Hrant Dink foi um jornalista Armeniano assassinado na Turquia em 2007. Em uma entrevista concedida no mesmo ano de sua morte, Hrant, que durante sua vida lutou para que o genocídio armênio praticado pelos turcos fosse reconhecido, relatou uma história sobre seu avô, reproduzida abaixo.
Antes de o genocídio começar, em 1915, o seu avô, que seria deportado junto com toda a família, permaneceu em sua fazenda até o último instante possível tentando consertar a máquina que faria a próxima colheita da safra. Seu filho, pai de Hrant, disse-lhe: “pai, nós não estaremos aqui para a colheita, seremos deportados. De que adianta consertar essa máquina?” O velho homem disse: “Eu tenho que… Outros fazendeiros chegarão e farão a colheita. Não podemos deixar a máquina quebrada. Eles precisarão dela.” De fato ele foi deportado e morto logo depois.
O exemplo acima nos conduz a uma breve reflexão: somos seres beneficiados pelo sacrifício de muitos que vieram antes de nós. Pessoas desconhecidas que em seus dias de silêncio e sem holofotes lutaram por nós, habitantes do tempo presente; pessoas que sabiam que não colheriam os frutos de seus atos. Alguns poucos se tornaram personalidades conhecidas por suas lutas éticas, como Gandhi, por exemplo; mas milhares de desconhecidos, no silêncio de suas vidas, também lutaram pelo legado das gerações futuras…
Quando paramos para refletir acerca de nossas vidas individuais, por mais que nós insistamos, não saberemos se os anos que ficaram para trás foram melhores ou piores que os anos que virão pela frente. Cada novo dia pode trazer consigo, em suas dobras de tempo, surpresas e eventos que podem marcar nossas existências de modo maravilhoso ou trágico. No entanto, enquanto sociedade, quando olhamos com lucidez e crítica para nosso tempo, é difícil escapar de um sentimento de pessimismo. Penso que tal negativismo, dentre outros fatores, repousa substancialmente na percepção de que as relações humanas estão frágeis, desgastadas e a ponto de ruir; com as necessidades básicas satisfeitas, nossa época é o tempo da “espetacularização” e da superficialização dos afetos; da dissolução dos espaços públicos de debate; do narcisismo e do egocentrismo.
Gostaria de ampliar o olhar sobre nosso tempo, trazendo à discussão o filósofo Hegel e sua dialética histórica.
A tradução literal de dialética significa “caminho entre as ideias”; através do diálogo e da argumentação capazes de distinguir claramente os conceitos definidos na discussão entre opostos, tese e antítese, carreadoras em si de “partes da verdade”, exageros e distorções, chega-se a uma síntese que traz em si mais “partes da verdade” e menos exageros e distorções. Hegel nos traz a ideia de que a evolução da humanidade se dá de modo dialético.
Segundo Hegel, a dor e um novo olhar para a dor é o inicio da possibilidade do novo construído a partir de relações de superação. E a mensagem de esperança reside em uma espécie de confiança histórica da superação e construção do novo, cujas imperfeições serão contrapostas e engendrarão a síntese a partir de diálogos, reflexões, conflitos e construções, e assim por diante. O método dialético nos incita a revermos o passado à luz do que está acontecendo no presente, questionando-o em nome do futuro, em nome do que “ainda não é”. E se fizermos um breve exercício de reflexão, podemos conjecturar acerca de nosso tempo e do novo que, não sem dificuldade, tenta se insinuar.
A partir da revolução industrial, e mais recentemente com a revolução tecnológica, o humano cada dia mais se torna um ser mecanizado e utilitarista, cuja razão instrumental reifica o outro humano, estabelecendo com o mesmo uma relação objetal. O outro é visto como um meio para fins próprios. E quando vemos movimentos de retorno a uma “humanização” perdida, estamos em uma relação de oposição dialética. Por exemplo, quando começamos a nos insurgir contra os abusos da ciência, que assumiu para si o papel de estabelecedora da verdade, estamos nesse processo. Um dia a ciência nos prometeu a felicidade, a paz e a harmonia entre as pessoas; mas quando fomos obrigados a assistir pessoas sendo transformadas em fumaça na 2ª guerra mundial, começamos a perceber que algo estava errado. E o problema não está na ciência em si, mas na mercantilização e desumanização que caminhou ao lado do progresso científico e tecnológico.
Introduzirei agora em nossa discussão o chamado “nascimento humanizado”, uma espécie de movimento humanista contra os abusos provocados pela técnica no trabalho de parto e no nascimento das crianças.
Para muitas pessoas o parto é apenas o modo pelo qual a criança vem ao mundo, importando apenas o resultado final, ou seja, a criança no mundo. No entanto, refletindo sobre o fenômeno em si, facilmente chegaremos à percepção de que o parto, seja por via vaginal ou cirúrgica, é o ato (ação e sensação) através do qual uma vida se inaugura no real; é muito mais que apenas o nascimento de mais uma criança no mundo. O parto é o ato de amor e doação inaugural dos pais que conceberam essa criança. A criança, para esses pais, é como os novos fazendeiros que chegarão para cultivar a terra. No entanto, diferentemente da ética absoluta do senhor da fazenda, que prescindia do nome dos sujeitos da próxima geração, a criança é cria; carne da carne, sangue do sangue; vem do ventre, vem da terra; vínculo maior entre humanos não há. A ética se impõe (ou deveria) com robustez, instinto e força. Penso que atitude ética fundamental dos pais em relação aos filhos se dá no ato inaugural desse novo ser que vem ao mundo.
Pois bem. Intuitivamente, como seres de natureza, não é difícil chegarmos à conclusão de que deve haver algum sentido natural, alguma importância fisiológica para a mãe e para o bebê no período de tempo denominado “trabalho de parto”. Mas para quem se mecanizou em demasia e prefere legitimar a ciência à natureza, ofereço-lhes então a própria ciência e seus inúmeros estudos que atestam os benefícios para mãe e filho que “entram” em “trabalho de parto”. Dito isso, torna-se difícil e um contrassenso qualquer argumento contrário a respeito da necessidade de se respeitar o tempo do parto; qualquer argumento contrário à importância de se “entrar” em trabalho de parto assume ares, para mim, de passionalidade histérica.
No entanto, em nosso país, o número de cirurgias abdominais agendadas para a extrusão do bebê sem que o mesmo tenha entrado em “trabalho de parto” é assustador. A criança, em sua fragilidade absoluta, é “arrancada” de seu meio natural e de seu estado de natureza, chegando ao mundo de modo abrupto, antecipado e artificializado. Os médicos, exercendo o poder, e os pais, por falta de informação e apoio e/ou por comodismo e/ou medo, são os agentes comumente envolvidos nesse ato de violência contra a criança que vem ao mundo privada de seu momento de transição entre a vida uterina e a vida fora do útero.Com exceção das situações onde a ciência é bem vinda e cuja intervenção prematura se faz necessária e pode salvar vidas, o parto é um ato humano, natural, visceral; negar essa passagem do tempo onde se põe em marcha uma cascata de eventos biológicos, tanto na mãe como na criança, é negar também a biologia a partir da qual a criança foi gerada.
A casuística individual não está em questão aqui; tampouco há espaço para um julgamento moral. O que trago aqui é uma reflexão ética radical em relação ao egocentrismo, comodismo, medo, mercantilismo e narcisismo imperante em nossa sociedade a ponto de não permitir nem mesmo que nossos filhos venham ao mundo no seu tempo.Trato aqui de uma cultura artificializada e mecanizada de vida que é capaz de vilipendiar até mesmo a chegada de nossos filhos. O que dizer então das relações entre as pessoas do presente? E o que dizer das relações com os desconhecidos das próximas gerações?
A condição maquinal dos seres humanos modernos pode parecer uma limitação, uma fraqueza da sociedade infantilizada, anestesiada e egocentrada. Na verdade, penso que tal condição agigantou-se e assumiu proporções ainda mais drásticas: tornou-se condição de sua sobrevivência. Joseph Conrad, em seu conto Anoutpostofprogress, de 1896: “O indivíduo contemporâneo é moldado pela sociedade até o mais íntimo de seu ser; poucos se dão conta de que sua vida, a própria essência de seu caráter, suas capacitações e ousadias não passam da expressão de sua crença na segurança do meio que os cerca. A coragem, o autocontrole, a confiança; as emoções e os princípios; todo grande pensamento e todo pensamento insignificante não pertencem ao individuo, mas à multidão; a multidão que acredita cegamente na força irresistível de suas instituições e de sua moral. É a grande marcha da humanidade anestesiada pelo mito do progresso. Mas o mito do progresso é poderoso, como uma prisão perpétua. E fora dessa prisão perpétua, o indivíduo não sabe o que fazer da própria liberdade, tamanho o medo e o pavor diante da percepção de que toda ideia de controle e segurança diante da existência não passa de ilusão. E por isso precisam da prisão que esfola sua intimidade e determina sua vida”. O individuo contemporâneo descrito por Conrad (atentem para a data em que foi publicado o conto: 1896) caminha, paulatinamente,para um estado de perda da autoimagem e da identidade; perdido e incapaz de entender a realidade que o cerca, é deformado e absorvido de modo irrefletido por essa realidade.É sujeito passivo, um personagem de si mesmo que vive de modo inautêntico e é levado pela “massa”. Voltando o olhar para nosso tempo, um tempo que ainda vive sob a égide do “mito do progresso”, e um tempo onde vicejam as grandes epidemias de depressão, ansiedade, suicídio, medicalização e drogadição, precisamos, enquanto sociedade, buscar uma espécie de “reorientação” diante da realidade que nos cerca.Caso contrário, continuaremos sendo absorvidos e deformados pela mesma.
Uma última reflexão: também as crianças de nosso tempo, imersas na cultura da artificialidade desde o nascimento, estão cada dia mais medicadas e cometendo atos de violência e suicídio. E se tais dados não forem suficientes para ensejar uma reflexão mais demorada e profunda sobre a nossa cultura, nossos medos e nossas relações, a começar por nossos filhos, é melhor deixar a máquina para a colheita quebrada mesmo, pois tudo estará perdido.Hegel, que tentou estabelecer um esquema histórico que explicaria e anteveria os novos passos da humanidade, talvez não tenha contado com o absurdo de nossos tempos: em uma época com tantos recursos e facilidade de comunicação, viceja, ao invés do dialogo, a solidão e os ataques pessoais entre os adultos carentes, egocentrados e infantilizados.