Quem? O sentido da Autogenia

Autogenia. Uma aproximação da questão: “quem é esta pessoa”

Autogenia  não é uma palavra corrente, na filosofia, na clínica e, pouco usada nas ciências,  daí ser prudente defini-la  para os propósitos deste texto.

A palavra grega “auto” traz o sentido daquilo que é próprio e, “genos”- também do grego – o de origem ou nascimento. De maneira simples, autogenia pode ser entendida como a qualidade daquilo originado por si mesmo, independente de força ou recurso externo a si.

E como essa palavra autogenia participa no mundo  da filosofia clínica?

Autogenia pode ser considerado como um retrato existencial desta pessoa à frente do clínico. Como ela se constituiu, se tornou o que é.  Ela se vincula a uma idéia de totalidade da pessoa, próxima de certa forma da noção de personalidade ou de caráter usado pelas psicologias e por algumas psicanálises. Na filosofia clínica ela deve ser resultado de um minucioso processo de construção, sempre vivo e reconstruído. Autogenia se aproxima de uma questão muito esquecida e fundamental da clínica: quem é essa pessoa que está aí? Questão filosófica vivida na clínica.  

Heidegger ao tomar como tema o quem, escreveu: “é cada vez um eu e não algo distinto” (Ser eTempo pg 333). “Cada vez um eu”, portanto, um “eu”, um alguém que muda a cada vez que é observado e simultaneamente “não algo distinto”, isto é, um algo ou alguém que não é diferente de si, que é o mesmo. Nessa tensão entre mudança (Heráclito) e permanência (Parmênides) estaria o lugar para alguma consideração da questão quem é essa pessoa, esse ser-aí, à frente .

Quem? “Cada vez um eu e não algo distinto”.

Mas o que é“eu”? É uma palavra que se refere a quem fala, designa a pessoa que enuncia. Mas não a descreve, não dá qualquer predicado dela.  Na gramática da língua, “eu” é um pronome, por definição, algo que vai em direção a um nome, mas não nomeia uma coisa. Pronome pessoal “eu” só indica a pessoa que fala, portanto, é (só?) um fenômeno de linguagem. “Eu” se funda, se re-inaugura em cada fala. Em cada uma, na sua, na minha, na dele. “Eu” existe através da fala da pessoa que a profere. E, algo – o “eu”- fala por intermédio da pessoa. Esse “algo-eu” que fala é alguémAlguém fala: um “eu”. Quem?

 No âmbito existencial o “eu”, na vivência de uma pessoa, é sempre presente para si.   E também um observador eterno de si, afinal  sou sempre eu que vejo, penso, percebo, sinto   “a mim”, “a mim mesmo”. Então há algo na base do “eu”. O “eu”, entretanto, não é uma coisa no mundo, um ente. E ao mesmo tempo há um fenômeno “eu” que existe para mim enquanto eu sou consciente de mim. Então “eu” serve para eu me referir a mim. O que é  alguém e não se refere a mim não é “eu”, é “outro”. Eu” é a palavra que  indica aquele q designa a si na fala.

Quando alguém usa “eu” já traz também pressuposto alguém diante de si, um tu ou um você.  E pressupõe também um “eu” desse interlocutor. Eu compreendo quando uma outra pessoa fala “eu”, eu sei  que ela se refere ao “eu” dela, o “eu” do “outro” que é ela, para mim. Isso, essa compreensão, é condição para a clínica. Ela e eu, cada um a partir de si, sabe que há um “eu” meu e um ”eu” dela. Curioso: sabe-se, mas é um saber de natureza frágil, meio por aproximação. Não há um saber certo, firme, fundado, nisto que é tão comum, corriqueiro, vivido por qualquer um. Um saber-sabido-desconhecido.

Quem? Essa pessoa que fala cria um mundo a partir de si. Cada “eu” pode ser definido razoavelmente  como um centro de experiências de mundos vividos por uma pessoa e, um centro de perspectivas de mundos seus a viver. O clínico – este “eu” que escuta – deixa este mundo do outro “eu” se estabelecer próximo a si. Talvez o lugar propriamente em que esse mundo do outro “eu” se estabelece é na interseção  entre estes dois “eus”. A clínica se dá entre.

A pessoa não é um conteúdo do mundo que cria, ela é a referência, a base, o ponto de apoio. Mesmo frágil.  Esse “eu” fala algo, aqui e agora para um outro “eu” aqui e agora, que escuta, cada qual numa posição insubstituível. A pessoa que traz o seu mundo é um limite desse seu mundo, não está dentro nem fora desse mundo. Não está dentro porque está aqui “fora” falando e não está fora porque fala de “dentro” de si, a partir de seu “eu”. Como um “eu – criador” está no limiar, entre o dentro e o fora [como notou  Wittgenstein]. No mundo existencial, não há  sujeito, nem objeto. Não há objetivação possível do sujeito.

Quem?  A pessoa não é somente esse “eu” que fala: ela se compõe de uma corporeidade. Ela também é um corpo. Ela existe também num âmbito material. E cada pessoa tem um corpo diferente da outra.  Se ela e só ela pode se identificar com o corpo que ela habita, então este corpo é seu, só seu: este corpo é o lugar do seu “eu”. Compõe o “eu”. E, alem disso, o meu corpo, desse outro que sou para ela, pode ser entendido por ela como “eu”.  Em outras palavras, do ponto de vista espacial, o corpo como critério de identidade do “eu” parece dar uma resposta mais firme. Ao menos para um universo cultural tomado predominantemente  por critérios materiais A pessoa parece poder ser identificada pelo seu corpo. E assim se faz socialmente. A sua identidade é atestada pelo reconhecimento do desenho de seus dedos. A convicção inquestionável da singularidade dos traços corporais está aqui pressuposta.

O corpo ainda responde a um outro critério importante de identidade da pessoa que é a possibilidade de ser reconhecível pelos outros. Este corpo que contém um “eu” pode ser percebido em dois momentos diferentes  e ser considerado ainda como a mesma pessoa. Há uma permanência, ainda que provisória da fisionomia da pessoa, por exemplo. A pessoa passa a ser reconhecida por aquele rosto ou por aquele corpo que trans-porta esse “eu”. O curioso é q muitas vezes, encontra-se  alguém que se reconhece não por seus traços físicos, mas pelo seu jeitão, por uma expressão, por um sorriso, pela voz, pelo seus modos de se movimentar, um modo de olhar. Pela voz.  Mas de qualquer forma o corpo como critério de identidade parece funcionar razoavelmente, para as necessidades das relações sociais.  Mas…

Quem é essa pessoa? “Cada vez um eu, não algo distinto”.

 O mesmo algo, aquilo que não é diferente, que parece repetir um conhecimento que já se teve. Nesse lugar incomum, difícil de perceber, que é a cada vez de um modo e que permanece com alguma propriedade comum, parecida. Daqui não se pode falar que é o mesmo – já que de cada vez é um “eu” – e que ao mesmo tempo mantém alguma coisa que lhe é própria, e pela qual pode ser reconhecida,  o corpo.

Quando eu me refiro ao “meu” corpo eu tenho uma referência de um mundo em que há outros corpos.  Foi na minha relação com outro corpo q eu pude constituir a idéia de um corpo meu. Este movimento de me constituir como um corpo diferente, me possibilita e me exige ver a mim quase como um terceiro, isto é, de “eu” através da percepção de um “outro”. Mas como sou “eu” que indico a mim mesmo esse “eu”, há um movimento reflexivo, quer dizer, há um desvio da minha direção inicial – indo em direção ao outro – que me faz voltar para trás, me faz recair em mim [esse “mim” é um pronome obliquo reflexivo da 1ª pessoa do singular- refere-se a “eu”, mas não é “eu”]. Há quase um olhar em terceira pessoa para o meu “eu”, mas um olhar que também não se realiza plenamente, ou pelo menos que me dá pouca possibilidade de alteridade (externalidade?) desse “eu”, que me permitisse perceber esse “eu” como a um estranho.   Mas isso não se realiza porque o “eu” permanece em meu corpo e me percebo como uma única pessoa. E sou eu que digo “eu”.

A reflexão do parágrafo anterior está no campo do pensamento clínico, tem sua referência  no âmbito existencial e não epistemológico.

Quem? A noção de pessoa se constitui a partir dos predicados que se atribui a ela.  Na cultura ocidental contemporânea os predicados mais aceitos são os de que uma pessoa é composta de um aspecto físico e outro espiritual ou psíquico. Quando se está frente ao corpo de alguém morto, por exemplo,  há algo da pessoa presente e algo ausente. A pessoa não está mais ali, só seu corpo. O corpo, uma coisa no mundo, mas ainda como memória do ausente.  A pessoa na sua inteireza material-psíquica tem como sua natureza, portanto, o  estar presente, ser presença. Mas isso não a predica, não fala nada dela.

Quando se busca a identidade da pessoa –  ela como idêntica a ela mesma – surge de novo a dificuldade. Cada pessoa é um “eu” distinto num corpo distinto. O que distingue um corpo de outro é sua aparência física, seu volume, suas formas que se conhecem a partir da percepção. Mas como distinguir as características psíquicas de uma pessoa?

Na clínica a pessoa se encontra numa situação em que fala e escuta  e é ouvida por outra pessoa que também fala. Nessa circunstância ela usa a língua e vários recursos de linguagem para expor para alguém, de algum modo presente, as suas experiências. Uma situação de interlocução que tem valor de instituição de acontecimento. Está em cena, através de um discurso, corpo e psique frente a corpo e psique, alma, carne e osso, ainda que mediada por aparelhos (plataforma, internet, celular) trazendo a sua experiência do mundo, sua perspectiva, q não pode ser substituída.

Quando eu digo “eu estou feliz” não é a mesma coisa do que se eu dissesse “a pessoa q está falando está contente”. Há um ponto de referência diferente: quando eu digo “eu” estou dando o ponto de referência, tem um certo peso existencial,  no outro caso eu sou descrito como uma 3ª pessoa, quase não é uma pessoa.  Quem é essa pessoa? Como predicá-la? Como estabelecer suas propriedades, o que lhe é próprio?

Mas isso ainda está muito vago. O que é isso – o “eu” – que eu sei q existe porque vivo em mim e percebo viver no outro?  Eu sei que o que vivo em mim é diferente do que ele vive nele. Então há algo de próprio neste “eu” meu e no “eu” dele, do outro. Há uma diferença entre ele e eu.  Há um próprio a mim e um próprio a ele. Como se produz isso que é próprio a cada um? Como se deram essas Autogenias?

O recurso chamado EP

A Filosofia Clinica busca enfrentar esse desafio através de um artifício próprio, de um elemento simbólico, chamado de “estrutura de pensamento” – “EP”. Ela tem uma natureza operatória. A grosso modo ela pode ser vista como um modelo, um “artifício de montagem”, que facilita formar um quadro para o clínico dos modos constitutivos dessa pessoa, de forma explicitamente aproximada, com alguma estabilidade. O sentido é de um quem  utilitário e não tem nada a ver com um quem ontológico (que estabeleceria o ser dessa pessoa) .

Ao criar uma certa permanência artificial, a EP possibilita ao clínico um certo afastamento da experiencia imediata da escuta vivida na interseção com o partilhante. Dá-lhe a oportunidade de pensar, comparar momentos distintos, observar seus movimentos, fazer relações, formar hipóteses para procedimentos, planejar ações clínicas. Mesmo quando não está na presença física do “outro”, do partilhante, pode ainda pensar e refletir, respeitando seu próprio ritmo de pensamento, numa espécie de “re-escuta”, observando aspectos que talvez lhe escapariam sem isso. Além disso, permite-lhe, também, criar a possibilidade de um certo afastamento dos efeitos das suas próprias idiossincrasias, elaborar os seus preconceitos – específicos  desta relação ou não.  

Nessa estabilidade artificial impregnada na EP está uma série de apropriações de sentido produzidas através da escuta realizada pelo clínico das falas faladas do partilhante. Ela é um modo que possibilita um afastamento da memória  do vivido, numa tentativa de mantê-la  “presente” em seus sentidos. Isso não é pouco quando se trata de se aproximar do que é próprio a essa outra pessoa.

Quem? Talvez não seja conveniente pensar a EP como uma “representação da pessoa”. Representação  tem sentidos bastante vinculados a certas tradições filosóficas, não sendo recomendado, aqui, utilizá-la para evitar más interpretações. Será melhor caracterizar a EP de modo menos preciso, mais aberto e próximo de seu próprio sentido, como sendo “o jeito da pessoa”, ou “o modo como a pessoa está existencialmente no ambiente” .

O conhecimento de uma EP será sempre “trabalho realizado”, síntese organizada de observações feitas pelo clinico, a partir de sua relação com essa pessoa que vem partilhar as suas vivências. Como assinala Lúcio Packter,  ela só poderá ser determinada “após o exercício existencial da pessoa” [packter; caderno B pg 8] e deve ser tomada “como um preconceito e não como um a priori”. Não é um saber que venha constituído por uma razão transcendental ou metafísica. É um registro, em línguagem própria, do processo autogênico da pessoa. O quem em outra língua.

Um resumo do processo metodológico de formação da EP mostraria que o partilhante narra sua história, atualiza suas vivencias, enquanto o clínico busca, pela escuta, apreende-las, fazendo  uma coleta do que ouve a partir de categorias,  aprimorando essa colheita propondo “divisões” temporais na história narrada e buscando especificar, discriminar o que  lhe permanece obscuro, fazendo processos de “enraizamento”. Com esse material atualiza, “monta”, constrói, “preenche”,”encarna” a EP dessa pessoa. Das múltiplas vivencias narradas, de tudo o que ouve, busca recolher seus sentidos e traduz, canaliza, traz para dutos pertinentes, para colocá-lo em modos que facilitem a absorção  pela EP.

A EP só estará constituída quando já estiver estabelecida como uma totalidade. E, como qualquer totalidade, a EP é composta de elementos – os “tópicos” – que se relacionam e se articulam mutuamente. Cada EP será um arranjo singular de pesos e importâncias desses tópicos inter-relacionados e de suas possibilidades. Mas só será EP quando for uma totalidade constituída, ainda que transitória.

Sempre tomada como totalidade, uma EP tem momentos estruturais que podem ser muito diferentes entre si. São relações ou arranjos tópicos (autogenias) diferentes que, às vezes, podem até dar a impressão de se tratar de outra estrutura. Mas é isso que caracteriza essa própria EP: essas diferenças são apenas a expressão da variedade de seus modos próprios de existir, e que, precisamente,  a definem e a distinguem.

A um tempo a EP poderá ser tomada como uma totalidade unitária, como conjunto e,  de outro como uma série de totalidades momentâneas, circunstanciadas. Em outros termos, a EP pode ser tomada sincronicamente: o tópico Autogenia, procura dar conta disto. E pode ser vista diacronicamente e, então será a vez da Autogenia como submodo. Como tópico há uma espécie de “congelamento do tempo” enquanto como submodo é “posta no tempo”. Portanto, na dependência da perspectiva ou do momento de quem observa, a EP pode ser tomada como uma unidade a ser investigada em suas relações constitutivas  ou também como uma unidade a ser investigada em seus movimentos e suas relações com o mundo, com os outros.

 A EP é este modo muito próprio de exercício que contribui para a possibilidade de responder  temporariamente, quem é esta pessoa. Autogenia, são dois modos de descrever como se produz esse quem.  E através do tópico Matemática Simbólica possibilitar modos de mudanças dessa pessoa. Esse quem se tornar um quem adequado a si. Por seus critérios.

Há todo um modo próprio de  prática clínica  a partir da Autogenia. Aqui é pressuposto sempre não perder o sentido da própria idéia de Autogenia desenvolvida acima, e as reflexões sobre o “eu” e ainda a natureza da EP. Isso não foi feito por acaso. Em outras palavras, manter presente a idéia de que o que se está fazendo é co-laborar com o modo singular desta pessoa se mover, gerar a si própria, tornar-se o que está sendo, o que quer vir-a-ser. Esse movimento envolvendo seu ter-sido, seu vir-a-ser, sua presença.

A matemática simbólica

A EP  não é uma forma que o clínico possa  perceber por seus recursos perceptivos ou sensoriais,  e também não tem uma essência que seja possível  apreender por meio do entendimento. A sua natureza seria mais próxima do campo dos símbolos. Eis porque Matemática Sinbólica. Na descrição disponível,   “o conjunto simbólico que tem por função ir desfazendo a linguagem verbal…e [que] gradativamente associa e substitui o atendimento verbal por outro que utiliza equações e conceitos” [pg 9 do Caderno de Mat Simbólica].

Pelas dificuldades do autor, talvez isto fique melhor expresso dizendo que a Matemática Simbólica é um outro modo de exercer a Filosofia Clínica, tomando por base a Autogenia já realizada de uma EP, reduzindo a ênfase da linguagem verbal, aumentando a importancia de outros recursos simbólicos. Vale dizer, tomar a pessoa como um todo e, a partir desta perspectiva, acompanhar suas relações existenciais com os outros, com as coisas, com as suas circunstancias.  

 Este modo de clinicar permite pensar a EP de alguém como um modo mais qualificado de “eu” – porque ela é passível de predicações existenciais. Não se predica a pessoa, mas esta espécie de símbolo dela, com elementos (predicados) existenciais.  Observar a EP de alguém é acompanhar um modo  que tem uma boa dose de  verossimilhança com as suas – da pessoa –  próprias vivências  existenciais, sem contudo confundi-las – a pessoa e sua EP.   A EP tem seu movimento, é informada e constituída pelo que a pessoa  experimenta, mas não é ela, não se funde com ela. É apenas  um artifício, um símbolo generalizante dela.  Esta abordagem é um modo clínico possível na Filosofia Clínica, que nasce e se realiza precisamente a partir das possibilidades abertas pelas características do tópico Matemática Simbólica. E será avaliada, caso a caso, pelo clínico, a oportunidade de seu uso. Ela  pode ser uma via para trazer bons resultados, frente aos Assuntos trazidos pelo partilhante.

Esse alguém que vem à clínica tem a sua constituição, sua composição existencial própria, que faz ele ser  como  ele é. A composição dos tópicos na sua EP, como eles se interligam entre si, e quais são e quais não são importantes define sua Autogenia [como tópico]: aquilo é próprio a si e a origem dessa sua propriedade.  A EP busca trazer o que é o mais próprio dessa pessoa,  em uma dimensão diferente, virtual, em que se pode compreender as origens dessa composição existencial que é só sua, diferenciando ou aproximando de outros momentos estruturais de sua vida.  A EP dessa pessoa anos atrás pode ter tido uma configuração quase irreconhecível, frente ao que apresenta hoje. ´

Num exercício de imaginação seria possível notar como as circunstâncias vividas nesse período alteraram sua EP, sua Autogenia, compuseram suas muitas configurações autogênicas. Alguns tópicos perderam a importância relativa que tinham e deram espaço para a proeminência  de outros, de novas relações, variações, surgindo arranjos, inter-relações muito diferentes. Mas suas configurações sempre são próprias, sempre são suas, como modos de se relacionar com os assuntos que tratou e cuidou nesse período, o jeito que se relacionou  com o tempo, os lugares existenciais em que habitou, as coisas, as pessoas com que conviveu. E sempre foi ela quem gerou isso que ela foi sendo. Suas diversas autogenias, nestes anos. Com algum grau de independência de sua vontade, de sua consciência, de suas intenções. 

A pessoa deixa de ser propriamente ela mesma quando age de modo diverso daquilo que parece lhe ser próprio? Mas este modo que parece impróprio, inautêntico, não é propriamente aquilo mesmo que lhe é próprio? Há estado de inautenticidade, do ponto de vista estritamente existencial? Este é um aspecto que pede muita discussão. Não é, entretanto, o tema deste texto. Fica a provocação.

Um certo modo de exercício

Um exercício imaginário que se poderia fazer seria observar como a  EP de alguém  se relacionou com os infindáveis contextos em que a pessoa  esteve envolvida. Como foi que se comportou, se movimentou? Talvez tenha havido momentos de intenso constrangimento, em que a sua sobrevivência física ou de algum de seus próximos foi quase que a sua única preocupação. E outras em que numas férias naquela praia, caminhando plena de um vazio aconchegante  reencontra inesperadamente aquela que foi e virá novamente a ser sua grande companheira de trocas existenciais.

Nessas 2 circunstancias tão contrastantes como foi sua relação com sua consciência, com seus impulsos? Deixou sua EP, por si só procurar seu caminho ou havia intenção, vontade nisso? Confiou em seus recursos desconhecidos, não racionais, inconscientes?   E o clínico que a acompanhava, com o que podia contar?

A Autogenia oferece  um modo característico e diferente de  prática clínica. Para não perder  o seu sentido é importante o leitor ter em mente  as reflexões sobre o “eu”e , a natureza da EP, desenvolvidas anteriormente. Isso não foi feito por acaso. Em outras palavras, fique sempre conectado com a idéia que o que se está fazendo é tentar descrever um modo clínico que não deixa de lado a questão: quem é essa pessoa, autogenicamente. Como o clínico pode co-laborar com o modo próprio dessa pessoa se mover, fazer a si, tornar-se.

Este é um campo com poucas referências. Sem certezas. Com o que se pode contar talvez seja esse movimento que envolve seu ter-sido, seu vir-a-ser, sua presença. E será por isso que a atenção para os contextos vividos pela pessoa são tão importantes.  Perceber qual é o momento vivido, quais suas bases categoriais, quais são seus vizinhos, que papel exercem em sua vida. Hstoricidade, bases categoriais.

Esta pessoa talvez tenha se dado bem em algumas circunstancias  “ao se jogar” ao que lhe fazia sentido, mesmo com ampla resistência das pessoas com as quais convivia. Havia só umas poucas que apoiavam seu movimento.  Foi muito expressiva sua experiência de se lançar ao desconhecido, sua vida se modificou, passou a viver uma ampliação de horizontes com que nunca sonhara.

Para o clínico essa pode ser a tarefa. Pesquisar como ela fez em outros momentos de sua vida e quais elementos foi possível perceber no processo de historicidade que trouxe esses elementos. Às vezes  é  possível retomar algum momento, conversar um pouco, rememorar, desdobrar aspectos ainda pouco claros, trazer recursos para fortalecer seus vínculos com novos vizinhos, buscar composições com elementos que estejam no horizonte de possíveis. Reparar como foi para ela as experiências passadas, perceber se ela coloca mais atenção nos ganhos  possíveis ou nas possibilidades de fracasso.  Ao olhar para trás a pessoa vê os bons momentos ou o que não quer mais viver. Reparar o que lhe importa nessa experiência, o que lhe impulsiona, qual o peso de seu desejo, de sua intenção. Talvez aqui ela não esteja mais “solta”. Sua EP já não estará condicionada. Ao  ter uma intenção, já não tem uma espécie de pré-controle do futuro?

Ao imaginar  ir em direção a um ganho autogênico,  não é incomum  a pessoa já sentir falta de  pessoas, coisas, hábitos,  por antecipação.  E aqui, também, quando ela começa a pesar perdas e ganhos, já volta a uma predominância de referências estabilizadas, fazendo uma espécie de contabilidade existencial. Muito razoável, no mundo estabelecido, porém, talvez contraproducente no universo das Autogenias com movimento verticais. Esse é um  movimento característico de autogenia horizontal.

A  pessoa em movimento vertical ao conseguir atingir certos estágios  autogênicos [na Filosofia Clínica esses “estágios” são chamados de “patamares”, para evitar a idéia de sequencia]  e  passar a viver num ambiente bem diferente daquele que vivia,  pode  ser que  sofra pela falta da vizinhança com a qual tinha grande familiaridade. O surgimento de novos vizinhos, novos hábitos, novos lugares com que ainda não tem familiaridade pode ser temporariamente difícil.  Nesses movimentos alguns elementos de sua base original podem se refazer no novo ambiente, mas isso nem sempre é assim.  Pode se formar  uma nova turma, uma nova família, mas, pode ser que isso não aconteça  e a pessoa continue fixada no momento  existencial anterior.

Para poder lidar com isso o clínico ao acompanhar os movimentos da pessoa deverá estar especialmente atento à importância que vinha sendo dada às suas novas vizinhanças. Este é um modo em que é possível estar próximo das novas circunstancias vividas e poder perceber como as coisas estão andando, com quem ela está se relacionando, de que modo e assim por diante. Algumas vezes a pessoa ao mudar de patamar autogênico, mantém relações com seu ambiente anterior, porém, não é raro que a maneira como essa relação passa a se dar, se modifica. Se antes havia uma identificação de papéis existenciais, por exemplo, é possível que isto desapareça, mas que a relação de amizade, por conta de outros atributos da relação – como a memória de emoções vividas – se refaça. 

Certamente haverá muita incompreensão de parte a parte quando buscar argumentar ou decidir algo já a partir de seus novos modos de ver, e se defrontar com aquele ambiente, que continua a operar nos moldes anteriores. Querer permanecer obedecendo aos mesmos critérios e obter aquilo que só está disponível em outro ambiente que tem suas próprias regras é algo com pouca probabilidade de bons resultados. Não dá para mudar permanecendo onde se está, existencialmente.  Os livros de auto-ajuda, algumas linhas de terapia de base comportamental vendem essa ilusão:  seria possível mudar seu comportamento sem todo um movimento existencial complexo, que implica perdas, riscos etc. E é por isso que as mudanças provindas desses recursos são só temporárias. Quando chegam  as exigências dos novos lugares existenciais, não há força, critérios desenvolvidos, convicções amadurecidas, sentidos experimentados e conectados com os processos autogenicos .Não se alterou o modo de produzir a si próprio. 

Na Filosofia Clínica a aproximação feita pelo clínico aos mundos da pessoa é feito via EP, espécie de consolidação simbólica dos principais traços provindos da sua historicidade. E por ela que é possível acompanhar seus principais movimentos existenciais, seja de crescimento, de queda, de estagnação.  Ao trocar os vizinhos pode ser que esteja mudando seu patamar autogênico. Às vezes não é isso, mas é apenas  um movimento  pontual, de mudar certas contingências, certos hábitos, certas relações. Na clínica o caminhar do terapeuta deve ser sereno e atento.

A movimentação autogênica pode ser instável. A pessoa pode estar se sentindo bem, e no momento seguinte está no maior baixo astral, pode estar animadíssima ou entediada, deprimida ou motivada. O critério clínico será sempre a base categorial da pessoa, suas tonalidades afetivas predominantes e não  seus estados emocionais atuais. A avaliação deve ser pela escuta das circunstancias recentes vividas, vinculadas com sua EP, e não seus “estados”.

Nos pocessos clínicos exercidos via Matemática Simbólica, no ambiente autogênico da pessoa, a atenção do clinico deve estar também nos critérios usados pela pessoa. Não é raro a pessoa  chegar  numa determinada consulta, durante o processo,  com referencias, valores e opiniões muito diferentes de seu hábito. Isso pode ser observado comparando o que ela está vivendo com seus novos vizinhos. Estes são valores, referencias desse mundo q ela passou a freqüentar ou é parte de um mundo criado por ela. E o clínico deve reparar também se há uma certa estabilidade nessas novas referências  Quando a pessoa está em mudança pode ocorrer que  seus parâmetros mudem só temporariamente. É observando os vizinhos q é possível verificar se a pessoa está em movimento de criação de “novos mundos” (ascendente, de riscos, vertical) ou de estabilidade (tranquilidade, segurança, horizontal). Se for um momento de criação os vizinhos atuais provavelmente não conversam com os vizinhos anteriores, enquanto q se o movimento for de sossego as referencias dos vizinhos tendem a permanecer as mesmas. Em certos momentos criativos o rompimento com padrões anteriores pode ser muito forte a ponto da pessoa eliminar de sua vida certos elementos que até então eram os mais importantes,  determinantes: um namorado, a família, um emprego. Com fortes vínculos com seus novos vizinhos a pessoa pode não querer  mais voltar ao mundo em que vivia. É claro que há sempre risco. E é claro que deve ser observado o que é específico deste caso, singular a esta pessoa em atendimento. 

Ainda outros aspectos

Com o risco de se tornar monótono, o autor não pode deixar de ressaltar mais uma vez a  importância predominante da atenção para as bases categorias, para o mundo de onde a pessoa vem, para onde se dirige, onde está. Secundariamente, durante os momentos de reflexão e planejamento, o clínico pode fazer, para si,  certas aproximações, levantar  hipóteses, para observar as movimentações nas relações e pesos tópicos, que estejam ocorrendo.  Certas coisas podem estar se modificando ou deixando de ter validade (“não acredito mais que a virgindade é sinal de integridade pessoal”). Nunca é demais lembrar: aquilo q constitui a EP está vivo, em conversação permanente, com as coisas do mundo, as pessoas, consigo etc.

Ao filósofo clínico compete acompanhar esses movimentos existenciais, conversar sobre as novas vizinhanças,  sempre garantindo proximidade com a pessoa. Caminhar com ela onde e como ela estiver. Respeitar seus modos de expressão, de ódio, de amor, de indiferença. Certos modos da pessoa podem estar muito distantes daqueles já vistos pelo clínico, porém, fazem parte de seu ofício procurar compreender  os modos diversos, diferentes de viver e de se expressar que a  pessoa experimenta.  Se o clínico não tem referências em suas experiências pessoais pode explorar um pouco a historicidade da pessoa para ir se aproximando desses mundos de referências.

 Como diferenciar quando se deve interromper uma clínica que está se fazendo por esses movimentos  autogênicos e buscar uma intervenção tópica? Talvez quando o clínico começar a perceber que os movimentos da EP nos seus mundos circundantes, nos contextos de convivências, começam a não fluir como de hábito. São indicações que surgem nos seus relatos, nas suas expressões corporais, faciais, em gestos incomuns, o surgimento de fatores existenciais novos. O modo de lidar com isso pode ser retomar vínculos com momentos da historicidade, procurar indicações de intervenções clínicas já feitas e provocar situações que pelas reações possam dar alguma indicação do que está ocorrendo.

Uma maneira que pode ser útil, em alguns casos, é atentar para os modos como essa pessoa trabalha a si própria. Como é sua autogenia, até aqui?  Quando algo novo surge na sua vida, como ela age? Se for um problema de difícil solução, ela se desespera ou age no modo “Rita Lee” (“tire isso da cabeça, põe o resto no lugar..”). Há casos em q a pessoa permite que sua EP como um todo, dê um jeito de se reorganizar. O modo de clínica via Autogenia, através da Matemática Simbólica, abre espaço para eventual legitimidade de “conhecimentos-desconhecidos”, de base não racionalista, apoiados em saberes intuitivos. E isso não implica irresponsabilidade, antes, reconhece os limites do conhecimento no campo humano.  Este modo de trabalhar, entretanto, é para algumas pessoas, alguns modos de organização estrutural.

Com uma  EP com bom funcionamento nas relações tópicas – sem grandes conflitos e choques  – essa própria configuração inclina a EP para lugares  existenciais adequados. Uma EP assim pode se encontrar, circunstancialmente isolada em um ambiente desconhecido, mas tende a encontrar rapidamente modos de ajustes e formas de comunicação com os vizinhos que vão se apresentando. Não há como a priori saber se um novo elemento vai permanecer e se incorporar à sua vida ou se é um elemento apenas de passagem. 

Num momento de grandes mudanças, sempre se diz que há riscos e oportunidades, ameaças e possibilidade de ganhos e reconhecimento. Uma EP com boa fluidez,  pode assimilar uma série de recursos que não se dão a observar, a perceber, na vida corrente. Estando livre das principais contingências existenciais, pode aproveitar modos de apreensão que podem lhe facilitar decisões de vida, impensáveis em seu modo cotidiano habitual.

Não é raro nestes momentos em que a pessoa tem que tomar alguma decisão importante, que ela crie uma porção de limites imaginários e barreiras psíquicas que se tornam insuperáveis.  Fazendo isso abre mão de possibilidades que, talvez,  a sua força estrutural poderia lhe trazer.  Esse caminho de soltar-se à sua força “estrutural”, deixar que “sua EP” (esse modo de fazer-se a si, do tornar-se- si-próprio, que levou toda a vida construindo) faça o papel que já é dela. Como se observa em certas pessoas que parecem portadora de uma força excepcional nesses momentos, ou ainda aquelas pessoas das quais se diz “puxa, como ela é auto confiante …como é que consegue fazer isso, nessas circunstancias!”. Mas ao clínico resta a questão de como proceder, como saber se a “EP”  desta pessoa não vai encaminhá-la  para um caminho perigoso? Aqui se volta ao começo e ao sentido deste trabalho. Quem é esta pessoa? O que é próprio a ela? Como ela produz e se torna o que é?

 Uma pessoa “solta”, auto-confiante, possivelmente (mas, não obrigatoriamente) tem sua organização estrutural para direcioná-la, algo como o “submodo Zéca Pagodinho”: “deixa a vida me levar, vida, leva eu…” E isso pode não ser  uma “loucura” mas, algo sensato. Afinal,  esses  caminhos já podem estar como que  previamente estabelecidos, pela fluência com que a pessoa se relaciona com suas  vizinhanças conhecidas ou próximas.

Vizinho é um nome que se usa nestes procedimentos de clínica autogênica para os chamados  fatores  de similitude,  que são elementos que podem interferir, reparar, encaminhar para as coisas e lugares, próximos, familiares. Vivências anteriores podem se propagar e conversar, se relacionar com vivências atuais, surgentes, sem que a pessoa se dê conta. O curioso é que isso é quase uma circunstancia comum, ordinária da vida, um recurso do ser humano, que é desprezado, deslegitimado pelo modo de conhecimento predominante. Na clínica quando é possível um direcionamento com esta base, é dos melhores destinos existenciais possíveis à pessoa.

Uma caso inventado de procedimento baseado na autogenia

Dá pra imaginar q Hanna deixou sua EP vagar livremente, a ponto de lhe trazer uma perspectiva absolutamente diferente daquelas que suas vizinhanças habituais lhe trariam.  Se não for assim, como compreender o surgimento dessa nova perspectiva de seu olhar, tão distante dos critérios, das referências culturais, epistemológicas, sociais, axiológicas de seu ambiente intelectual e existencial, predominante naquela Nova York, de então.

Mas como isso foi possível?  Tudo indicava um desdobramento completamente diferente. No seu mundo circundante este modo de enxergar as coisas era algo simplesmente inconcebível, inaceitável.  Mas algo lhe passara na mente e ela teve a sorte da proximidade de Malcolm, seu filósofo clínico. Mesmo este, acostumado ao flutuar dos movimentos da EP de Hanna, ficou muito espantado. Percebeu que se tratava de uma poderosa intuição que lhe visitara. Uma forte transversalidade, na sua linguagem da Matemática Simbólica. Não era um movimento existencial vertical /ascendente, nem horizontal/ estabilizado.

Mas uma coisa é reconhecer o fenômeno, na clínica e outra é como lidar, acompanhar e ajudar sua partilhante a lidar com ele.   Ela sabia que havia alguma coisa naquela situação que fazia um sentido completamente diferente do habitual para ela. Como é que ela pôde passar a ver naquele homem que admitia com a maior naturalidade, sem qualquer culpa ou constrangimento, ter sido o agente das maiores atrocidades frente a um numero enorme de pessoas? Como ver um homem atrás disso? Como prestar atenção e ponderar suas “razões”? Razões?

Neste texto não importa a questão propriamente, mas como foi possível a Hanna lidar com ela e como Malcolm procedeu como clínico.  Isto é só um exemplo, inventado.

 Ali havia um fenômeno que ela vislumbrou e que a sua vizinhança atual não lhe dava permissão nem de considerar. Malcolm lembrou-se do relato que ela lhe havia feito, muito tempo atrás, de sua experiência de sair da casa de seus pais, com menos de 20 anos para seguir uma intuição poderosa, de estudar filosofia, nos confins da Alemanha, com um jovem professor que vinha impressionando o mundo intelectual por suas teses revolucionárias, na fenomenologia, vinculando existência e ontologia.

Aquelas circunstâncias, vividas quase 50 anos antes, mudaram por completo o sentido de sua vida. E de tal forma que direcionou praticamente todos os aspectos de sua existência. Esse modo de confiar e seguir as intuições que lhe visitavam foi seu modo pela vida afora, nos momentos das grandes decisões. Nela, uma exímia intelectual.  É claro que isso aconteceu, com intensidade menor, com menores repercussões, mas, sempre com resultados favoráveis.

Desta vez, entretanto, a dimensão era incomensurável: a sua própria identidade estava ameaçada; tinha o risco de perder o trabalho na universidade – que adorava – seu prestígio na imprensa e na intelectualidade, seu reconhecimento público, social, seus amigos etc. Mas talvez fosse mais uma vez uma oportunidade de ampliar os sentidos de sua vida própria, de si mesma. De des-mesmificar o seu si próprio. Bem no cerne de sua Autogenia, de suas relações tópicas, do peso de cada uma neste re-arranjo.

É claro que essas reflexões foram feitas por Malcolm. Que pouco a pouco foi pesquisando modos de apoiar os passos de Hanna na direção que ela vinha traçando.  E não deu outra: com o apoio aos movimentos com vistas a reforçar seus vínculos com os novos vizinhos que se apresentavam, ajudou-a a criar um bom afastamento das vizinhanças que lhe pareciam perniciosas e dificultantes para o desdobrar dos desafios que a nova configuração exigiria dela. Não é preciso dizer, leitor, como, depois da situação passar, Hanna, consigo mesma, com Mary, e com outros poucos, pôde viver uma ampliação de seu ambiente existencial inimaginável, a princípio, para uma pessoa de sua idade e já tão consolidada.

Ainda algumas considerações

Como compreender que uma EP pode oferecer para a pessoa uma maneira de observação sobre si, tão diferente? É quase certo que por raciocínios e relações habituais a pessoa não chegaria a tantas possibilidades. Os caminhos podem ocorrer por transversalidades, mas também podem ser traçados pela pessoa  por horizontalidades ou  verticalidades. Um modo é construir novas vizinhanças.  Os elementos horizontais são os que estão na mesma base existencial, na mesma “realidade”, no mesmo campo.  Quando a pessoa quer sair dessa “realidade” é uma indicação de movimento com vetor para verticalidade.

O elemento que mais dificulta qualquer movimento autogênico é  a intenção e controle. Se a pessoa quer mudar mas quer garantia, certeza etc, tende a não mudar. Esse é o grande freio para o movimento autogênico, vale dizer, para criar condições para q o próprio se engendre de uma nova maneira para si.

Há muitos aspectos da vida que são incompreensíveis para a base categorial em que se vive. Uma das mais constantes é expressa pela idéia de “coincidência”, como se a “incidência” de algo comum não pudesse ter sido produzida, gerada com alguma relação com alguma outra coisa. Não é preciso entrar no mundo racional de causa-efeito, para poder observar certas relações – de natureza ainda não referenciada e admitida como corrente – que relacionam elementos que incidem juntos.

Em todo o ambiente da Autogenia, da aproximação da origem e modificações daquilo que é próprio a alguém, do modo como se pode ter certos vislumbres de quem é essa pessoa  será sempre imprescindível a historicidade da pessoa, os exames das categorias e a formulação da  EP. Sem isso não há Filosofia Clínica. O âmbito aberto pela Autogenia traz possibilidades e recursos importantes para o desenvolvimento da clínica. Mas há que se ir com prudência e serenidade, porque sendo campo de pesquisa e envolvendo muito de perto destinos humanos, a possibilidade de interpretações esquisitas é muito grande. Não é raro observar colegas – aderindo ou rechaçando –  que entendem o trafegar neste campo delicado de conhecimento-desconhecido, em que se dá boa parte de nossa experiência humana, como justificação de  compreensões esotéricas, religiosas ou delirantes. Nada mais longe do que se propõe como Autogenia.  Leitor, faça o seu percurso. A caminhada, só ela, já vale a pena.

Afinal, permanece a questão:  quem é esta pessoa?  

Filosofia Clínica-FC: Conversação entre os Tópicos 10: Estruturação de Raciocínio e 16: Significado*

Para começar essa conversação, ou melhor, para continuá-la, pois parece-nos que toda vez que iniciamos uma conversa, o fazemos com base em “n” outras conversas já tidas antes, em “n” outros conhecimentos e saberes que vamos acumulando ao longo e ao largo de nossas experiências e vivências.

E, especialmente em FC, isso tem um significado especial, por tratar-se de um pensar e um fazer filosóficos que tem na história, na historicidade uma de suas bases norteadoras, seja na construção de conhecimentos e saberes, de conceitos, seja na prática clínica e/ou nas consultorias organizacionais.

Assim vamos significando e resignificando o mundo que, como já vimos, é também “resultado” de nossa “vontade e representação”, seja no âmbito das nossas singularidades, particularidades e/ou generalidades de relações.

Dessa forma, elaboramos nosso pensamento, o qual se estrutura à medida que pensamos a nós mesmos e ao mundo circundante, do qual somos e fazemos parte. E vale lembrar que pensar, aqui, envolve não somente um processo mental, puramente racional, mas engloba todo o nosso ser, onde sentimentos, mentalizações, meditações, sensações, emoções, racionalidades, intuições formam o conjunto de nossos conhecimentos e saberes, formam o conjunto do que somos, do que fazemos e “moldam” a forma como nos expressamos e os “meios”, os “modos” que utilizamos para nos expressar (T15-Semiose e T21-Expressividade).

Nesse universo, uma das formas de nos expressarmos, é a linguagem, especificamente o verbo, a fala, quando passamos a narrar nossa historicidade, no caso da clínica filosófica enquanto um processo terapêutico.2

Agora sim, podemos falar especificamente do T10-Estruturação de Raciocínio relacionando-o diretamente ao T16-Significado.

Como dissemos acima, é do conjunto de nossas experiências, vivências, estudos, pesquisas, práticas que vamos elaborando nosso pensamento. E é justamente isso que o Filósofo Clínico vai observar no T10: como se estrutura o pensamento do Partilhante.

Pensamos não se tratar aqui de “classificar” tão somente se o raciocínio da pessoa é bem ou mal estruturado, considerando apenas um logicismo ou um formalismo3. Trata-se de apreender e compreender, com base nos jogos de linguagem utilizados, a forma como os termos e os conceitos vão sendo utilizados e dispostos no discurso, verificando a relação e o sentido entre eles na malha intelectiva do Partilhante.

E aqui, unindo a história vivida e o conhecimento construído ao longo das Histórias das Filosofias, a lógica formal, o empirismo, a analítica de linguagem, a hermenêutica, a epistemologia contribuem para embasar a “ação” do Filósofo Clínico.4 Tendo sempre em mente que o raciocínio dá-se num contexto específico, afetado pelas circunstâncias e é então que ele tem ou ganha significados.

Podemos tomar como exemplos pessoas que com singularidades existenciais e/ou situações bastante específicas, com grandes sofrimentos, que estão sob efeito ou façam uso de drogas, lícitas ou não, em estados de profunda tristeza ou alegria efusiva etc que podem afetar seu estado mental e sua estruturação de raciocínio5. Mas, mesmo assim, é possível colher daí “logicidades”, ou melhor, sentidos e significados, pois a FC não se atém a um único tópico da Estrutura de Pensamento-EP isoladamente, mas da “conversação” entre todos eles. A plasticidade da existência de cada pessoa e a plasticidade de seu pensamento, usando de uma certa redundância, estão em constante movimento, fazendo-se, nunca acabando-se ou concluindo-se.

Nesse sentido, haveria o risco de o Filósofo clínico julgar um determinado raciocínio como bem estruturado e outro como mal estruturado, mesmo pautando-se na lógica formal? Seria possível um processo clínico-terapêutico totalmente isento de julgamentos prévios?

O que é “bem” ou “mal” estruturado? Ou mesmo, o que é “estruturado”? A vida dá voltas, e em determinados momentos e/ou em determinadas situações e circunstâncias podemos estar com o pensamento mais claro ou mais nebuloso. Tudo depende… E é por isso que o terapeuta, mesmo com referências prévias, como as da lógica formal, por exemplo, deverá ater-se ao discurso do partilhante inserido em seus contextos, em suas circunstâncias, para estar o mais próximo possível da significação daquele discurso, daquela linguagem que a pessoa compartilha com ele.

Dissemos acima que, afetados pelas circunstâncias, é então que nosso raciocínio, que a forma como pensamos e nos expressamos tem ou ganha significados. Por isso não tem como falar de Estruturação de Raciocínio (T10) sem falar e relacioná-lo com o Significado (T16). Afinal, não é justamente o significado do que o Partilhante traz que o Filósofo Clínico procura compreender?!…

Isso posto, passemos para o T16 – Significado.

O dicionário diz que significado é:

1.relação de reconhecimento, de apreço; valor, importância, significação, significância; 2. m.q. significação (‘representação mental’); 3.Rubrica: linguística.na terminologia saussuriana, a face do signo linguístico que corresponde ao conceito; conteúdo; etimologia: latim: significatus, significare, ‘dar a entender por sinais, mostrar, significar (Houaiss eletrônico 2009)

Aquilo que dizemos, falamos, os termos e conceitos que usamos têm um significado, pois simbolizam tudo o que vimos aprendendo e apreendendo ao longo de nossas existências.

Vale atentar aqui para a importância de que “temos de nos valer, em algumas situações, de outros recursos epistemológicos, além dos sentidos e da razão, para tentar entender o significado contido nas “coisas”; a intuição, a reflexão, a imaginação e o próprio silêncio assumem importância, auxiliando-nos a identificar valores dificilmente tangíveis instantânea e racionalmente: há muitas maneiras de se entender as coisas que nos chegam, há muitos modos de cada um de nós compreendermos os sinais que nos são emitidos, os signos” (PARDAL, 2001). Aqui também podemos estabelecer relação com outro tópico, o T15-Semiose, “o que o partilhante usa para expressar-se? Fala, gestos, expressões faciais, postura corporal, música, dança, literatura, poesia, desenho, pintura, escultura, etc… (AIUB, 2004)

De qualquer modo, nossa linguagem não deixa de ser uma representação mental que tem um sentido simbólico, através do qual buscamos representar o mundo6, relacionando-o com os termos e conceitos que utilizamos. “Significado é, justamente, a pesquisa de como o partilhante significa os conteúdos que expressa pelos diferentes dados de Semiose” (AIUB, 2004). “Não esquecendo que, conforme declara Wittgenstein: “a linguagem é um labirinto de caminhos”. O significado é aquela parte do símbolo que se dá a conhecer através da percepção, enquanto representação de uma ideia no intelecto” (PARDAL, 2001).

Da mesma forma como a vida, a existência não é conclusiva, não é um “poema em linha reta”, como diria Fernando Pessoa, o significado também não é algo acabado, mas antes um processo do pensamento que, como já dito, na medida em que é afetado vai dando sentido às coisas, ao mundo.

Diante do exposto, podemos considerar que ao Filósofo Clínico, através da interseção que vai estabelecendo com o Partilhante, cabe pesquisar o significado presente na linguagem utilizada por ele, o significado que ele atribui ao que diz, ao que expressa7, para, então, elaborar o processo terapêutico-clínico, este também em constante movimento e passível de mudanças.

Nos jogos de linguagem, nas representações de mundo, nos Princípios de Verdade (T26) compartilhados entre Partilhante e Filósofo Clínico é que vão clarificando-se as linguagens, as ideias, os raciocínios e os significados que atribuímos e atribuiremos à existência.

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*Paulo Roberto Grandisolli – Filósofo Clínico – Recanto da Filosofia Clínica – São Paulo/SP – 140818

1 Uma referência : Convite à Filosofia, de M. Chaui. Ática, SP, 1994, cap. 5, pp. 136-151.
2 Observamos que o verbo, a fala é uma das formas de expressão, mas não a única. E na FC, a/o terapeuta irá observar quais os principais modos de expressão a/a Partilhante tem como predominantes para poder “narrar” sua historicidade. O que tem a ver com o T15-Semiose.
3 Isso não quer dizer que se abre totalmente mão da lógica formal, pois sem o conhecimento desta não seria possível uma verificabilidade de “confusão” ou não no discurso, podendo, inclusive, haver como confutá-lo e auxiliar o Partilhante a “clarear” suas ideias, seus pensamentos, se necessário.
4 Poderemos nos referir como contribuição para pensar esses tópicos Aristóteles, Vico, Descartes, Kant, Rousseau, Wittgenstein, Ricoeur, Fromm, Foucault, Chaui entre outros. Tiburi, em Filosofia Prática – Ética, Vida Cotidiana, Vida Virtual, Record, RJ, faz algumas referências à linguagem.
5 Nesses casos cabem pesquisas que apontem quais caminhos tomar. Mas referente a isso teríamos assuntos para outras tantas conversações. Vale deixar registrada essa observação.
6 Indicamos Erich Fromm, em A Linguagem Esquecida – Uma Introdução ao Entendimento dos Sonhos, Contos de Fadas e Mitos, 8ª edição, Zahar Editores, RJ, 1983: II. A Natureza da Linguagem Simbólica, pp. 19-27.
7 Como no pensar e no agir “quase tudo te a ver com tudo”, não teríamos como deixar de falar de outro tópico, o 21. Expressividade, que é “O quanto do que sou e do que penso expresso ao outro? De que maneira expresso? (AIUB 2004).

Solidão, uma questão filosófica

O dicionário define Solidão como sendo “estado de quem se acha ou se sente desacompanhado ou só; sensação ou situação de quem vive afastado do mundo ou isolado em meio a um grupo social; estado ou condição de duas pessoas (ger. casadas) que, não obstante, vivem juntas, não se entendem nem se comunicam uma com a outra; (latim solitudo/inis), solidão, retiro, desamparo, abandono” (Houaiss, 2009).
Parece certo que a solidão, o saber-se e o sentir-se só é próprio da condição humana e manifesta-se tanto individualmente quanto na coletividade, na sociedade. O indivíduo sabe-se e sente-se só. Mas uma sociedade, um povo pode também ter essa sensação e consciência de solidão diante de contextos sociais, políticos, econômicos, culturais que o levem a perceber-se só. Por exemplo, na ausência de políticas sociais que promovam a inclusão e diante do descaso e dos desmandos das elites e do governo, as classes menos favorecidas e desprivilegiadas, podem sentir-se e saber-se abandonadas, solitárias. E estas mesmas causas, que atingem a sociedade como um todo, afetam cada pessoa em particular, cada uma a seu modo com mais ou menos profundidade. Um indivíduo que trabalha arduamente, recebendo uma remuneração não condizente às suas necessidades básicas e em condições inadequadas, sente-se desvalorizado e desamparado por não conseguir ver saídas. Pior ainda quando é bombardeado pelo tipo de “pensamento único” e propaganda que tenta lhe incutir a ideia de que basta esforçar-se, acreditar e “correr atrás de seus sonhos” para conseguir galgar os degraus da fama e da prosperidade. Discurso e prática, inclusive, de igrejas e seus pregoeiros. E se não o consegue é porque não se esforçou o suficiente, não teve o “mérito” para tal. Qualquer semelhança com o que vivemos em nosso país presentemente, não é mera coincidência.
Outro exemplo nos dá Octavio Paz, no livro O Labirinto da Solidão, no qual apresenta um retrato dos mexicanos, dizendo ser a solidão uma das características desse povo, lembrando os aspectos geográficos-climáticos que influenciam os estados de ânimo; fazendo uma releitura da história, desde seus primórdios, quando os vários povos autóctones tinham suas culturas próprias e uma consciência mítica da realidade; passando pela devastação promovida pela invasão e colonização, quando foi forçado a mascarar-se e assumir outras identidades; pela revolução de 1910; pelas ditaduras político-militares até a então atualidade (o livro é de 1950), vivendo nessa “dialética da solidão” de ser e não ser, de estar e não estar, de pertencer e não pertencer ao seu próprio lugar e ao mundo, especialmente por ter assimilado, durante todo o período colonizador e ditatorial, que era um país e um povo menor, sem cultura, tendo os modelos europeu-espanhol e estadunidense como os corretos, os melhores. E nesse movimento dialético busca (re)construir sua identidade própria enquanto povo.
Sob as várias visões, sentidos e significados dados, repetimos, a solidão é inerente à condição humana. Dela tratou e trata vasta obra literária, como o romance do colombiano Gabriel Garcia Márquez, Cem Anos de Solidão. Na poesia, sabemos, é tema recorrente, a exemplo da obra Solidão Compartilhada, da poeta pernambucana Maria do Carmo Barreto Campello de Melo, donde destacamos o poema Aviso. Ou na música, como A Solidão é Fera, de Alceu Valença.
Por tratar-se de algo característico da existência humana, a solidão é considerada uma questão filosófica. E filosoficamente pode ser pensada e cuidada. O Dicionário de Filosofia conceitua solidão da seguinte forma: “O isolamento dos outros ou a busca de uma melhor comunicação. No primeiro sentido a S. é a situação do sábio que, na sua figura tradicional, é perfeitamente autárquico e por isso isolado em sua perfeição (v. SAPIENTE). Fora desde ideal, o isolamento é um fato patológico: é a impossibilidade da comunicação que se liga a todas as formas de loucura. Em sentido próprio, contudo, a S. não é isolamento mas antes a busca de formas diferentes de comunicação” (Abbagnano, 1970). Daí vemos que faz-se uma distinção entre solidão e isolamento, sendo a primeira algo necessário e positivo, i. é, a pessoa retira-se, volta-se para si mesma, refletindo sobre seus próprios pensamentos e seu modo de ser e estar no mundo, visando o crescimento humano, a sabedoria; e o segundo, como algo negativo, que faz com que nos fechemos e nos isolemos, perdendo a capacidade de comunicação até conosco mesmos.
Mas convencionou-se, em nossa cultura ocidental, e como destacado no início desse texto, dar ao termo solidão esse significado/sentido negativo, ao menos na grande maioria das vezes. O que não quer dizer que não possamos ressignificá-lo. Assim sendo, como poderíamos tratar, cuidar filosoficamente dessa questão?
No texto de Octavio Paz, bem como na poesia de Maria do Carmo, vemos apontados caminhos: Paz propõe uma reflexão crítica do ser mexicano, tendo como base sua história, levando-o à ação e à libertação e a afirmar-se enquanto povo. Maria do Carmo sugere que, embora não se possa repartir nem dividir as solidões, assumi-las e colocá-las lado a lado, pois o desamparo une as pessoas.
Podemos dizer que tanto num como noutro caso, essas são atitudes filosóficas. E aqui a Filosofia Clínica, atenta às singularidades de cada pessoa, assim como para a realidade de uma sociedade, de um povo, pode contribuir para que vivamos mais conscientes de nossa condição e capazes de enfrentar os desafios pessoais e coletivos que vivenciamos. Afinal, ela, a FC, atém-se à historicidade, donde busca-se elementos que situem as pessoas e as coletividades e as façam sentir-se localizadas existencialmente, apropriando-se de seus destinos e tornando-se capazes de interferir nos rumos de suas histórias pessoais e coletivas.
Paulo R. Grandisolli

Filosofia Clínica e alguns desafios ao cuidados de si e dos outros

Parece-me que a aposta, o desafio que toda história do pensamento deve suscitar, está precisamente em apreender o momento em que um fenômeno cultural, de dimensão determinada, pode efetivamente constituir, na história do pensamento, um momento decisivo no qual se acha comprometido até mesmo nosso modo de ser de sujeito moderno.” (Michel Foucault, A Hermenêutica do Sujeito, 2006, p. 13)

Ao abordar o cuidado de si, Foucault ressalta tratar-se de um fenômeno cultural que surge num determinado contexto e estende-se por um período também determinado caracterizando a filosofia antiga como “preceito de vida”, i. é, uma vida filosófica implica não somente o conhecimento de si, mas antes e principalmente o “cuidado de si”. Torna-se fundamental apreender, ou seja, “assimilar mentalmente, abarcar com profundidade, compreender, captar”, esse fenômeno para que se possa dimensionar sua importância e o seu impacto na história de vida das pessoas e da sociedade.
O cuidado de si, como fenômeno historicamente determinado, afetou o modo de pensar e o comportamento de gerações futuras, passando pelo início do cristianismo até o período moderno e, podemos dizer, continuando pela atualidade. Resta saber se esse fenômeno foi e está sendo devidamente apreendido.
Foram e são muitos os movimentos surgidos, especialmente quando da “virada do terceiro milênio” (lembrando que essa demarcação do tempo diz respeito à civilização ocidental-cristã), ressaltando a necessidade e a importância de as pessoas atentarem mais para o cuidado de si e para o cuidado com o meio em que vivem. Movimentos esses das mais diversas orientações ideológicas, políticas, espiritualistas, religiosas etc, o que não nos cabe discutir aqui, embora isso mereça um olhar crítico. Mas alguns questionamentos podem ser postos, tais como:
– Com o avanço vertiginoso do neoliberalismo, até que ponto as políticas dele derivadas, determinadas pelas grandes corporações agro-industriais-financeiras, p. ex., e acatadas pelos governos, fazendo uso dos grandes meios de comunicação, cooptam a ideia do “cuidado de si” para implementar e inculcar nas pessoas a ideologia de que se deve buscar esse “auto-cuidado” cada um por si, num excesso de zelo individualista, onde o mérito de cada pessoa determine quem são e serão os vitoriosos e os fracassados, gerando angústia e letargia naqueles que não conseguem alçar os degraus da fama e da riqueza por serem apontados e se acharem fracos e incapazes?
– O impacto das novas tecnologias e o acesso ou a falta de acesso a essas tecnologias: Como colocarmo-nos frente aos avanços científico-tecnológicos e repensarmos o cuidado de si nesse contexto, garantindo que cada pessoa, na sua singularidade, e a sociedade como um todo sejam respeitadas e tenham suas necessidades para o bem viver garantidas?
– Como posicionar-se dentro da natureza, pensando e agindo de modo que os outros seres viventes também sejam reconhecidos como “sujeitos” de direitos?
– Como pensar-praticar novas políticas e formas de participação nos rumos das sociedades condizentes com os desafios da contemporaneidade?
Essas questões e outras tantas que possam surgir visam enfocar o como esse fenômeno cultural surgido na Grécia antiga, iniciado e incentivado pelos filósofos de então, marcou a história do pensamento e da própria Filosofia, pois também foram e são vários os “movimentos filosóficos” que tomam o cuidado de si como uma orientação para a construção de teorias e práticas que visam ressaltar a ideia de um conhecimento filosófico condizente com modos de ser e estar no mundo.
Este é e continuará sendo um desafio para a Filosofia Clínica em particular, justamente por ser ela um saber e um método terapêutico que visa o cuidado para com a pessoa, considerando sua historicidade, contextualizada numa história maior, cujos acontecimentos interferem, ora com maior ora com menor intensidade, na vida de cada sujeito.
Compete também aos Filósofos Clínicos, que pesquisam e elaboram saberes-conhecimentos próprios da Filosofia Clínica, fazendo uso de todo o saber-conhecimento filosófico construído até agora, mas que principalmente colocam-se diante de seus partilhantes ouvindo atenta e respeitosamente suas histórias e caminhando com eles na busca de um viver mais atento e cuidadoso para consigo mesmos e para com o mundo, observar quais os fenômenos culturais, políticos, sociais têm um impacto maior na vida de cada um, das comunidades e da sociedade em geral, e que influenciam positiva e negativamente nos modos de pensar e ser das pessoas.
O cuidar do outro e o cuidar de si deve contemplar essas e tantas outras questões possíveis…
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Paulo Roberto Grandisolli

Outridades e Filosofia Clínica

OUTRIDADE: OUTRO/A + IDA + IDADE
A OUTRA pessoa que é minha igual, mas que é, principalmente, ao mesmo e no seu próprio tempo e ritmo, diferente de mim.
A OUTRA pessoa que é IDA, i. é, que vem, que vai, que é movimento, que tem o direito e quer construir seu próprio caminho.
A OUTRA pessoa que tem sua IDADE, i. é, que tem seu tempo, seu ritmo, seu compasso próprio.
Eu e o(s) outro(s). Eu diante do(s) outro(s). Eu ao lado do(s) outro(s). Eu adiante do(s) outro(s). Eu na contramão do(s) outro(s). Eu acima e abaixo do(s) outro(s). Eu com e sem o(s) outro(s). Eu dentro e fora do(s) outro(s). Eu que me aproximo e me afasto d(s) outro(s). Eu que desejo e repugno o(s) outro(s). Eu que sou outro(s). O(s) outro(s) que são eu. Eu igual e diferente do(s) outro(s)…
A(s) outra(s) pessoa(s). O(s) outro(s) homem(ns). A(s) outra(s) mulher(es). O(s) outro(s) animal(ais). As outras plantas. As outras espécies vivas. As outras metades das maçãs. As outras palavras. Os outros aromas. Os outros olhares. Os outros toques. As outras circunstâncias. Os outros sons. Os outros sentidos e sentires. As outras realidades. As outras etnias. As outras sociedades e culturas. Os outros tempos. As outras crenças e descrenças. Os outros lugares. As outras peles. As outras contingências. Os outros pelos. Os outros paladares. As outras relações. As outras geografias. Os outros gumes das facas. Os outros corpos. As outras ideologias. Os outros afetos e desafetos. Os outros espaços. As outras políticas. Os outros amores e dasamores. Os outros lados das mesmas moedas. Os outros assuntos. Os outros sexos e gêneros. As outras tecnologias. Os outros sonhos. As outras orientações sexuais. As outras mundivisões. Os outros mundos possíveis e impossíveis…
O “eu profundo e os outros eus” de Fernando Pessoa. O eu que é “vária” de Cecília Meireles. “O inferno são os outros” de Sartre. A outro como alteridade de Martim Buber. O outro como lucro: mão-de-obra, força de trabalho, objeto exploração e de prazer no mercado do sexo. O outro como objeto de estudo para as ciências. O outro como ensinante e aprendiz de Cora Coralina. A outra face dos Evangelhos…
E o rol de outridades vai ao infinito, mesmo diante das limitações de meu e de nosso modo sentir, pensar, aprender, entender, falar, de expressar enfim.
Tudo assim, sem agrupar essas e tantas outridades possíveis. Pois tudo tem a ver com tudo. Eu sou e nós somos a(s) parte(s) e o(s) todo(s). Não tem como dissociar corpos, gastronomias, políticas, geografias, sexos etc e tal. Até podemos fazê-lo por questões de métodos, didáticas, ideologias, interesses, poderes. Mas, na vida, isso não é possível. Não somos seres divididos. Em tudo sou e somos interdependentes.
Às vezes e quase sempre essas outridades e singularidades dos outros nos interpelam e não nos dizem nada; nos encantam e nos desencantam; nos desafiam e nos apatizam; nos curam e nos ferem. Mas nunca ou quase nunca nos deixem imunes. Acredito que não tenho como me esquivar diante dos outros. Contraditoriamente e ambiguamente eu sou eles e eles são eu. Ao mesmo tempo que singulares, iguais e diferentes.
E admitindo, querendo ou não, sem os outros, sem as diferenças, eu e os outros não teríamos as referências que nos possibilitam pautar a nossa existência. Nós olhamos e somos olhados. Pensamos e somos pensados. Nos construímos e somos construídos. Vivemos e somos vividos. Como diz o jargão popular moderno: tudo junto e misturado.
Diante desses(as) tantos(as) outros(as), quem sou eu? Quem é/sâo o(s) outro(s) e a(s) outra(s). É essa indagação que as filosofias, ao longo da(s) história(s), fizeram e continuarão a fazer. Sim, continuarão, pois eu, os outros e as outras somos processo, somos movimento. Nunca serei, nunca seremos os mesmos e as mesmas sempre. Somos caminho. Somos construção.
Parodiando o poeta: pela longa estrada eu vou, nós vamos; estrada eu sou, nós somos…
Penso que em todo o dito até aqui, está a Filosofia Clínica enquanto terapêutica existencial, enquanto terapêutica da vida. Deverão estar imersos em seus eus e nas outridades, como terapeutas, o Filósofo Clínico e a Filósofa Clínica. Supõe serem pessoas sensíveis, que têm ciência de ser um eu diante de outros eus. De ser singularidades diante de outras singularidades. De ser diferentes e ser iguais. E, por isso, buscarão colocar-se perante as outras pessoas para contribuir, para trilhar com elas caminhos que as levem a entender-se e a viver melhor com as suas igualdades e as suas diferenças, com as igualdades e as diferenças das outras pessoas, com as certezas e as dúvidas, com as perguntas com respostas e as perguntas sem respostas que, penso, todos e todas temos. A viver de forma mais serena com os vários eus que as habitam e com todas as outridades com quem convivem e se relacionam. E respeitando “a dor e a delícia” de cada pessoa ser quem é e construir o que quer ser.
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Paulo R. Grandisolli

Filosofia Clínica e o Feminismo

Lendo a obra de Ivone Gebara, Filosofia Feminista – Uma brevíssima introdução (2017), comecei a pensar, com base no que a autora diz acerca de uma filosofia feminista, se a Filosofia Clínica, tanto em sua concepção como em seu modo de pensar e fazer filosofia, também não seria uma “filosofia feminista”. Mesmo porque, tanto a palavra “filosofia” como a palavra “clínica” são substantivos femininos. E até porque, em sua origem, a Filosofia é considerada a mãe de todas as outras áreas do saber.
A autora afirma que “a filosofia feminista surge quando nós, mulheres tomamos consciência de que também nós somos convidadas à mesa do pensamento, e temos todas as possibilidades de pensar a vida com maestria e sabedoria. Afinal não somos nós que arrumamos a mesa e preparamos a comida? Por isso não desprezemos o convite que a história de hoje nos faz a todas nós: ousar pensar a vida e vivê-la podendo dizer com dor e amor: eis-me aqui”.
Esse “eis-me-aqui”, penso, também é a proposta da Filosofia Clínica, pois ao colocar-se frente a frente com a pessoa, de acordo com sua historicidade e com as dores e as alegrias do cotidiano, buscará, junto dela, ajudá-la a pensar a si mesma, a vida, ao mundo de seu jeito próprio, desengessado pelos padrões impostos. E mesmo que faça uso do conhecimento filosófico construído ao longo da história, procurará abordar esse saber e traduzi-lo de acordo com a singularidade de cada um, de cada uma. Não será a vida que se adaptará a uma ou mais teoria filosófica, mas o contrário: o que esse conhecimento construído pode oferecer para que essa pessoa se conheça melhor e se municie de saber para criar e recriar sua identidade própria e afirmar seu modo de ser e estar no mundo.
Gebara visa, em meu entender, despertar e reforçar nas mulheres essa sua capacidade de sentir, pensar, entender, dizer, expressar a vida desde aquilo que lhes é próprio, não no sentido de que esse “lhes é próprio” já tenha sido determinado pela natureza ou por interpretações que delas fizeram – geralmente feita por homens, mas desde como elas mesmas se sentem, se veem e se mostram para si mesmas e para o mundo.
Assim também a Filosofia Clínica quer contribuir para que as pessoas assumam-se nas suas singularidades, não ficando presas aos padrões e aos pré-juízos que se constroem por terceiros e que se estabelecem enquanto convenções e conveniências de uma sociedade marcada pelos preconceitos, pelos machismos, pelos fascismos e toda ordem de desmandos que buscam enquadrar a pessoa de acordo com o que é considerado “bom” para manutenção da “ordem” e do status quo.
A autora reforça que compete às mulheres que o “pensar filosoficamente a vida, procurando as razões das muitas coisas que vivemos, é de certa forma se retirar das atividades comuns para assumir de forma específica a atividade de pensar, compreender, relacionar, buscar dados e escrever”, admitindo sempre “o limite de nossas percepções e de nossos pensamentos”, mas ousando fazê-lo por si mesmas.
E continua: “não há verdades feitas a serem ensinadas, mas caminhos desde os quais há que aprender a viver na insegurança. Por isso é necessário voltar à trama da vida e acolher a sua constante mobilidade como aprendizado coletivo”.
Igualmente em Filosofia Clínica, filósofo clínico e partilhante buscarão a construção compartilhada de saberes que levem a uma nova atitude perante a vida individual e coletiva.
“Narrar a história dos outros é um enorme exercício de poder sobre eles e elas. É reduzi-los à nossa visão e narrativa”. Por isso, são as mulheres que deverão continuar narrando as suas próprias histórias e não mais admitirem que essas histórias que lhe são próprias, embora partes de uma história maior, sejam narradas por outros, na sua grande maioria homens, que as colocaram e colocam como personagens passivas e submissas, destinadas a reproduzir modelos viciados e opressores de mentes e corpos. É a partir de seus próprios corpos, enquanto algo que lhes é próprio e singular, mas também enquanto afirmação social e política, que essa nova filosofia deve ser construída.
Mais uma vez aqui, a Filosofia Clínica aproxima-se da filosofia feminista, pois o terapeuta jamais deverá narrar a história da pessoa com base em suas interpretações, mas proporcionar à pessoa que ela mesma seja a narradora de sua história, com base no que sente, pensa, entende de si mesma e do mundo. E deverá ter uma escuta atenta à literalidade do que lhe é dito, para assim iniciar o processo de entendimento do modo de ser e estar da pessoa.
Pode ser pura elucubração essa minha tentativa de aproximação da Filosofia Clínica de uma Filosofia Feminista, melhor dizendo, das Filosofias Clínicas e das Filosofias Feministas. Mas vejo que ambas buscam olhar de um modo diferente para a pessoa e para o mundo, resgatando aquilo que deu início ao filosofar, que é essa capacidade de espanto, de angústia, de questionamento frente às coisas da vida e ao mundo.
Sim, a Filosofia Clínica pode ter essa postura feminista também enquanto desafio na construção de um novo filosofar, mesmo porque ao colocar-se frente a frente com as pessoas ou grupos ou organizações, o/a terapeuta terá que ter esse olhar singular para aquela singularidade diante da qual se coloca, seja ela de que gênero for, masculino, feminino ou tudo junto e misturado, assim como é ou deveria ser a vida. O mundo multifacetado exigirá de nós sentires, pensares, agires que nos possibilitem respirar melhor os ares que nos perpassam os corpos individuais e coletivos, buscando mudanças de ares numa sociedade e num mundo onde imperam o poder e a força bruta e os machismos de toda ordem que ainda teimam em dominar mentes e corpos.
Mas, como vem mostrando o movimento feminista, mentes e corpos não podem ser subjugados para sempre. O desejo de liberdade de pensamento e ação é mais forte.
“Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria
Mas é preciso ter manha
É preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida”.
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Paulo R. Grandisolli

É POSSÍVEL MENSURAR O AMOR? – Exercícios filosófico-sentimentais…

“Faça tudo para que, quando estiver prestes a morrer, não se arrependa por ter amado pouco.” (Chiara Lubich, 1920-2008)
Lendo essa frase numa destas folhinhas-calendário vêm-me uma série de questionamentos.
Assumo, de antemão, que apenas a li desta maneira, solta, sem conhecer se essa opinião faz parte de um texto maior, de qual texto, de que momento ou circunstância o mesmo foi escrito ou verbalizado.
E mesmo conhecendo um pouco da autora, se é que foi ela mesma que o disse (tantas palavras/pensamentos são atribuídos a tanta gente sem citação de fonte ou comprovação…) e sabendo de sua confissão e prática religiosa cristã/católica, mesmo assim isso daria motivos para não me atrever a dar uma opinião, pois correria o risco de, desconhecendo o contexto, fazer juízo de valor sobre o dito e sobre quem o diz.
No entanto, vou me arriscar…
E começo por perguntas tais como:
O que seria o amor? O que seria o desamor? De que tipo de amor se fala? Quem ama? Quem é amado? O que se ama? De que forma se ama? Quais as formas do amor? O que é arrepender-se? O que é não arrepender-se? Arrepender-se do que? O que é a morte? O que é estar prestes a morrer? Se for o caso de arrependimento, por que só fazê-lo quando se está prestes a morrer? O que é ter amado pouco? O que é ter amado muito? É possível mensurar o amor? Assim como qualquer outro sentimento?
Tendo essas questões em mim é que me atrevo a discorrer um pouco sobre assunto. Isso porque, como ser questionante e, como diria Clarice Lispector, “eu sou uma pergunta”, não posso e não consigo ficar quieto comigo mesmo diante de tais “frases de efeito”, como tantas que vejo proliferar por aí, especialmente hoje com as redes sociais (facebook, instagram, watsapp etc…) nas quais, a todo momento, hora, dia, semana, mês se deseja a felicidade (feliz segunda, terça, quarta… feliz isso ou aquilo…) e te amo daqui e de acolá… e por aí vai… Isso tudo me incomoda bastante e dá-me a impressão de que, por fazermos uso exagerado de tais “mecanismos”, o fazemos justamente porque nos falta aquilo que exacerbadamente desejamos uns aos outros. Aliás, isso já é “comprovado” pelas teorias psi: amamos aquilo que nos falta.
E, principalmente em tempos sombrios como os que vivemos, onde os valores são invertidos especialmente por aqueles que determinam a ordem estabelecida, ou seja, os políticos e governos de plantão, sempre a serviço das elites financeiras que os mantém, onde as oportunidades parecem cada vez mais escapar da história da grande maioria dos mortais, parece crescer vertiginosamente esse tipo de comportamento, reflexo de um sentir e de um pensar que, na realidade, são pseudo pensamentos, pois buscam numa realidade “ilógica” argumentos para “racionalizar” e mensurar, nesse caso, a capacidade de sentir e os sentimentos das pessoas. Aliás, controlar os corpos e os sentimentos é fundamental para manter o status quo, a (dês)ordem dominante. “Sorria, você está sendo filmado”, quer dizer, “sorria, você está sendo vigiado”. Em Vigiar e Punir, Foucault já apontava para isso. E seria arriscado dizer que hoje, além dos mecanismos tradicionais de vigilância, as redes sociais são os panópticos modernos e estaríamos nós confinados em grandes zoológicos, mesmo quando dentro de nossas casas? Disso tudo é desafiante libertar-se. Isso se se quiser a liberdade como valor maior. Quando se ama a liberdade, podemos assim dizer.
O amor, o desamor, que tipo de amor, quem ama, quem é amado, como se ama, de que forma se ama, o arrependimento, o arrepender-se ou não, a morte, o estar prestes a morrer, o pouco, o muito… tudo depende de cada experiência de vida, da singularidade de cada pessoa, da história que se viveu e se vive, das relações que estabelece ou não, daquilo que é ou não importante em sua vida, da liberdade que se busca e se conquista. Não dá para enquadrar toda e qualquer pessoa num dito como o mencionado acima e daí concluir que tal pessoa, estando prestes a morrer, que é o corte pelo qual passaremos, tenha amado muito ou pouco. As histórias de cada humano ser são muito mais complexas do que podemos supor ou imaginar. Nada na vida é simples, principalmente em se tratando de formas de sentir.
Nosso sentimento para conosco mesmos, para com o mundo, para com tudo o que nele existe, para com as pessoas em particular, suponho, é “algo” de muito profundo e multifacetado, a depender, sempre, dos “estados” em que nos encontramos e das diversas relações estabelecidas ou não, das circunstâncias, dos lugares, dos tempos, dos diversos assuntos, das diversas questões com as quais nos deparamos. Somos um constante processo, no qual vamos aprendendo amores e dasamores.
Como diria Octávio Paz (1914-1998), em seu texto Máscaras Mexicanas: “O amor é uma tentativa de penetrar em outro ser, mas só pode ser realizado sob a condição de que a entrega seja mútua” (O Labirinto da Solidão, 1984, p. 41). E isso, penso eu, deve valer para toda forma de amor. Como canta o poeta, “toda forma de amor vale a pena, toda forma de amor vale amar”.
E caberá a cada pessoa dispor-se a essa entrega. Na vida, e no amor, quase sempre saltamos no escuro. Estando ou não prestes a morrer. E não há medidas…
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Paulo Roberto Grandisolli

Filosofia e Política

A dúvida, a inquietação, a contestação e a busca são próprias da investigação filosófica. As filosofias nasceram dessas atitudes diante das questões que instigam e inquietam mulheres e homens ao longo da história, desde os “mistérios” da natureza, passando pelas questões cruciais da existência humana, como o sofrimento, a morte, as angústias, até as questões éticas, políticas, sociais e culturais. No filosofar tudo cabia e tudo cabe, desde que o exercício do pensamento não permaneça no mero senso-comum ou apenas no bom senso, que não se reduza a mera especulação e teorização, mas traga contribuições e transformações concretas e necessárias para a vida cotidiana, em termos do que se chama filosofia da práxis.
Práxis, aqui entendida como um pensamento, uma reflexão que estimula a prática; mas uma prática que instigue o constante pensar, repensar e refazer conceitos, teorias etc, objetivando a transformação da realidade. Práxis não é mera prática; mas, ação, conduta. Ação e conduta que se identificam com o próprio modo de pensar, ser a agir no mundo, não só enquanto ação de indivíduos, mas principalmente enquanto ação coletiva. Um pensar e agir coletivos que levem a uma transformação social. Rosa Luxemburgo (Polônia/Alemanha, 1871-1919), Antonio Gramsci (Itália, 1891-1937), Adolfo Sánchez Vázquez (Espanha/México, 1915-2011), Paulo Freire (Brasil, 1921-1997), Carlos Nelson Coutinho (Brasil, 1943-2012), são alguns desses filósofos que contribuem para nosso entendimento acerca da práxis. Vale lembrar, principalmente, Karl Marx (Alemanha/Londres, 1818-1883), ao afirmar que os filósofos, até então, haviam interpretado o mundo; a questão mais importante é transformá-lo.
Atualmente, em várias partes do mundo, particularmente no Brasil, vivemos num chamado estado de exceção, que no dizer do filósofo italiano Giorgio Agamben (1942-), é aquele que “apresenta-se como forma legal daquilo que não pode ter forma legal”*; uma frágil democracia se mescla ao autoritarismo. Em nosso país, após um golpe midiático-político, instalou-se um governo declaradamente submisso às oligarquias econômico-financeiras nacionais e internacionais cujo propósito é consolidar o neoliberalismo, em que o mercado tem absoluta liberdade para ditar e implantar as regras da política, restringindo a ação do Estado sobre a economia. Daí os chamados direitos civis e sociais passarem a ser gerenciados pelas grandes corporações como mercadoria, imperando a suposta “livre” negociação, sobretudo nas relações de trabalho. Sabe-se daí, como diz o ditado, a corda sempre arrebenta do lado mais fraco. E toda essa forma de pensar e gerir a política estende-se como uma “práxis perversa” para todos os aspectos da vida humana, como a educação, a saúde, a cultura. Sejam observados projetos como o escola sem partido, o escanteio de matérias como Filosofia e Sociologia nos currículos escolares, a privatização de serviços básicos como energia e saneamento, a expropriação de territórios de populações indígenas e quilombolas, as intervenções em exposições e performances artísticas, entre outras, que temos presenciado ultimamente.
Enfim, o estado de exceção expõe um obscurantismo nas áreas do direito e da democracia, instaurando-se um estado policialesco, no qual o judiciário age como mandatário supremo, à guisa dos outros poderes, todos mancomunados, espetacularizando ações, inquéritos, conduções coercitivas, prisões… E os grandes meios de comunicação, especialmente a TV, corroboram e contribuem para levar ao delírio uma grande parcela da população que não foi e não é estimulada a pensar por si mesma, repetindo o pensamento único veiculado e tido como verdadeiro. Daí, pensamentos e comportamentos preconceituosos e discriminatórios (xenofobia, LGBTfobia, misoginia, linchamentos, intolerância religiosa etc) afloram e se sentem legitimados por boa parte dos que ocupam e usurpam cargos no Congresso, nos Supremos Tribunais e demais instâncias governamentais.
Mas, e daí? Para que serve afinal a filosofia? M. Gadotti, filósofo brasileiro, em artigo publicado no periódico Reflexão (PUCCAMP)**, já tematizava essas questões aliadas ao ensino e estudo da Filosofia. Naquela época, então sob uma ditadura militar, constatava que “na ordem do sistema capitalista, a única filosofia tolerada é a filosofia da alienação. O capital precisa cada vez mais de homens alienados. (…) As discussões sobre a opressão e a ditadura certamente não terão lugar numa classe de física ou de matemática”. Afirmava também que “a filosofia deixou de ser o lugar do debate dos grandes (e graves) problemas do homem contemporâneo. (…) Pretensiosamente, a filosofia dos especialistas, dos filósofos por profissão, recusa-se a tratar dos problemas concretos e urgentes dos homens, para servir às organizações políticas e econômicas do capitalismo”. Vivemos uma situação análoga. Daí a urgência de nos reapropriarmos da filosofia, entendermos a necessidade de um filosofar, como “exercício do livre debate, ensinar e aprender a problematizar o que parece evidente, necessário, correto; ensinar e aprender a contestar (…). Nesse sentido, cada vez mais o filósofo me parece como o homem da suspeita, o homem que não duvida apenas, mas vai além da dúvida, suspeita sistematicamente e sobretudo das evidências, das coisas que se apresentam de forma definitiva, das coisas claras, que há sempre algo que não se mostra, que está escondido atrás das aparências, suspeita da parcialidade daquilo que vê”.
Consideramos parte essencial do pensamento filosófico ver para além das aparências e debruçar-se sobre as questões do cotidiano, de um sistema que submete homens e mulheres como meros componentes de uma pretensa “máquina pensante” e lhes incute a ideologia de se tornarem, como diz o filósofo chileno V. Safatle***, empreendedores de si mesmos, cujos pensamentos, corpos e desejos são controlados pelos grandes “centros de tecnologia-entretenimento-informação” formadores de “um tripé basilar da economia mundial”, reduzindo-os a objetos e negando-lhes as individualidades e o primordial direito ao pensamento e ao agir autônomos. Defendemos um filosofar que colabore para o restabelecimento e a consolidação da democracia brasileira, inclusive pensando noutros modelos, que não apenas o modelo democrático representativo, como as democracias comunitárias e participativas, em que as pessoas, o povo possa se pronunciar em sua soberania e como origem do poder político.
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*Giorgio Agamben, Estado de Exceção, 2004.
**Moacir Gadotti, Para que serve afinal a Filosofia? Reflexão, PUCCAMP, 4/13, jan-abr/79.
***Vladimir Safatle, O Cirucuito dos afetos – Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo, 2015.
Marcelo Bezerra Oliveira / Paulo Roberto Grandisolli

A razão cínica*

Previamente quero esclarecer que o termo razão cínica não tem aqui a conotação ética da escola grega dos tempos pré-socráticos.
Denomino razão cínica ao procedimento que pretende justificar ou pelo menos querer legitimar aquilo que pelas vias do raciocínio lógico rigoroso é injustificável e inaceitável.
Trata-se de uma postura cínica no sentido antiético e vulgar.
O movimento filosófico denominado Escola Cínica, atribuído aos pensadores ditos cínicos, caraterizava-se pelo desprezo das convenções e preconceitos relativos ao comportamento do senso comum. Objetivava uma vida de simplicidade radical e renúncia à posse de bens. A provocação de um choque mediante a quebra de tabus e convencionalismos rígidos. Uma postura de cepticismo e questionamento.
Atualmente, o discurso pautado pela razão cínica, longe desta tendência, consiste numa posição superficial, autoritária e afirmativa do conformismo subserviente à estabilidade do sistema dominante. Trata-se de uma razão cega, porque vê, mas finge não ver. Sabe, mas não reconhece; por ser politicamente conveniente e submissa aos interesses ideológicos dos que fazem a negação das evidências. Enquanto a filosofia cínica dos gregos antigos tinha uma posição cognitiva de contestação aos padrões dominantes, a razão cínica atual, sendo conformista, sequer se assume como tal, porque pretende se camuflar enquanto discurso que defende exatamente a manutenção desses padrões, pelo discurso falacioso sem nenhuma força de argumento que mereça o nome de racionalidade lógica. O próprio termo razão, neste caso, está impróprio, já que se trata mais de uma negação da própria racionalidade. Seria uma espécie de desrazão ou anti-razão. Relacionadas de tal modo que racionalidade e cinismo se confundem, sem que um anule o outro. Nesse contexto só é possível ser racional sendo cínico.
Um dado estatístico evidente a todos, por exemplo, passa a ser evitado, negado ou simplesmente invertido, sem que se apresente uma razão suficiente para tal, afora o interesse do interlocutor que o nega. Trata-se mais de um discurso falacioso que pretende dissimular certo autoritarismo, mediante dados verdadeiros, porém invertidos; pelo avesso, digamos. Uma negação de dados verdadeiros, exceto para quem os rejeita, por invertê-los em razão de malignidade e má fé.
A razão cínica em sua postura poderá até usar o que chamamos má fé e malignidade. Embora, diga-se, não se confundem. Pelo fato de que se funda no saber e em sua negação.
No momento atual esse tipo de irracionalidade inconseqüente e irresponsável é usado para disfarçar o absurdo inocultável nomeado como crise econômica, crise de paradigmas, crise da razão. Contanto que não se nomeie como crise do sistema capitalista.
As “razões” da razão cínica são geralmente as chamadas “razões ocultas”, os interesses inconfessados, o que está escondido por preferências, negociatas, desvios, conveniências pessoais, corporativas, de classe social etc. Seriam os resquícios da famosa mão “invisível” de Adam Smith. Aquilo que está camuflado, que não aparece nem é nomeado, porém transparece nas decisões e escolhas dos sujeitos falantes. E assim já não é tão oculto. Em síntese, é o tipo de discurso em que o sujeito falante, fazendo uso de falácias, atinge um nível acentuado de inescrupulosidade. Paralogismo? Não. Pelo fato de que o simples paralogismo possui apenas uma falha de natureza lógico-formal no argumento, sem necessariamente usar de malignidade; enquanto o discurso da razão cínica sabe que é inverídico e perverso. Usa o que denomino perversão ideológica. Embora não se reduza a mera questão de ideologia enquanto falsa consciência.
Alguns exemplos de falácias freqüentes no discurso sociológico reacionário podem nos esclarecer. Quando se afirma que o encontro entre europeus e indígenas foi pacífico. Que os nativos foram bem tratados e presenteados. Afirmar que a escravidão dos africanos não foi uma questão racial, mas apenas econômica. Que os negros conviviam pacificamente com os brancos portugueses no território brasileiro. Afirmar que todo brasileiro pode ser candidato a presidente da república. Que todos são iguais perante a lei. Que os Estados Unidos querem implantar a democracia nos países do oriente. Que nos últimos quatro anos cerca de quinze milhões de brasileiros saíram da classe baixa para a classe média. Que o crescimento econômico de percentuais do PIB de um país traz melhoria de vida para o povo. Enfim, tais discursos fazem uso da perversão estatística, pela inversão de dados. Trata-se de uma forma de legitimação e justificação do injustificável e ilegitimável. Um discurso que recusa enxergar os fatos visíveis e a perversão interna de sua falácia. Não se trata de uma falácia que leva à perversão, mas é a própria perversão em palavras inócuas que se pretendem consistentes.
Além desses exemplos, outro tipo emblemático de máximo cinismo acontece quando o próprio arcabouço jurídico permite que parlamentares ou empresários criminosos de alta periculosidade, tendo comprovadamente desviado milhões dos cofres públicos, como membros de quadrilhas, sejam defendidos por advogados particulares filiados à própria ordem dos advogados. Em nome do “direito”!
Sempre um discurso vindo do poder que pretende justificar a própria necessidade de transgressão ou ilegalidade pelas brechas da legalidade. Pior ainda por se tratar de uma perversão ideológica produzida pelas elites dentro das universidades. Que não teve origem aqui, mas nas universidades dos Estados Unidos e dos países europeus. Países onde, segundo o discurso dessas mesmas elites cínicas, “tudo funciona”. Entenda-se: a alta criminalidade. A exemplo da Suíça, com seus paraísos bancários; a França e a Itália racistas; todos com seus esconderijos para a bandidagem internacionalmente organizada em torno do dinheiro.
Não seria difícil reconhecer que este tipo de postura também se faz presente no comportamento das massas, que geralmente tendem a repetir o senso comum e o banditismo das elites. Neste sentido ambas não se diferenciam tanto. As elites possuem poder para impor o absurdo. O comportamento inescrupuloso das elites, o seu banditismo, a sua delinqüência, incentiva a delinqüência assassina e mortífera das massas; como analisou e previu o pensador Jurandir Freire Costa, há vinte anos, em entrevista sobre a razão cínica das elites brasileiras de fins da década de oitenta; e que nos dias atuais só tem piorado (cf. A ética e o espelho da cultura).
As massas não dispõem de poder, mas consentem, aplaudem, apoiam e imitam a prática das elites no que há de mais sórdido. Por isso são tão horrorosas. A meu ver um dos obstáculos mais difíceis para uma prática pedagógica conscientizadora está justamente nesse cinismo generalizado que funciona como corruptor das populações.
Penso ser possível também identificar a presença da razão cínica no comportamento das massas. Claro, de maneira irrefletida. O que me deixa mais estarrecido e perplexo é a sua cegueira e conivência com os opressores. Gostam de aplaudir e cultuar os tiranos. Sofrem fome, discriminação, marginalidade; entretanto, ao menor convite para inaugurações de monumentos, comícios e pseudo-festas, lá estão em multidões, para aplaudir os chefes. Pior ainda, estão sempre dispostas para apoiar as ditaduras e todo tipo de autoritarismo. Sua dispersão adere à ordem do mais forte. Em momentos especiais da história da humanidade as massas sempre consentiram o assassinato de grandes lideranças potencialmente libertadoras, como Jesus Cristo, Gandhi etc. E ainda hoje continuam dispostas para o mesmo tipo de crime. São adeptas do coitadismo e ao mesmo tempo dispostas a apoiar os interesses dos tiranos. Dissimuladas e violentas. Isto esconde o reflexo da razão cínica inerente ao poder autoritário.
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*In Filosofia Popular, 2009, p. 126-130, de Marcelo B. Oliveira

A filosofia e o filosofar

O filósofo espanhol Adolfo Sánchez Vázquez (1915-2011), que viveu exilado no México devido à perseguição política da ditadura do General Francisco Franco Bahamonde na Espanha (1939-1975), similar à ditadura militar brasileira (1962-1985), guardadas as devidas proporções, defende uma filosofia engajada, isto é, se a produção e a prática da filosofia, pautada na concepção de Karl Marx, filósofo alemão (1818-1883) não contribuir para transformar o mundo, pode tornar-se, a Filosofia, ela mesma, mera interpretação.
Em sua obra Filosofia e Circunstâncias*, no Epílogo, Que significa filosofar?, Vázquez ressalta a necessidade e importância de distinguir a produção filosófica e a prática do filósofo, sendo esta última efeito da primeira, pois todo filósofo filosofa desde um lugar referenciado, contextualizado, embora, muitas vezes, sua produção ganhe “corpo em determinados textos que em sua trama abstrata, conceitual e objetiva parecem apagar as marcas do homem que o produziu.”
O autor aponta a clássica distinção feita por outro filósofo alemão, Immanuel Kant (1724-1804), “que pressupõe a distinção entre filosofar como atividade e filosofia como seu produto ou resultado”, sendo a filosofia “as doutrinas, teorias, categorias ou conceitos” e o filosofar o modo como esse conhecimento insere-se “na própria vida do filósofo, seja como prática especializada, profissional ou acadêmica (…), seja fora da universidade ou da sala de aula, como acontece com o filosofar rueiro de Sócrates, o prático-político de Marx ou o mundano de Sartre” (Jean-Paul Sartre, filósofo francês, 1905-1980).
É pertinente, segundo Vázquez, ainda citando Kant, fazer a distinção “com a qual o acento se coloca, sobretudo, não na filosofia, mas no filosofar. O que, por sua vez implica pôr o acento na aspiração, finalidade ou intenção com que o sujeito – o filósofo – produz certo objeto ou exerce sua atividade”.
Nesse texto, o próprio Vázquez coloca-se como filósofo produtor de um conhecimento próprio, perguntando-se e assinalando “qual é a finalidade prática, vital, à qual ele pretendeu servir: transformar o mundo humano que, por injusto, não podemos nem devemos fazer nosso. (…) Por isso, diante das recentes lições da história e as incertas perspectivas que alimentam, cabe também perguntar por que empenhar-se nessa transformação e não deixar as coisas como estão? A pergunta provoca uma resposta que ultrapassa a dimensão política, a saber: porque esse mundo é injusto, e não se deve aceitar a injustiça. Trata-se de transformar o que é não só porque ainda não é, mas também porque deve ser. A política tem que impregnar-se de um conteúdo moral que impeça seja ela reduzida a uma ação instrumental.”
(Não fosse outra a intenção, caberia aqui fazer uma analogia com a realidade brasileira atual, quando vivemos sob os desmandos de um governo que pratica uma política “reduzida a uma ação instrumental” voltada para os interesses das elites e oligarquias financeiras nacionais e internacionais. Mas esta seria uma outra história, embora tudo esteja relacionado, de alguma forma.)
Nota-se que Adolfo Vázquez, como dito no início, produziu e praticou filosofia também desde sua experiência de perseguido e exilado político, engajando-se na luta pela transformação da realidade sócio-política-econômica em que viveu, tanto na Espanha/Europa como no México/América Latina-Caribe** estando essa última, à época, sob o jugo do imperialismo e da exploração das grandes potências mundiais, especialmente os EUA.
Como consideração final do texto, o referido autor diz que: “Na verdade, toda filosofia tem efeitos práticos, ainda que sua finalidade, ao produzi-la, tenha sido meramente teórica”, citando novamente Marx, cujo distintivo “é por em primeiro plano essa atividade prática, vital, que, como temos salientado, suporta o imperativo moral de transformar o mundo que, para o filósofo, converte-se no próprio imperativo de pôr seu filosofar em concordância com essa finalidade”.
Queremos aqui ressaltar, em nossa mundivisão e em nosso modo de ver a filosofia, a importância de estudarmos, relermos, reinterpretarmos toda a produção filosófica realizada até então, como também a de produzirmos outras filosofias, que nasçam desde uma determinada realidade e que provoquem posturas filosóficas, filosofares que contribuam para as necessárias transformações do mundo em que vivemos, a começar, e paralelamente, pelas próprias transformações que, porventura, cada pessoa busca para sua vida, para o seu cotidiano.
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*Edição da Civilização Brasileira, 2002, p. 541-549.
**À época, a América Latina vivia sob o jugo do imperialismo e da exploração das grandes potências mundiais, especialmente os EUA. Passado o tempo e destarte todas as lutas pela independência e autonomia enquanto Pátria Grande e bloco de importância geo-político-econômico estratégico mundialmente, podemos dizer que a exploração e a dominação continuam, interna e externamente. Por isso, em nosso entendimento, faz-se necessário um filosofar que pense e atue na direção de um pensamento e de uma prática autônomos e que contribuam para firmarmos modos próprios de ser e estar no mundo enquanto povo latino-americano e caribenho.
Paulo Roberto Grandisolli