o de princípio de inteligibilidade de algo. O que corresponderia num sentido primeiro como a aquele âmbito em que se estuda os sinais, ligado, portanto ao universo da comunicação entre os homens. A palavra foi utilizada e explicitada por Saussure em seu Curso de Linguistca Geral, como “uma ciência que estuda a vida dos signos no seio da vida social…e nos ensina em que consistem os signos, que leis os regem”(Saussure pg 24).
Levada para o universo da Medicina a semiologia pode ser vista como aquela parte que estuda, codifica e descreve os sinais de uma doença. O sinal, aqui, é visto ou entendido como “sintoma”, palavra que na sua origem se define como “co-incidência, acidente ou acontecimento” e que pode ser entendido como um aviso ou indício de mudança, provocada no corpo por uma doença, que poderia ser observado diretamente pelo médico ou ser descrito por quem está sendo atendido. O sintoma quando descrito pela pessoa é tomado pelo médico como uma informação subjetiva, já que tem como base a sua sensibilidade. Nas clínicas que tratam com o espírito, com a mente, com a psique ou com o comportamento do homem não é possível uma confirmação pelo examinador. A anamnese, isto é, o relato das questões e dos sofrimentos feitos pela pessoa, é praticamente com o que o cuidador pode contar. No caso da clínica psiquiátrica há uma dificuldade suplementar uma vez que o profissional é médico, isto é, ele estaria apto a avaliar, além do espírito, o corpo da pessoa, trazendo um poder quase extra-humano nesta relação humana particular.
Na medicina um sintoma se caracteriza por alguma “alteração objetiva” que é percebida pelo médico. No mundo “psi”, no universo das clínicas que tratam de aspectos da existência espiritual da pessoa, uma “alteração objetiva” é algo muito difícil de se caracterizar. Com o “ensurdecimento”, com o processo de redução da capacidade de escuta, dos homens e mulheres que trabalham nesta área o processo de construção e exercício de uma semiologia fica muito dificultado, se torna precário. E isto quer dizer, menos confiável, trazendo maiores riscos à pessoa que procura ajuda, quando se leva em conta que é a semiologia que dá sentido, que dá as bases para um diagnóstico médico. Como é possível um diagnóstico minimamente responsável a partir de uma semiologia que não enxerga – porque não há objeto concreto – e não escuta, porque vem de uma tradição de predomínio do olhar? Mesmo o clínico que ouve a pessoa, muitas vezes, não a escuta.
A escuta e o sentido
E porque há essa diferença entre ouvir e escutar é que o sentido do vivido que é dito no falar da pessoa não é captado. Não se capta, não se colhe, não se recolhe, não se acolhe o que ela diz. Essa recepção não é a do som, ou dos sons e tons articulados pela pessoa emissora, que entraria pelos ouvidos da que ouve, já significados. Ela pressupõe, para ganhar significados, outros processos. O escutar não vem do aparelho auditivo. O ouvido físico não provoca, ele mesmo, a escuta. A percepção dos sons e tons não é um processo biológico, do corpo, ainda que se dê, que aconteça num corpo.
A transição da audição para a escuta se dá no momento em que o ouvinte se coloca num lugar em que passa a pertencer ao mundo do dizente. Pertencer ao mundo do dizente é dispor-se ao mundo deste outro que ao constituir o (seu) mundo depõe e propõe parte de si mesmo através da “fala”. Quando a “fala” fala, isto é, quando a pessoa (a que diz) articula sons, tons e ou gestos para colocar à disposição de quem ouve algo de si mesma, de seu mundo, e este que recebe põe sua própria disposição constitutiva de modo aberto, recolhendo isso (que vem) para si mesmo, cria-se uma espécie de aproximação de uma unidade de disposição, entre a fala e o ouvir, entre o que é falado e o que é ouvido. O que pode ser tomado, a partir do lugar do ouvinte, como propriamente a escuta.
Na escuta, nessa produção do sentido, de significações, de intelecção de mundo, há uma relação com o que Heidegger toma como “logos”: “Logos é o puro deixar dispor-se em conjunto o que, por si mesmo, assim se submete…. o logos é assim o recolhimento originário de uma colheita original a partir de uma postura inaugural”(Heidegger pg 190) .“Logos” é um “puro deixar”, isto é, não é um fazer, não é um exercício propositivo ou intencional sobre o que está posto ou sendo posto, sobre o que se dá. E “deixar” isso que vem, isso que se dá, isso que se põe, se dê e se ponha por si mesmo, isto é, sem a inter-ferência do que não lhe diz respeito, do que não lhe é próprio. E, além disso, que aquilo que vem, venha, se dê, se ponha “em conjunto” ,agrupado, junto e ligado, conectado, com. E neste modo “se submeta”, fique colocado, metido, posicionado para o “recolhimento originário de uma colheita original”. Para – as expressões serão muito imprecisas – uma “seleção nunca feita desta maneira”, sobre um “material também nunca exposto assim”.
Tudo o que está contido em uma fala será, do ponto de escuta do ouvinte, novo, original, nunca antes exposto à sua intelecção assim, deste modo. E será por isso que essa apreensão só pode se dar a partir de uma “postura original”, de uma posição própria, cuja origem está nela mesma, autêntica, inédita, ainda não vivida.
Essa “postura original” na “apreensão” é uma atitude de relação com o que faz parte do humano. Na escuta não é só “apreensão” do que vem pela fala que se dá, mas há um tramar com o que estiver dis-posto da memória do vivido, do já escutado, para uma outra combinação, outra mistura, outro sentido. E nessa produção de sentido, neste sentido produzido se dá aquela outra conotação da palavra “sentido” que é a de direção como quando se diz que a direção ou o sentido a seguir é tal ou qual; e ainda a conotação de destino, que responde a um “para onde” ou “para que”.
Em clínica esse produzir sentido, escutar, está relacionado com uma outra variável que é ética. Para escutar o outro – paciente ou partilhante – o clinico deve estar atento para as origens daquilo que colhe, que recolhe, que acolhe. Ele precisa limitar os efeitos do que vem de si, de sua experiência pessoal, para constituir o mundo do outro para si. Esta relação com o outro deve estar sempre determinada pelo cuidado, pela inclinação atenta sobre o mundo do outro. Como pessoa que também é, o clínico está submetido às mesmas condições no processo de transformação dos sons em sentido, mas, como a sua tarefa é se aproximar do sentido que “está lá”, do que o outro procura lhe transmitir, ele tem a tarefa extra de fazer descansar, de desinvestir, suas próprias – dele clínico – significações, suas memórias. Numa disposição que se aproximaria de um desfazer-se de si, pela qual abre espaço para a aparição das manifestações e da vigência do outro, para si.
O clinico renuncia temporariamente à qualquer iniciativa sua como pessoa. Passa a uma atitude de atenção flutuante sobre o que ouve. Sua mente se inclina para a fala do outro, porém, procurando não dar peso diferente a nada em especial, numa espécie de atenção dispersa, sem direção, desconfiada de si mesma. Escolher uma idéia, uma vivencia, pode implicar deixar uma outra oculta. O critério do que “mostrar” deve ser daquele que está em clinica, pois, se a escolha fosse do clínico seria uma imposição de valor de preferência sobre o que é vivido pelo outro. Se o clinico estiver prisioneiro de suas posições pessoais, de um ponto de vista, de uma perspectiva, sua disposição para o outro estará comprometida, poderá ouvi-lo, mas não o escutará.
Este constituir do outro para si é condição para o trabalho clínico, neste âmbito. Aqui não há corpo, o “objeto” – o outro – para o clínico está em si mesmo. Sempre em constituição, sempre fugidio. O outro, como essa trama de sentidos, de significações, é essa referência que não se completa (para si, clínico). E, lidar com isso, com essa incompletude é estar propriamente na dimensão ética, sabedor de sua condição constitutiva como “um ser em dívida” ou “indigente”. Dimensão que simultaneamente o liberta como ser que é “à disposição”. Disposição clínica que é para o outro. Esse outro que se institui e se constitui em sua incompletude (se fosse completo não haveria o outro), existindo um outro para si e especialmente um outro para o outro. Esse outro que ele é para o outro.
Escutar é produzir os sentidos do outro para si. Numa linguagem, inapropriada: o “objeto” para o clínico é o outro para si. Os modos de cuidá-lo definem um campo próprio e pressupõe um método, um caminho.
O campo da clínica existencial
A clínica que trata do homem em seu existir singular se faz pela escuta e está num campo próprio. Não é o campo da medicina, não está no âmbito da ciência e nem no da filosofia. O campo da clínica existencial é um campo semântico. O seu exercício prático e teórico não se faz pelo “olhar”mas pela escuta. A escuta, diferente do olhar, não é um exercício semiológico pelo qual o clínico estabelece sentido aos sinais relacionando-os a quadros gerais. Não coloca sua atenção nos sinais de ruptura de regularidades ou normalidades, referidas a quadros nosológicos ou patológicos, por definição, pré-determinados. A escuta não refere os sinais recebidos a quadros gerais, mas é ela mesma produtora de sentido. Semântica.
A escuta ao produzir sentido define um campo que é semântico. Campo semântico porque lugar caracterizado como o da arte de criar sentidos, sugerir significados. As significações, aqui, não estão consolidadas. É um reino próprio, autônomo, de formação do sentido.
A clínica existencial não tendo um corpo físico para ser cuidado, tem perante si a tarefa de cuidar de algo que é difícil até de nomear adequadamente. Cuida-se do homem nas relações de seu existir espiritual, psíquico, mental. E para isso não há, nunca houve e não haverá um padrão estável, universal. Estará sempre referido aos contextos, às circunstancias, a cada modo próprio de viver. Nessa singularidade os sentidos estarão sempre se fazendo a cada instante. Não se consolidam num saber que tenha a possibilidade de permanecer ou se universalizar. E nem por isso deixa de ser saber. Até pelo contrário: é a condição de saber do singular. Nesse campo não se vai em busca do conhecimento universal. É o campo para o singular. É o campo do sentido, portanto, ligado à capacidade da escuta, da apreensão daquilo que vem do outro.
Na lingüística a semântica trata da relação das palavras com os objetos designados por elas. Na clínica se pretende relacionar o relato, a fala, a expressão, com aquilo que a pessoa traz, com aquilo que vige nela. A pessoa procura ajuda, tem um assunto, que pode ser uma queixa uma dor, um sofrimento, expectativas, esperanças, desesperanças, medos, angustia, ansiedade, tédio. Nesse assunto ela manifesta o que vive. Traz seu mundo. Muitas vezes mal sabendo o que vive, mal sabendo dele. O campo semântico da clínica é o da compreensão não o da explicação. Inconcluso, por definição.
Não é semiologia também por isso: não há “logia” possível, não há universalidade que essa tradição pressupõe. Não é ciência como lugar da certeza, não é filosofia como produção ou relação com o absoluto, ou voltado ao universal. É Ciência como agrupamento de saberes e conhecimentos desse campo que vão se dando por aproximação, é filosofia como saber contextualizado, voltado, inclinado ao singular.
A clínica não é lugar do “fato” nem da “razão”. Neste campo o trabalho é o de lidar com a formação de sentidos. Sentidos que não precisam se consolidar em significações estáveis, como “egos” ou “eus”. Qualquer estabilidade será provisória, precária. Mais do que admitir, lida-se com a impermanência, com o transitório. Loparic notará que mesmo “Freud deixaria claro q sua suposição de caminhos psíquicos fixos é apenas uma metáfora espacial…uma construção auxiliar, um ponto de vista meramente especulativo…” (Loparic pg 8)
O campo semântico da clínica toma a linguagem como um dizer que diz e que pode provocar o trabalho da escuta. Um lugar que é de produção de sentido. Sentido humano, que é fugidio. Ainda que vigente, “real”. Neste campo cria-se a possibilidade de contato com o que está em vigência no mundo do outro. Este mundo que ele produz incessantemente. Ainda que seja inaugurando a cada momento a ilusão da repetição. A re-petição, a ação de pedir que permaneça o “re”, que “volte” o já vivido. Os sentidos estão dados e estão para serem dados, de-postos e pro-postos. Estão estabelecidos e em estabelecimento, re-feitos, se re-fazem. Esse é o campo em que se trabalha. Aqui é onde a clínica se dá, onde ela se faz. O sentido daquilo que é vivido por uma pessoa só pode ser assimilado por uma outra pessoa no exercício do escutar, nessa disposição para a escuta do que vem do outro. Clinicar é esta prática de se dispor ao outro. O sentido não está num outro lugar, não se produz num outro lugar, está sempre em trânsito, exige o estar disposto a isto.
Sentido, escuta, disposição: não há um sem outro. O que caracteriza a disposição é voltar a estar disponível.
Um caminho clínico eticamente adequado deve possibilitar a apreensão dos sentidos que vêem do outro, mantendo simultaneamente esse caráter mutante, numa espécie de permanência temporária do que é essencialmente impermanente. Deve possibilitar a fixação, ainda que artificial de sentidos e manter abertos os canais de seus refazimentos. Cada experiencia clínica enfrenta este desafio à sua maneira. A circunscrição de um campo próprio, de um campo de natureza semântica traz a possibilidade de se tomar a clínica na plenitude de seu fundamento e de sua legitimidade. Um campo, que não é ciência nem filosofia. Próprio:pensamento clínico
Bibliografia
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e colaboradores
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Hegenberg, Leônidas – Doença – Um Estudo Filosófico, 1ª edição, 2002, Ed Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
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Loparic, Zeljko – Thomas Lipps Uma Fonte Eesquecida do Paradigma Freudiano – internet
Mezan, Renato – Tempo de Muda, in….São Paulo, SP, Brasil
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