Filosofia Clínica-FC: Conversação entre os Tópicos 10: Estruturação de Raciocínio e 16: Significado*

Para começar essa conversação, ou melhor, para continuá-la, pois parece-nos que toda vez que iniciamos uma conversa, o fazemos com base em “n” outras conversas já tidas antes, em “n” outros conhecimentos e saberes que vamos acumulando ao longo e ao largo de nossas experiências e vivências.

E, especialmente em FC, isso tem um significado especial, por tratar-se de um pensar e um fazer filosóficos que tem na história, na historicidade uma de suas bases norteadoras, seja na construção de conhecimentos e saberes, de conceitos, seja na prática clínica e/ou nas consultorias organizacionais.

Assim vamos significando e resignificando o mundo que, como já vimos, é também “resultado” de nossa “vontade e representação”, seja no âmbito das nossas singularidades, particularidades e/ou generalidades de relações.

Dessa forma, elaboramos nosso pensamento, o qual se estrutura à medida que pensamos a nós mesmos e ao mundo circundante, do qual somos e fazemos parte. E vale lembrar que pensar, aqui, envolve não somente um processo mental, puramente racional, mas engloba todo o nosso ser, onde sentimentos, mentalizações, meditações, sensações, emoções, racionalidades, intuições formam o conjunto de nossos conhecimentos e saberes, formam o conjunto do que somos, do que fazemos e “moldam” a forma como nos expressamos e os “meios”, os “modos” que utilizamos para nos expressar (T15-Semiose e T21-Expressividade).

Nesse universo, uma das formas de nos expressarmos, é a linguagem, especificamente o verbo, a fala, quando passamos a narrar nossa historicidade, no caso da clínica filosófica enquanto um processo terapêutico.2

Agora sim, podemos falar especificamente do T10-Estruturação de Raciocínio relacionando-o diretamente ao T16-Significado.

Como dissemos acima, é do conjunto de nossas experiências, vivências, estudos, pesquisas, práticas que vamos elaborando nosso pensamento. E é justamente isso que o Filósofo Clínico vai observar no T10: como se estrutura o pensamento do Partilhante.

Pensamos não se tratar aqui de “classificar” tão somente se o raciocínio da pessoa é bem ou mal estruturado, considerando apenas um logicismo ou um formalismo3. Trata-se de apreender e compreender, com base nos jogos de linguagem utilizados, a forma como os termos e os conceitos vão sendo utilizados e dispostos no discurso, verificando a relação e o sentido entre eles na malha intelectiva do Partilhante.

E aqui, unindo a história vivida e o conhecimento construído ao longo das Histórias das Filosofias, a lógica formal, o empirismo, a analítica de linguagem, a hermenêutica, a epistemologia contribuem para embasar a “ação” do Filósofo Clínico.4 Tendo sempre em mente que o raciocínio dá-se num contexto específico, afetado pelas circunstâncias e é então que ele tem ou ganha significados.

Podemos tomar como exemplos pessoas que com singularidades existenciais e/ou situações bastante específicas, com grandes sofrimentos, que estão sob efeito ou façam uso de drogas, lícitas ou não, em estados de profunda tristeza ou alegria efusiva etc que podem afetar seu estado mental e sua estruturação de raciocínio5. Mas, mesmo assim, é possível colher daí “logicidades”, ou melhor, sentidos e significados, pois a FC não se atém a um único tópico da Estrutura de Pensamento-EP isoladamente, mas da “conversação” entre todos eles. A plasticidade da existência de cada pessoa e a plasticidade de seu pensamento, usando de uma certa redundância, estão em constante movimento, fazendo-se, nunca acabando-se ou concluindo-se.

Nesse sentido, haveria o risco de o Filósofo clínico julgar um determinado raciocínio como bem estruturado e outro como mal estruturado, mesmo pautando-se na lógica formal? Seria possível um processo clínico-terapêutico totalmente isento de julgamentos prévios?

O que é “bem” ou “mal” estruturado? Ou mesmo, o que é “estruturado”? A vida dá voltas, e em determinados momentos e/ou em determinadas situações e circunstâncias podemos estar com o pensamento mais claro ou mais nebuloso. Tudo depende… E é por isso que o terapeuta, mesmo com referências prévias, como as da lógica formal, por exemplo, deverá ater-se ao discurso do partilhante inserido em seus contextos, em suas circunstâncias, para estar o mais próximo possível da significação daquele discurso, daquela linguagem que a pessoa compartilha com ele.

Dissemos acima que, afetados pelas circunstâncias, é então que nosso raciocínio, que a forma como pensamos e nos expressamos tem ou ganha significados. Por isso não tem como falar de Estruturação de Raciocínio (T10) sem falar e relacioná-lo com o Significado (T16). Afinal, não é justamente o significado do que o Partilhante traz que o Filósofo Clínico procura compreender?!…

Isso posto, passemos para o T16 – Significado.

O dicionário diz que significado é:

1.relação de reconhecimento, de apreço; valor, importância, significação, significância; 2. m.q. significação (‘representação mental’); 3.Rubrica: linguística.na terminologia saussuriana, a face do signo linguístico que corresponde ao conceito; conteúdo; etimologia: latim: significatus, significare, ‘dar a entender por sinais, mostrar, significar (Houaiss eletrônico 2009)

Aquilo que dizemos, falamos, os termos e conceitos que usamos têm um significado, pois simbolizam tudo o que vimos aprendendo e apreendendo ao longo de nossas existências.

Vale atentar aqui para a importância de que “temos de nos valer, em algumas situações, de outros recursos epistemológicos, além dos sentidos e da razão, para tentar entender o significado contido nas “coisas”; a intuição, a reflexão, a imaginação e o próprio silêncio assumem importância, auxiliando-nos a identificar valores dificilmente tangíveis instantânea e racionalmente: há muitas maneiras de se entender as coisas que nos chegam, há muitos modos de cada um de nós compreendermos os sinais que nos são emitidos, os signos” (PARDAL, 2001). Aqui também podemos estabelecer relação com outro tópico, o T15-Semiose, “o que o partilhante usa para expressar-se? Fala, gestos, expressões faciais, postura corporal, música, dança, literatura, poesia, desenho, pintura, escultura, etc… (AIUB, 2004)

De qualquer modo, nossa linguagem não deixa de ser uma representação mental que tem um sentido simbólico, através do qual buscamos representar o mundo6, relacionando-o com os termos e conceitos que utilizamos. “Significado é, justamente, a pesquisa de como o partilhante significa os conteúdos que expressa pelos diferentes dados de Semiose” (AIUB, 2004). “Não esquecendo que, conforme declara Wittgenstein: “a linguagem é um labirinto de caminhos”. O significado é aquela parte do símbolo que se dá a conhecer através da percepção, enquanto representação de uma ideia no intelecto” (PARDAL, 2001).

Da mesma forma como a vida, a existência não é conclusiva, não é um “poema em linha reta”, como diria Fernando Pessoa, o significado também não é algo acabado, mas antes um processo do pensamento que, como já dito, na medida em que é afetado vai dando sentido às coisas, ao mundo.

Diante do exposto, podemos considerar que ao Filósofo Clínico, através da interseção que vai estabelecendo com o Partilhante, cabe pesquisar o significado presente na linguagem utilizada por ele, o significado que ele atribui ao que diz, ao que expressa7, para, então, elaborar o processo terapêutico-clínico, este também em constante movimento e passível de mudanças.

Nos jogos de linguagem, nas representações de mundo, nos Princípios de Verdade (T26) compartilhados entre Partilhante e Filósofo Clínico é que vão clarificando-se as linguagens, as ideias, os raciocínios e os significados que atribuímos e atribuiremos à existência.

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*Paulo Roberto Grandisolli – Filósofo Clínico – Recanto da Filosofia Clínica – São Paulo/SP – 140818

1 Uma referência : Convite à Filosofia, de M. Chaui. Ática, SP, 1994, cap. 5, pp. 136-151.
2 Observamos que o verbo, a fala é uma das formas de expressão, mas não a única. E na FC, a/o terapeuta irá observar quais os principais modos de expressão a/a Partilhante tem como predominantes para poder “narrar” sua historicidade. O que tem a ver com o T15-Semiose.
3 Isso não quer dizer que se abre totalmente mão da lógica formal, pois sem o conhecimento desta não seria possível uma verificabilidade de “confusão” ou não no discurso, podendo, inclusive, haver como confutá-lo e auxiliar o Partilhante a “clarear” suas ideias, seus pensamentos, se necessário.
4 Poderemos nos referir como contribuição para pensar esses tópicos Aristóteles, Vico, Descartes, Kant, Rousseau, Wittgenstein, Ricoeur, Fromm, Foucault, Chaui entre outros. Tiburi, em Filosofia Prática – Ética, Vida Cotidiana, Vida Virtual, Record, RJ, faz algumas referências à linguagem.
5 Nesses casos cabem pesquisas que apontem quais caminhos tomar. Mas referente a isso teríamos assuntos para outras tantas conversações. Vale deixar registrada essa observação.
6 Indicamos Erich Fromm, em A Linguagem Esquecida – Uma Introdução ao Entendimento dos Sonhos, Contos de Fadas e Mitos, 8ª edição, Zahar Editores, RJ, 1983: II. A Natureza da Linguagem Simbólica, pp. 19-27.
7 Como no pensar e no agir “quase tudo te a ver com tudo”, não teríamos como deixar de falar de outro tópico, o 21. Expressividade, que é “O quanto do que sou e do que penso expresso ao outro? De que maneira expresso? (AIUB 2004).

Solidão, uma questão filosófica

O dicionário define Solidão como sendo “estado de quem se acha ou se sente desacompanhado ou só; sensação ou situação de quem vive afastado do mundo ou isolado em meio a um grupo social; estado ou condição de duas pessoas (ger. casadas) que, não obstante, vivem juntas, não se entendem nem se comunicam uma com a outra; (latim solitudo/inis), solidão, retiro, desamparo, abandono” (Houaiss, 2009).
Parece certo que a solidão, o saber-se e o sentir-se só é próprio da condição humana e manifesta-se tanto individualmente quanto na coletividade, na sociedade. O indivíduo sabe-se e sente-se só. Mas uma sociedade, um povo pode também ter essa sensação e consciência de solidão diante de contextos sociais, políticos, econômicos, culturais que o levem a perceber-se só. Por exemplo, na ausência de políticas sociais que promovam a inclusão e diante do descaso e dos desmandos das elites e do governo, as classes menos favorecidas e desprivilegiadas, podem sentir-se e saber-se abandonadas, solitárias. E estas mesmas causas, que atingem a sociedade como um todo, afetam cada pessoa em particular, cada uma a seu modo com mais ou menos profundidade. Um indivíduo que trabalha arduamente, recebendo uma remuneração não condizente às suas necessidades básicas e em condições inadequadas, sente-se desvalorizado e desamparado por não conseguir ver saídas. Pior ainda quando é bombardeado pelo tipo de “pensamento único” e propaganda que tenta lhe incutir a ideia de que basta esforçar-se, acreditar e “correr atrás de seus sonhos” para conseguir galgar os degraus da fama e da prosperidade. Discurso e prática, inclusive, de igrejas e seus pregoeiros. E se não o consegue é porque não se esforçou o suficiente, não teve o “mérito” para tal. Qualquer semelhança com o que vivemos em nosso país presentemente, não é mera coincidência.
Outro exemplo nos dá Octavio Paz, no livro O Labirinto da Solidão, no qual apresenta um retrato dos mexicanos, dizendo ser a solidão uma das características desse povo, lembrando os aspectos geográficos-climáticos que influenciam os estados de ânimo; fazendo uma releitura da história, desde seus primórdios, quando os vários povos autóctones tinham suas culturas próprias e uma consciência mítica da realidade; passando pela devastação promovida pela invasão e colonização, quando foi forçado a mascarar-se e assumir outras identidades; pela revolução de 1910; pelas ditaduras político-militares até a então atualidade (o livro é de 1950), vivendo nessa “dialética da solidão” de ser e não ser, de estar e não estar, de pertencer e não pertencer ao seu próprio lugar e ao mundo, especialmente por ter assimilado, durante todo o período colonizador e ditatorial, que era um país e um povo menor, sem cultura, tendo os modelos europeu-espanhol e estadunidense como os corretos, os melhores. E nesse movimento dialético busca (re)construir sua identidade própria enquanto povo.
Sob as várias visões, sentidos e significados dados, repetimos, a solidão é inerente à condição humana. Dela tratou e trata vasta obra literária, como o romance do colombiano Gabriel Garcia Márquez, Cem Anos de Solidão. Na poesia, sabemos, é tema recorrente, a exemplo da obra Solidão Compartilhada, da poeta pernambucana Maria do Carmo Barreto Campello de Melo, donde destacamos o poema Aviso. Ou na música, como A Solidão é Fera, de Alceu Valença.
Por tratar-se de algo característico da existência humana, a solidão é considerada uma questão filosófica. E filosoficamente pode ser pensada e cuidada. O Dicionário de Filosofia conceitua solidão da seguinte forma: “O isolamento dos outros ou a busca de uma melhor comunicação. No primeiro sentido a S. é a situação do sábio que, na sua figura tradicional, é perfeitamente autárquico e por isso isolado em sua perfeição (v. SAPIENTE). Fora desde ideal, o isolamento é um fato patológico: é a impossibilidade da comunicação que se liga a todas as formas de loucura. Em sentido próprio, contudo, a S. não é isolamento mas antes a busca de formas diferentes de comunicação” (Abbagnano, 1970). Daí vemos que faz-se uma distinção entre solidão e isolamento, sendo a primeira algo necessário e positivo, i. é, a pessoa retira-se, volta-se para si mesma, refletindo sobre seus próprios pensamentos e seu modo de ser e estar no mundo, visando o crescimento humano, a sabedoria; e o segundo, como algo negativo, que faz com que nos fechemos e nos isolemos, perdendo a capacidade de comunicação até conosco mesmos.
Mas convencionou-se, em nossa cultura ocidental, e como destacado no início desse texto, dar ao termo solidão esse significado/sentido negativo, ao menos na grande maioria das vezes. O que não quer dizer que não possamos ressignificá-lo. Assim sendo, como poderíamos tratar, cuidar filosoficamente dessa questão?
No texto de Octavio Paz, bem como na poesia de Maria do Carmo, vemos apontados caminhos: Paz propõe uma reflexão crítica do ser mexicano, tendo como base sua história, levando-o à ação e à libertação e a afirmar-se enquanto povo. Maria do Carmo sugere que, embora não se possa repartir nem dividir as solidões, assumi-las e colocá-las lado a lado, pois o desamparo une as pessoas.
Podemos dizer que tanto num como noutro caso, essas são atitudes filosóficas. E aqui a Filosofia Clínica, atenta às singularidades de cada pessoa, assim como para a realidade de uma sociedade, de um povo, pode contribuir para que vivamos mais conscientes de nossa condição e capazes de enfrentar os desafios pessoais e coletivos que vivenciamos. Afinal, ela, a FC, atém-se à historicidade, donde busca-se elementos que situem as pessoas e as coletividades e as façam sentir-se localizadas existencialmente, apropriando-se de seus destinos e tornando-se capazes de interferir nos rumos de suas histórias pessoais e coletivas.
Paulo R. Grandisolli

Filosofia Clínica e alguns desafios ao cuidados de si e dos outros

Parece-me que a aposta, o desafio que toda história do pensamento deve suscitar, está precisamente em apreender o momento em que um fenômeno cultural, de dimensão determinada, pode efetivamente constituir, na história do pensamento, um momento decisivo no qual se acha comprometido até mesmo nosso modo de ser de sujeito moderno.” (Michel Foucault, A Hermenêutica do Sujeito, 2006, p. 13)

Ao abordar o cuidado de si, Foucault ressalta tratar-se de um fenômeno cultural que surge num determinado contexto e estende-se por um período também determinado caracterizando a filosofia antiga como “preceito de vida”, i. é, uma vida filosófica implica não somente o conhecimento de si, mas antes e principalmente o “cuidado de si”. Torna-se fundamental apreender, ou seja, “assimilar mentalmente, abarcar com profundidade, compreender, captar”, esse fenômeno para que se possa dimensionar sua importância e o seu impacto na história de vida das pessoas e da sociedade.
O cuidado de si, como fenômeno historicamente determinado, afetou o modo de pensar e o comportamento de gerações futuras, passando pelo início do cristianismo até o período moderno e, podemos dizer, continuando pela atualidade. Resta saber se esse fenômeno foi e está sendo devidamente apreendido.
Foram e são muitos os movimentos surgidos, especialmente quando da “virada do terceiro milênio” (lembrando que essa demarcação do tempo diz respeito à civilização ocidental-cristã), ressaltando a necessidade e a importância de as pessoas atentarem mais para o cuidado de si e para o cuidado com o meio em que vivem. Movimentos esses das mais diversas orientações ideológicas, políticas, espiritualistas, religiosas etc, o que não nos cabe discutir aqui, embora isso mereça um olhar crítico. Mas alguns questionamentos podem ser postos, tais como:
– Com o avanço vertiginoso do neoliberalismo, até que ponto as políticas dele derivadas, determinadas pelas grandes corporações agro-industriais-financeiras, p. ex., e acatadas pelos governos, fazendo uso dos grandes meios de comunicação, cooptam a ideia do “cuidado de si” para implementar e inculcar nas pessoas a ideologia de que se deve buscar esse “auto-cuidado” cada um por si, num excesso de zelo individualista, onde o mérito de cada pessoa determine quem são e serão os vitoriosos e os fracassados, gerando angústia e letargia naqueles que não conseguem alçar os degraus da fama e da riqueza por serem apontados e se acharem fracos e incapazes?
– O impacto das novas tecnologias e o acesso ou a falta de acesso a essas tecnologias: Como colocarmo-nos frente aos avanços científico-tecnológicos e repensarmos o cuidado de si nesse contexto, garantindo que cada pessoa, na sua singularidade, e a sociedade como um todo sejam respeitadas e tenham suas necessidades para o bem viver garantidas?
– Como posicionar-se dentro da natureza, pensando e agindo de modo que os outros seres viventes também sejam reconhecidos como “sujeitos” de direitos?
– Como pensar-praticar novas políticas e formas de participação nos rumos das sociedades condizentes com os desafios da contemporaneidade?
Essas questões e outras tantas que possam surgir visam enfocar o como esse fenômeno cultural surgido na Grécia antiga, iniciado e incentivado pelos filósofos de então, marcou a história do pensamento e da própria Filosofia, pois também foram e são vários os “movimentos filosóficos” que tomam o cuidado de si como uma orientação para a construção de teorias e práticas que visam ressaltar a ideia de um conhecimento filosófico condizente com modos de ser e estar no mundo.
Este é e continuará sendo um desafio para a Filosofia Clínica em particular, justamente por ser ela um saber e um método terapêutico que visa o cuidado para com a pessoa, considerando sua historicidade, contextualizada numa história maior, cujos acontecimentos interferem, ora com maior ora com menor intensidade, na vida de cada sujeito.
Compete também aos Filósofos Clínicos, que pesquisam e elaboram saberes-conhecimentos próprios da Filosofia Clínica, fazendo uso de todo o saber-conhecimento filosófico construído até agora, mas que principalmente colocam-se diante de seus partilhantes ouvindo atenta e respeitosamente suas histórias e caminhando com eles na busca de um viver mais atento e cuidadoso para consigo mesmos e para com o mundo, observar quais os fenômenos culturais, políticos, sociais têm um impacto maior na vida de cada um, das comunidades e da sociedade em geral, e que influenciam positiva e negativamente nos modos de pensar e ser das pessoas.
O cuidar do outro e o cuidar de si deve contemplar essas e tantas outras questões possíveis…
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Paulo Roberto Grandisolli

Outridades e Filosofia Clínica

OUTRIDADE: OUTRO/A + IDA + IDADE
A OUTRA pessoa que é minha igual, mas que é, principalmente, ao mesmo e no seu próprio tempo e ritmo, diferente de mim.
A OUTRA pessoa que é IDA, i. é, que vem, que vai, que é movimento, que tem o direito e quer construir seu próprio caminho.
A OUTRA pessoa que tem sua IDADE, i. é, que tem seu tempo, seu ritmo, seu compasso próprio.
Eu e o(s) outro(s). Eu diante do(s) outro(s). Eu ao lado do(s) outro(s). Eu adiante do(s) outro(s). Eu na contramão do(s) outro(s). Eu acima e abaixo do(s) outro(s). Eu com e sem o(s) outro(s). Eu dentro e fora do(s) outro(s). Eu que me aproximo e me afasto d(s) outro(s). Eu que desejo e repugno o(s) outro(s). Eu que sou outro(s). O(s) outro(s) que são eu. Eu igual e diferente do(s) outro(s)…
A(s) outra(s) pessoa(s). O(s) outro(s) homem(ns). A(s) outra(s) mulher(es). O(s) outro(s) animal(ais). As outras plantas. As outras espécies vivas. As outras metades das maçãs. As outras palavras. Os outros aromas. Os outros olhares. Os outros toques. As outras circunstâncias. Os outros sons. Os outros sentidos e sentires. As outras realidades. As outras etnias. As outras sociedades e culturas. Os outros tempos. As outras crenças e descrenças. Os outros lugares. As outras peles. As outras contingências. Os outros pelos. Os outros paladares. As outras relações. As outras geografias. Os outros gumes das facas. Os outros corpos. As outras ideologias. Os outros afetos e desafetos. Os outros espaços. As outras políticas. Os outros amores e dasamores. Os outros lados das mesmas moedas. Os outros assuntos. Os outros sexos e gêneros. As outras tecnologias. Os outros sonhos. As outras orientações sexuais. As outras mundivisões. Os outros mundos possíveis e impossíveis…
O “eu profundo e os outros eus” de Fernando Pessoa. O eu que é “vária” de Cecília Meireles. “O inferno são os outros” de Sartre. A outro como alteridade de Martim Buber. O outro como lucro: mão-de-obra, força de trabalho, objeto exploração e de prazer no mercado do sexo. O outro como objeto de estudo para as ciências. O outro como ensinante e aprendiz de Cora Coralina. A outra face dos Evangelhos…
E o rol de outridades vai ao infinito, mesmo diante das limitações de meu e de nosso modo sentir, pensar, aprender, entender, falar, de expressar enfim.
Tudo assim, sem agrupar essas e tantas outridades possíveis. Pois tudo tem a ver com tudo. Eu sou e nós somos a(s) parte(s) e o(s) todo(s). Não tem como dissociar corpos, gastronomias, políticas, geografias, sexos etc e tal. Até podemos fazê-lo por questões de métodos, didáticas, ideologias, interesses, poderes. Mas, na vida, isso não é possível. Não somos seres divididos. Em tudo sou e somos interdependentes.
Às vezes e quase sempre essas outridades e singularidades dos outros nos interpelam e não nos dizem nada; nos encantam e nos desencantam; nos desafiam e nos apatizam; nos curam e nos ferem. Mas nunca ou quase nunca nos deixem imunes. Acredito que não tenho como me esquivar diante dos outros. Contraditoriamente e ambiguamente eu sou eles e eles são eu. Ao mesmo tempo que singulares, iguais e diferentes.
E admitindo, querendo ou não, sem os outros, sem as diferenças, eu e os outros não teríamos as referências que nos possibilitam pautar a nossa existência. Nós olhamos e somos olhados. Pensamos e somos pensados. Nos construímos e somos construídos. Vivemos e somos vividos. Como diz o jargão popular moderno: tudo junto e misturado.
Diante desses(as) tantos(as) outros(as), quem sou eu? Quem é/sâo o(s) outro(s) e a(s) outra(s). É essa indagação que as filosofias, ao longo da(s) história(s), fizeram e continuarão a fazer. Sim, continuarão, pois eu, os outros e as outras somos processo, somos movimento. Nunca serei, nunca seremos os mesmos e as mesmas sempre. Somos caminho. Somos construção.
Parodiando o poeta: pela longa estrada eu vou, nós vamos; estrada eu sou, nós somos…
Penso que em todo o dito até aqui, está a Filosofia Clínica enquanto terapêutica existencial, enquanto terapêutica da vida. Deverão estar imersos em seus eus e nas outridades, como terapeutas, o Filósofo Clínico e a Filósofa Clínica. Supõe serem pessoas sensíveis, que têm ciência de ser um eu diante de outros eus. De ser singularidades diante de outras singularidades. De ser diferentes e ser iguais. E, por isso, buscarão colocar-se perante as outras pessoas para contribuir, para trilhar com elas caminhos que as levem a entender-se e a viver melhor com as suas igualdades e as suas diferenças, com as igualdades e as diferenças das outras pessoas, com as certezas e as dúvidas, com as perguntas com respostas e as perguntas sem respostas que, penso, todos e todas temos. A viver de forma mais serena com os vários eus que as habitam e com todas as outridades com quem convivem e se relacionam. E respeitando “a dor e a delícia” de cada pessoa ser quem é e construir o que quer ser.
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Paulo R. Grandisolli

Filosofia Clínica e o Feminismo

Lendo a obra de Ivone Gebara, Filosofia Feminista – Uma brevíssima introdução (2017), comecei a pensar, com base no que a autora diz acerca de uma filosofia feminista, se a Filosofia Clínica, tanto em sua concepção como em seu modo de pensar e fazer filosofia, também não seria uma “filosofia feminista”. Mesmo porque, tanto a palavra “filosofia” como a palavra “clínica” são substantivos femininos. E até porque, em sua origem, a Filosofia é considerada a mãe de todas as outras áreas do saber.
A autora afirma que “a filosofia feminista surge quando nós, mulheres tomamos consciência de que também nós somos convidadas à mesa do pensamento, e temos todas as possibilidades de pensar a vida com maestria e sabedoria. Afinal não somos nós que arrumamos a mesa e preparamos a comida? Por isso não desprezemos o convite que a história de hoje nos faz a todas nós: ousar pensar a vida e vivê-la podendo dizer com dor e amor: eis-me aqui”.
Esse “eis-me-aqui”, penso, também é a proposta da Filosofia Clínica, pois ao colocar-se frente a frente com a pessoa, de acordo com sua historicidade e com as dores e as alegrias do cotidiano, buscará, junto dela, ajudá-la a pensar a si mesma, a vida, ao mundo de seu jeito próprio, desengessado pelos padrões impostos. E mesmo que faça uso do conhecimento filosófico construído ao longo da história, procurará abordar esse saber e traduzi-lo de acordo com a singularidade de cada um, de cada uma. Não será a vida que se adaptará a uma ou mais teoria filosófica, mas o contrário: o que esse conhecimento construído pode oferecer para que essa pessoa se conheça melhor e se municie de saber para criar e recriar sua identidade própria e afirmar seu modo de ser e estar no mundo.
Gebara visa, em meu entender, despertar e reforçar nas mulheres essa sua capacidade de sentir, pensar, entender, dizer, expressar a vida desde aquilo que lhes é próprio, não no sentido de que esse “lhes é próprio” já tenha sido determinado pela natureza ou por interpretações que delas fizeram – geralmente feita por homens, mas desde como elas mesmas se sentem, se veem e se mostram para si mesmas e para o mundo.
Assim também a Filosofia Clínica quer contribuir para que as pessoas assumam-se nas suas singularidades, não ficando presas aos padrões e aos pré-juízos que se constroem por terceiros e que se estabelecem enquanto convenções e conveniências de uma sociedade marcada pelos preconceitos, pelos machismos, pelos fascismos e toda ordem de desmandos que buscam enquadrar a pessoa de acordo com o que é considerado “bom” para manutenção da “ordem” e do status quo.
A autora reforça que compete às mulheres que o “pensar filosoficamente a vida, procurando as razões das muitas coisas que vivemos, é de certa forma se retirar das atividades comuns para assumir de forma específica a atividade de pensar, compreender, relacionar, buscar dados e escrever”, admitindo sempre “o limite de nossas percepções e de nossos pensamentos”, mas ousando fazê-lo por si mesmas.
E continua: “não há verdades feitas a serem ensinadas, mas caminhos desde os quais há que aprender a viver na insegurança. Por isso é necessário voltar à trama da vida e acolher a sua constante mobilidade como aprendizado coletivo”.
Igualmente em Filosofia Clínica, filósofo clínico e partilhante buscarão a construção compartilhada de saberes que levem a uma nova atitude perante a vida individual e coletiva.
“Narrar a história dos outros é um enorme exercício de poder sobre eles e elas. É reduzi-los à nossa visão e narrativa”. Por isso, são as mulheres que deverão continuar narrando as suas próprias histórias e não mais admitirem que essas histórias que lhe são próprias, embora partes de uma história maior, sejam narradas por outros, na sua grande maioria homens, que as colocaram e colocam como personagens passivas e submissas, destinadas a reproduzir modelos viciados e opressores de mentes e corpos. É a partir de seus próprios corpos, enquanto algo que lhes é próprio e singular, mas também enquanto afirmação social e política, que essa nova filosofia deve ser construída.
Mais uma vez aqui, a Filosofia Clínica aproxima-se da filosofia feminista, pois o terapeuta jamais deverá narrar a história da pessoa com base em suas interpretações, mas proporcionar à pessoa que ela mesma seja a narradora de sua história, com base no que sente, pensa, entende de si mesma e do mundo. E deverá ter uma escuta atenta à literalidade do que lhe é dito, para assim iniciar o processo de entendimento do modo de ser e estar da pessoa.
Pode ser pura elucubração essa minha tentativa de aproximação da Filosofia Clínica de uma Filosofia Feminista, melhor dizendo, das Filosofias Clínicas e das Filosofias Feministas. Mas vejo que ambas buscam olhar de um modo diferente para a pessoa e para o mundo, resgatando aquilo que deu início ao filosofar, que é essa capacidade de espanto, de angústia, de questionamento frente às coisas da vida e ao mundo.
Sim, a Filosofia Clínica pode ter essa postura feminista também enquanto desafio na construção de um novo filosofar, mesmo porque ao colocar-se frente a frente com as pessoas ou grupos ou organizações, o/a terapeuta terá que ter esse olhar singular para aquela singularidade diante da qual se coloca, seja ela de que gênero for, masculino, feminino ou tudo junto e misturado, assim como é ou deveria ser a vida. O mundo multifacetado exigirá de nós sentires, pensares, agires que nos possibilitem respirar melhor os ares que nos perpassam os corpos individuais e coletivos, buscando mudanças de ares numa sociedade e num mundo onde imperam o poder e a força bruta e os machismos de toda ordem que ainda teimam em dominar mentes e corpos.
Mas, como vem mostrando o movimento feminista, mentes e corpos não podem ser subjugados para sempre. O desejo de liberdade de pensamento e ação é mais forte.
“Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria
Mas é preciso ter manha
É preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida”.
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Paulo R. Grandisolli

É POSSÍVEL MENSURAR O AMOR? – Exercícios filosófico-sentimentais…

“Faça tudo para que, quando estiver prestes a morrer, não se arrependa por ter amado pouco.” (Chiara Lubich, 1920-2008)
Lendo essa frase numa destas folhinhas-calendário vêm-me uma série de questionamentos.
Assumo, de antemão, que apenas a li desta maneira, solta, sem conhecer se essa opinião faz parte de um texto maior, de qual texto, de que momento ou circunstância o mesmo foi escrito ou verbalizado.
E mesmo conhecendo um pouco da autora, se é que foi ela mesma que o disse (tantas palavras/pensamentos são atribuídos a tanta gente sem citação de fonte ou comprovação…) e sabendo de sua confissão e prática religiosa cristã/católica, mesmo assim isso daria motivos para não me atrever a dar uma opinião, pois correria o risco de, desconhecendo o contexto, fazer juízo de valor sobre o dito e sobre quem o diz.
No entanto, vou me arriscar…
E começo por perguntas tais como:
O que seria o amor? O que seria o desamor? De que tipo de amor se fala? Quem ama? Quem é amado? O que se ama? De que forma se ama? Quais as formas do amor? O que é arrepender-se? O que é não arrepender-se? Arrepender-se do que? O que é a morte? O que é estar prestes a morrer? Se for o caso de arrependimento, por que só fazê-lo quando se está prestes a morrer? O que é ter amado pouco? O que é ter amado muito? É possível mensurar o amor? Assim como qualquer outro sentimento?
Tendo essas questões em mim é que me atrevo a discorrer um pouco sobre assunto. Isso porque, como ser questionante e, como diria Clarice Lispector, “eu sou uma pergunta”, não posso e não consigo ficar quieto comigo mesmo diante de tais “frases de efeito”, como tantas que vejo proliferar por aí, especialmente hoje com as redes sociais (facebook, instagram, watsapp etc…) nas quais, a todo momento, hora, dia, semana, mês se deseja a felicidade (feliz segunda, terça, quarta… feliz isso ou aquilo…) e te amo daqui e de acolá… e por aí vai… Isso tudo me incomoda bastante e dá-me a impressão de que, por fazermos uso exagerado de tais “mecanismos”, o fazemos justamente porque nos falta aquilo que exacerbadamente desejamos uns aos outros. Aliás, isso já é “comprovado” pelas teorias psi: amamos aquilo que nos falta.
E, principalmente em tempos sombrios como os que vivemos, onde os valores são invertidos especialmente por aqueles que determinam a ordem estabelecida, ou seja, os políticos e governos de plantão, sempre a serviço das elites financeiras que os mantém, onde as oportunidades parecem cada vez mais escapar da história da grande maioria dos mortais, parece crescer vertiginosamente esse tipo de comportamento, reflexo de um sentir e de um pensar que, na realidade, são pseudo pensamentos, pois buscam numa realidade “ilógica” argumentos para “racionalizar” e mensurar, nesse caso, a capacidade de sentir e os sentimentos das pessoas. Aliás, controlar os corpos e os sentimentos é fundamental para manter o status quo, a (dês)ordem dominante. “Sorria, você está sendo filmado”, quer dizer, “sorria, você está sendo vigiado”. Em Vigiar e Punir, Foucault já apontava para isso. E seria arriscado dizer que hoje, além dos mecanismos tradicionais de vigilância, as redes sociais são os panópticos modernos e estaríamos nós confinados em grandes zoológicos, mesmo quando dentro de nossas casas? Disso tudo é desafiante libertar-se. Isso se se quiser a liberdade como valor maior. Quando se ama a liberdade, podemos assim dizer.
O amor, o desamor, que tipo de amor, quem ama, quem é amado, como se ama, de que forma se ama, o arrependimento, o arrepender-se ou não, a morte, o estar prestes a morrer, o pouco, o muito… tudo depende de cada experiência de vida, da singularidade de cada pessoa, da história que se viveu e se vive, das relações que estabelece ou não, daquilo que é ou não importante em sua vida, da liberdade que se busca e se conquista. Não dá para enquadrar toda e qualquer pessoa num dito como o mencionado acima e daí concluir que tal pessoa, estando prestes a morrer, que é o corte pelo qual passaremos, tenha amado muito ou pouco. As histórias de cada humano ser são muito mais complexas do que podemos supor ou imaginar. Nada na vida é simples, principalmente em se tratando de formas de sentir.
Nosso sentimento para conosco mesmos, para com o mundo, para com tudo o que nele existe, para com as pessoas em particular, suponho, é “algo” de muito profundo e multifacetado, a depender, sempre, dos “estados” em que nos encontramos e das diversas relações estabelecidas ou não, das circunstâncias, dos lugares, dos tempos, dos diversos assuntos, das diversas questões com as quais nos deparamos. Somos um constante processo, no qual vamos aprendendo amores e dasamores.
Como diria Octávio Paz (1914-1998), em seu texto Máscaras Mexicanas: “O amor é uma tentativa de penetrar em outro ser, mas só pode ser realizado sob a condição de que a entrega seja mútua” (O Labirinto da Solidão, 1984, p. 41). E isso, penso eu, deve valer para toda forma de amor. Como canta o poeta, “toda forma de amor vale a pena, toda forma de amor vale amar”.
E caberá a cada pessoa dispor-se a essa entrega. Na vida, e no amor, quase sempre saltamos no escuro. Estando ou não prestes a morrer. E não há medidas…
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Paulo Roberto Grandisolli

A filosofia e o filosofar

O filósofo espanhol Adolfo Sánchez Vázquez (1915-2011), que viveu exilado no México devido à perseguição política da ditadura do General Francisco Franco Bahamonde na Espanha (1939-1975), similar à ditadura militar brasileira (1962-1985), guardadas as devidas proporções, defende uma filosofia engajada, isto é, se a produção e a prática da filosofia, pautada na concepção de Karl Marx, filósofo alemão (1818-1883) não contribuir para transformar o mundo, pode tornar-se, a Filosofia, ela mesma, mera interpretação.
Em sua obra Filosofia e Circunstâncias*, no Epílogo, Que significa filosofar?, Vázquez ressalta a necessidade e importância de distinguir a produção filosófica e a prática do filósofo, sendo esta última efeito da primeira, pois todo filósofo filosofa desde um lugar referenciado, contextualizado, embora, muitas vezes, sua produção ganhe “corpo em determinados textos que em sua trama abstrata, conceitual e objetiva parecem apagar as marcas do homem que o produziu.”
O autor aponta a clássica distinção feita por outro filósofo alemão, Immanuel Kant (1724-1804), “que pressupõe a distinção entre filosofar como atividade e filosofia como seu produto ou resultado”, sendo a filosofia “as doutrinas, teorias, categorias ou conceitos” e o filosofar o modo como esse conhecimento insere-se “na própria vida do filósofo, seja como prática especializada, profissional ou acadêmica (…), seja fora da universidade ou da sala de aula, como acontece com o filosofar rueiro de Sócrates, o prático-político de Marx ou o mundano de Sartre” (Jean-Paul Sartre, filósofo francês, 1905-1980).
É pertinente, segundo Vázquez, ainda citando Kant, fazer a distinção “com a qual o acento se coloca, sobretudo, não na filosofia, mas no filosofar. O que, por sua vez implica pôr o acento na aspiração, finalidade ou intenção com que o sujeito – o filósofo – produz certo objeto ou exerce sua atividade”.
Nesse texto, o próprio Vázquez coloca-se como filósofo produtor de um conhecimento próprio, perguntando-se e assinalando “qual é a finalidade prática, vital, à qual ele pretendeu servir: transformar o mundo humano que, por injusto, não podemos nem devemos fazer nosso. (…) Por isso, diante das recentes lições da história e as incertas perspectivas que alimentam, cabe também perguntar por que empenhar-se nessa transformação e não deixar as coisas como estão? A pergunta provoca uma resposta que ultrapassa a dimensão política, a saber: porque esse mundo é injusto, e não se deve aceitar a injustiça. Trata-se de transformar o que é não só porque ainda não é, mas também porque deve ser. A política tem que impregnar-se de um conteúdo moral que impeça seja ela reduzida a uma ação instrumental.”
(Não fosse outra a intenção, caberia aqui fazer uma analogia com a realidade brasileira atual, quando vivemos sob os desmandos de um governo que pratica uma política “reduzida a uma ação instrumental” voltada para os interesses das elites e oligarquias financeiras nacionais e internacionais. Mas esta seria uma outra história, embora tudo esteja relacionado, de alguma forma.)
Nota-se que Adolfo Vázquez, como dito no início, produziu e praticou filosofia também desde sua experiência de perseguido e exilado político, engajando-se na luta pela transformação da realidade sócio-política-econômica em que viveu, tanto na Espanha/Europa como no México/América Latina-Caribe** estando essa última, à época, sob o jugo do imperialismo e da exploração das grandes potências mundiais, especialmente os EUA.
Como consideração final do texto, o referido autor diz que: “Na verdade, toda filosofia tem efeitos práticos, ainda que sua finalidade, ao produzi-la, tenha sido meramente teórica”, citando novamente Marx, cujo distintivo “é por em primeiro plano essa atividade prática, vital, que, como temos salientado, suporta o imperativo moral de transformar o mundo que, para o filósofo, converte-se no próprio imperativo de pôr seu filosofar em concordância com essa finalidade”.
Queremos aqui ressaltar, em nossa mundivisão e em nosso modo de ver a filosofia, a importância de estudarmos, relermos, reinterpretarmos toda a produção filosófica realizada até então, como também a de produzirmos outras filosofias, que nasçam desde uma determinada realidade e que provoquem posturas filosóficas, filosofares que contribuam para as necessárias transformações do mundo em que vivemos, a começar, e paralelamente, pelas próprias transformações que, porventura, cada pessoa busca para sua vida, para o seu cotidiano.
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*Edição da Civilização Brasileira, 2002, p. 541-549.
**À época, a América Latina vivia sob o jugo do imperialismo e da exploração das grandes potências mundiais, especialmente os EUA. Passado o tempo e destarte todas as lutas pela independência e autonomia enquanto Pátria Grande e bloco de importância geo-político-econômico estratégico mundialmente, podemos dizer que a exploração e a dominação continuam, interna e externamente. Por isso, em nosso entendimento, faz-se necessário um filosofar que pense e atue na direção de um pensamento e de uma prática autônomos e que contribuam para firmarmos modos próprios de ser e estar no mundo enquanto povo latino-americano e caribenho.
Paulo Roberto Grandisolli

Filosofia Clínica, Auto-ajuda* e cuidado de si

Tem-me incomodado as constantes referências que ouço fazerem ou que eu mesmo faço à expressão auto-ajuda por aí afora. Por isso fui ao dicionário** buscar referência aos termos “autoajuda” (nos dicionários pós-acordo ortográfico já é grafado assim) e “ajuda”.
Autoajuda
substantivo feminino
1 prática que consiste em fazer uso dos próprios recursos mentais e morais para alcançar objetivos de ordem prática ou resolver dificuldades de âmbito psicológico
2 conjunto de informações, orientações, conselhos que visam possibilitar essa prática
Exs.: curso de a.
livro de a.
Ajuda
substantivo feminino
ação de auxiliar, de socorrer; assistência
Desse modo, se ajuda é essa tal de “ação de auxiliar, de socorrer; assistência” e autoajuda é “fazer uso dos próprios recursos mentais e morais para alcançar objetivos ou resolver dificuldades”, por que, então, as psicoterapias e a Filosofia Clínica não poderiam fazer uso desse termo, sendo que têm por objetivo ajudar as pessoas que procuram a terapia a auto-ajudarem-se elas mesmas, no enfrentamento das questões que trazem para a clínica?
Está certo que, talvez principalmente após a explosão e a exploração de inúmeras publicações, bem como a proliferação de cursos e “terapias” que vendem auto-ajuda, o termo passou a ser visto, por muitos, pejorativamente. E até concordo que determinadas ofertas do que se apresenta como tal devam ser questionadas, mesmo porque o mercado capitalista usa de toda e qualquer artimanha para lucrar, mesmo diante da dor e do sofrimento, da angústia e da tristeza das pessoas, da sociedade como um todo. E daí aquela derivação que muitos também usamos de “autor-ajuda”, dado o lucro que o mercado editorial e certos autores têm com esse tipo de produto.
Bem, mas meu incômodo, como disse no início, não é de nos apropriarmos do termo auto-ajuda, mas sim de o ressignificarmos, dando-lhe a direção apontada pelo dicionário. Através de nosso trabalho como terapeutas, como Filósofos Clínicos, deveríamos enfatizar que a terapia objetiva levar as pessoas a auto-ajudarem-se, a serem elas mesmas condutoras de suas vidas naquilo que o pensador francês, Michel Foulcault***, em sua obra Hermenêutica do Sujeito, ressaltou como o cuidado de si.
Nessa obra, o autor busca resgatar das tradições e das escolas filosóficas da Grécia antiga, como a epicurista, a estoica, a cínica****, por exemplo, o cuidado de si, que, para ele, ficou subjugado ao conhecimento de si. O conhece-te a si mesmo não pode sobrepor-se ao cuide-se de si mesmo. O cuidado de si é caminho para o auto-conhecimento e este auto-conhecimento só faz sentido se levar ao cuidado de si.
Faço uso aqui das palavras do Psicólogo Clínico Rafael Trindade: “a intenção de quem cuida de si é fazer emergir uma outra natureza, própria, não dada, e, portanto, originariamente ainda não conhecida”; “o cuidado de si conduz a um novo eu, uma nova relação consigo mesmo. Passamos da verticalidade para a horizontalidade”; “Cuida de ti mesmo, para ser capaz de enunciar de ti mesmo a verdade”.*****
Ao menos para mim, entendo que ninguém consegue ajudar-se sozinho: é na relação com os outros e através da intermediação dos outros que vamos nos auto-ajudando, nos auto-cuidando e nos auto-conhecendo. E, sempre em meu entendimento, a terapia filosófica tem essa grande responsabilidade como intermediadora, aquela que vai oferecer meios, sempre de acordo com a história de vida e o modo de pensar e ser da pessoa, para que ela mesma se auto-ajude, se auto-cuide, se auto-conheça e construa seus caminhos, busque e teça as suas verdades e as coloque diante de tantas outras verdades, com autonomia e abertura para a necessária relação e convivência consigo mesmo e com a coletividade.
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*Embora o novo acordo ortográfico estabeleça que a grafia correta, de então em diante, seja “autoajuda”, quis aplicar o uso anterior ao tal acordo, “auto-ajuda”, nesse caso, tão somente por uma razão estética de minha parte, por achar que fica mais bonito esse modo de grafar o termo no português brasileiro usado até então. Nem sempre precisamos nos submeter aos estrangeirismos, seja de Portugal, seja de onde for…
** Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 2009.3
***Filósofo francês (1926-1984)
****Epicurismo: doutrina do filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.); Estoicismo: doutrina fundada por Zenão de Cício (Grécia – 335-264 a.C.); Cinismo, doutrina fundada por Antístenes, filósofo grego (Grécia – 445-365 a.C.): embora cada uma com doutrina própria, todas praticavam a filosofia como um “estilo de vida”, como uma ética, um modo de pensar e ser diante do mundo. OBS.: Escola Cínica – não confundir com o termo “cínico” e a prática “cínica” corrupta e fascista que sempre marcaram e marcam determinadas políticas, determinados governos e determinados comportamentos individuais/sociais de outrora e de nossos dias.
*****Artigo “Foulcault – Conhecimento e cuidado de si”, in https://razaoinadequada.com/2016/11/27/foucault-conhecimento-e-cuidado-de-si/
Paulo R.Grandisolli

Filosofia Clínica e Literatura

Uma das fontes de conhecimento daquilo que se convencionou chamar “condição humana” é a literatura. E a Filosofia, sendo também uma literatura, está, desde seu início, buscando “dizer” a condição humana de seu jeito próprio. Mas não existe “a” Filosofia. Ela, a Filosofia, é vária. Enquanto conceito, podemos dizer que “a” Filosofia é aquela que, buscando uma leitura e tendo um olhar totalizante do mundo, vai fundo, às raízes das questões que se lhe colocam e entende tudo como um processo constante de desconstrução/construção de saberes, de modos de ser e estar no mundo”, utilizando-se, para isso, de método próprio. Mas assim como são várias as filosofias, várias são as literaturas, as leituras, os olhares, os modos de ser e estar no mundo.
E a Filosofia Clínica-FC não foge desses caminhos, pois também ela tem se tornado uma literatura, uma leitura, um olhar, um modo de ser e estar no mundo, na medida em que se constrói, não se dá por acabada. Se assim fosse, não seria Filosofia, não seria Clínica. Tudo é um processo.
Mas, justamente por ser Filosofia, justamente por ser Clínica, é que a FC sabe-se parte de um conjunto onde, nesse caso, a Literatura, ou melhor, as Literaturas, têm muito a dizer da “condição humana” e, por isso, a aproximação é vital, pois pode nos levar a repensar, a entender e levar a entender que o “devir”* acaba por tornar-se a própria “condição humana”, i. é, o humano, individual e coletivamente falando, é uma constante construção, processo. “Navegar é preciso, viver não é preciso”, como já diziam os antigos navegadores nos idos tempos das “invasões e conquistas” de “novos mundos”, frase que celebrizou-se na voz e na literatura de Fernando Pessoa**.
E já que falamos de FC e Literatura, aqui fazemos uso de um texto, parte da literatura de Gilles Deleuze***, de sua obra Crítica e Clínica****, “A literatura e a vida”, onde ele discorre sobre a literatura enquanto devir, enquanto permanente vir-a-ser, porque o escritor e sua literatura, por mais capazes que sejam, nunca terão dito tudo, nunca serão o que pretendem, sempre estarão e serão inacabados, assim como a vida.
No referido texto, fazendo uma abordagem das doenças, das neuroses do existir, Deleuze aponta o escritor e sua literatura como aquele que “interrompe o processo da doença”: “Por isso o escritor, enquanto tal, não é doente, mas antes médico, médico de si próprio. O mundo é o conjunto dos sintomas cuja doença se confunde com o homem. A literatura aparece, então, como um empreendimento de saúde: não que o escritor tenha, forçosamente, uma saúde de ferro (…). Do que viu e ouviu o escritor regressa com os olhos vermelhos, com os tímpanos perfurados. Qual saúde bastaria para libertar a vida em toda parte onde esteja aprisionada pelo homem e no homem, pelos organismos e gêneros, e no interior dele?”
Embora em FC não façamos uso de termos como doença, cura – o que não significa que não devamos abordá-los e desconstruí-los no contexto maior das historicidades diante das quais nos colocamos como Filósofos Clínicos, pensamos que essa concepção do escritor e da literatura apresentada por Deleuze se aproxima muito da FC. Enquanto concepção e prática filosófica, essa abordagem terapêutica existencial, constrói-se como aquela que ouve a narrativa, “ouve o texto” do partilhante e, fazendo uso da literatura filosófica, bem como de outras literaturas, mas, principalmente com sensibilidade, com cuidado, com conhecimento, com método próprio, irá contribuir para que o indivíduo, o grupo, a organização, “reescrevam seus próprios textos”, i. é, reelaborem seus modos de sentir, de pensar, de posicionar-se, de ser e de estar no mundo.
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*Devir: verbo intransitivo :1vir a ser; tornar-se, transformar-se, devenir; substantivo masculino Rubrica: filosofia. 2 fluxo permanente, movimento ininterrupto, atuante como uma lei geral do universo, que dissolve, cria e transforma todas as realidades existentes; devenir, vir a ser. – Dicionário eletônico Houais 2009.3
**Escritor e poeta português, 1888-1935.
***Filósofo francês, 1925-1955
****Editora 34, 2011, p. 11-17
Paulo Roberto Grandisolli
[FClínica/Inst Packter; Filosofia/UCMG; GSS-FSP/USP] filósofo clínico, professor, administrador serv saúde, consultor

Um possível exercício filosófico clínico do “Poema em linha reta”, de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

Uma possível introdução

É comum, nos cursos de Formação em Filosofia Clínica, recorrer a textos literários, aqui especificamente a poesia, para exercitar-se no método terapêutico a que a FC se propõe.

Acredito que esse seja também um ótimo e apaixonante exercício mesmo para Filósofos Clínicos já habilitados, entendendo a literatura como um excelente campo de desvelamento da “natureza” humana e das questões existenciais que a envolvem.

Sabendo que a construção do processo terapêutico em FC pauta-se na historicidade, na história de vida da pessoa, que denominamos partilhante, faz-se necessário, dentro das possibilidades, conhecer a história do autor abordado e/ou da(s) personagem(ns), nesse caso o autor do poema, a fim de daí também levantarmos os exames categoriais (assunto/relação/tempo/lugar/circunstância) que contribuirão para situar a pessoa e melhor apreender sua forma de ser/estar no mundo, na medida em que vão sendo observados os tópicos de sua Estrutura de PensamentoEP e os sub-modos informais de que faz uso, possibilitando um olhar mais atento, levando-o a uma reflexão mais elaborada da(s) questão(ões) que apresenta.

Obs.: neste “ensaio” faremos apenas o levantamento de alguns tópicos, ficando os sub-modos associados a estes para um futuro trabalho.



Um possível “retrato” de Álvaro de Campos-AC

Ao falar de AC, faz-se necessário, mesmo que já do conhecimento de muitos, lembrar de Fernando Pessoa-FP, escritor/poeta português (13/06/1888 – 30/11/1935) que, além de manifestar-se ao mundo através de seus escritos/poemas usando o seu próprio nome, também o fez através de seus heterônimos.

AC é um desses heterônimos, um dos “outros” de si mesmo, que teve seu nascimento provável aos 15/10/1890, vindo a falecer, possivelmente, na mesma data do falecimento de seu criador, 30/11/1935.

Para conhecer um pouco AC e de sua visão de mundo, pensamos que nada melhor do que fazer uso de um excerto de um de seus próprios poemas, Tabacaria, escrito em janeiro de 1928:

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.(…)”.


É bom termos claro que esta é apenas uma pequena amostra do que AC teria relatado de sua historicidade se, porventura, tivesse sendo acompanhado por um Filósofo Clínico. Isso porque, em FC, não é possível estabelecer, no processo clínico, uma interseção entre o terapeuta e o partilhante, se aquele não tiver um conhecimento mais detalhado da história de vida deste, feito as devidas divisões e enraizamentos e os exames categoriais que lhe darão suporte para o desenvolvimento da clínica.
Uma possível clínica filosófica de AC
Bem, suponhamos que AC, durante a clínica, tivesse apresentado o “Poema em linha reta” ao terapeuta:
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

–  o FC, já tendo dado os passos iniciais da clínica e avançado no levantamento da EP do partilhante e dos sub-modos informais de que este faz uso para lidar com suas questões,
– também fazendo uso dos sub-modos formais que considerasse mais de acordo com sua visão do modo de ser daquele, e também considerando este poema específico dentro do contexto maior de vida do mesmo,
– passasse a levantar alguns tópicos
– e assim procedesse:
Obs.: fazemos uso de versos “em bloco” e/ou referenciados para melhor visualizar os tópicos que destacamos, o que não exclui uma continuidade do trabalho, sabendo que em FC não há uma “conclusão”, mas um constante ir e vir no processo de conhecimento de si e do outro.
Tópico 1 – Como o mundo me parece: a visão e representação de mundo da pessoa, suas referências do mundo externo.
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!

Tópico 2 – O que acha de si mesmo: como a pessoa vê a si mesma.

Obs.: aqui o “O que acha de si mesmo” pode estar associado à “Singularidade existencial”, ao “Papel existencial”, aos “Valores”.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Tópico 5 – Pré-juízos: verdades a priori e subjetivas que a pessoa traz em sua “bagagem de ideias” e como isso determina suas escolhas.

Que tenho enrolado os pés publicamente no tapete das etiquetas
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Tópico 11 – Busca: metas, objetivos: para onde se direcionam as ideias.
Obs.: associação com “Axiologia” e “Pré-juízos”.
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Onde é que há gente no mundo?
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Tópico 12 – Paixão dominante: ideias recorrentes, que aparecem com frequência.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza
.

Tópico 18 – Axiologia: quais os valores importantes e sua importância no conjunto da EP do partilhante.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

…estou farto de semideuses.
Onde é que há gente no mundo?
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana

Tópico 19 – Singularidade existencial: modo de ser único; vivência dos valores próprios; características essenciais que constituem uma pessoa.
Obs.: associado ao “Papel existencial” e aos “Pré-juízos”; também a “Termos agendados no intelecto” (as expressões utilizadas e seus significados próprios).

Podemos observar na sequência de “eus” repetidos ao longo do poema, de modo especial a repetição do termo “vil”.
Tópico 22 – Papel existencial: aquilo que é nomeado como sendo seu papel.
Obs.: associado a “Pré-juízos” e à “Paixão dominante”.
Nas repetidas vezes que se diz “vil”

Obs. Geral: Em todo o poema pode-se também sugerir que há uma presença do tópico “Armadilha conceitual”, conjunto de conceitos a que a pessoa está presa, o que não significa que isso seja bom ou ruim, mas que podem ou não ser “quebrados”, a depender do peso, do papel que isso tenha em sua EP. O mesmo se daria para “Princípios de verdade”, que são verdades subjetivas e o modo e com quem são compartilhadas.
Uma possível consideração “final”
Como mencionado acima, não há uma conclusão, pois para a Filosofia e especificamente para a FC a pessoa está em constante construção de si mesma em sua interseção com o mundo e com as pessoas, demais seres, objetos que o compõem e acontecimentos que dele fazem parte. Por isso só nos é possível fazer considerações.
Bom esclarecer que alguns dos tópicos utilizados foram os que selecionamos para ilustrar o Curso de Introdução à FC que oferecemos presencial e on line pelo Recanto da Filosofia Clínica de São Paulo/SP. Isso deixa aberta a possibilidade de novas buscas e descobertas pautadas na historicidade de AC/FP que está implícita mas, principalmente, está para além desse único poema.
Ressaltamos que o termo “possível” utilizado nas partes deste trabalho foi proposital, no sentindo de que entendemos que a FC é um método terapêutico e de investigação não fechado em si mesmo que, embora rigoroso e pautado no conhecimento e na experiência da Filosofia e do filosofar, busca adequar-se ao universo de cada pessoa que procura a clínica e que também não está isento do olhar de cada Filósofo Clínico.
Que a literatura, especialmente a obra de AC/FP e a convivência com gente real e/ou imaginária continuem nos instigando nesse apaixonante exercício da Filosofia Clínica.

Paulo Roberto Grandisolli
[FClínica/Inst Packter; Filosofia/UCMG; GSS-FSP/USP] filósofo clínico, professor, administrador serv saúde, consultor