Ética e Filosofia Clínica – Coisas que a escuta ensina

Há muitos anos atrás, quando eu tinha exatamente nove anos, eu ouvi de minha mãe o que para mim foi, continua sendo e quiçá não deixará de ser, um dos mais revolucionários conhecimentos que tive na vida. Foi assustadoramente revelador o quanto eu me escondia do encontro com a verdade, que não era um objeto nem outra coisa senão o que unia os meus olhos ao mundo: um ponto de vista da totalidade e o seu inverso. Faltava-me, até aquele momento, o espelho de outros olhos com que se pode melhor enxergar a vida. Até então eu pensava que o mundo não era mais do que eu pensava ser, e que as pessoas se enganavam quando discordavam de mim. O mais absurdo foi me dar conta, algum tempo mais tarde, que o autoconhecimento não viria só de um olhar-se para dentro, mas de muitos outros ângulos. Precisaria observar como os outros me viam, portanto, antes, de saber vê-los com seus próprios olhos. Haveria depois que achar a possibilidade de algum entendimento entre as nossas diferenças. E, por fim, por maior que fosse o conflito resultante, nunca esquecer que o mundo é mais do que qualquer um vê, mas só é inteiro até onde a vista alcança. Que estranha lucidez é essa que obriga a consciência a ser humilde e jamais poder ver o que existe além do olhar, excitando a curiosidade para o infinito? Naquele momento, o importante para mim foi descobrir que o mundo é sempre maior que todas as verdades do pensamento.
A pretexto do que não me lembro bem, ela me disse: “não é o cobertor que esquenta você, meu filho… é você que esquenta o cobertor”. O mundo, impactante e imprevisto, girou na minha cabeça. Eu, que me sentia tão quentinho por causa da coberta, não imaginava que a verdade vinha da perspectiva, que o erro era a falta de um outro olhar, sobre o qual tudo mais existia. A coberta e eu (as coisas e os pensamentos) éramos verdadeiros, mas nossa relação era falsa. Na época descobrira o princípio de toda filosofia: que pensar o óbvio é fechar os olhos para novas “des-cobertas”. Desde então frequentemente me perguntei a respeito das pessoas, das minhas certezas, sobre tudo o que se escondia além das aparências e sobre como funciona o pensamento. Sem dificuldades, um dia entendi que eu era filósofo. Como todas as coisas parecem ter pelo menos dois lados, o meu lado instigador de criança sempre ficou do lado de dentro. Foi assim que iniciei meus estudos sobre ética, sobre gente… não apenas sobre o que parece ser certo ou errado, mas sobre os critérios desse julgamento. Por fim, mais tarde compreendi na Filosofia Clínica, de Lúcio Packter, algo mais do que o “amor à verdade” – significado grego da palavra filosofia. Comecei a ouvir na alma as verdades do amor. Jovem há mais tempo, depois de filósofo, tornei-me psicoterapeuta.
Antes da Filosofia Clínica eu consultava os filósofos, suas questões e métodos, intentava ser fiel ao contexto e conflitos de cada época em que suas obras foram escritas, no desejo de quem sabe melhor entender a marca de seus pensamentos e a profundidade de seus alcances. Mas ainda não aprendera a pensar meus próprios problemas – meus e de meu entorno – a partir do que eu lera até então. Falha minha e não de meus professores. Todavia, estudando com Packter, algumas vezes ele me desconcertava com a simplicidade poderosa de certas perguntas a respeito de dramas psicológicos facilmente encontrados na clínica de consultório, como esta: “Will, o que Platão diria para uma pessoa que acabou de perder o emprego, tendo filhos para alimentar, pagar escola, aluguel etc, e que por isso entrasse em desespero? ”. Eu sabia o que Platão afirmava em seus livros, mas ainda não sabia pensar platonicamente os problemas cotidianos da vida. Vencido o susto e posto ao trabalho, finalmente concluía, não sem algum orgulho de mim mesmo, algumas hipóteses teoricamente satisfatórias ou pelo menos defensáveis numa pós-graduação. Quando a mim tudo parecia novamente tranquilo, eis que me vinha o Lúcio de novo: “Meu querido, você está me dando uma resposta acadêmica, uma explicação teórica… A questão é outra e não é para mim, mas para aquele homem desempregado, usando a linguagem dele, que não é filósofo, que não sabe mais o que fazer da vida, mal compreendido pela esposa, que chora e pensa em suicídio. O que você faria para ajudá-lo se ele lhe aparecesse na sua frente pedindo orientação? Quero dizer, como você faria isso a partir do que Platão mostrava ser possível orientar as pessoas pela filosofia? ”. Perguntas como essa eu sempre reformulava assim: “com quantos pensamentos se constrói um barco? ”. Assim como um construtor de barcos sabe pensar corretamente as diferenças entre o bom e o ruim, muitas vezes a vida nos pede para reconstruir caminhos e sorrisos perdidos. Com isso aprendi que, bem mais que um sentimento, o amor é inteligente.
Dizem que é preciso respeitar as pessoas como elas são… e isso parece muito justo. Mas afinal, como elas são? Curiosamente as respostas quase sempre se antecipam às perguntas. É hábito de a maioria ter prévias explicações daquilo que ela própria não saberia fundamentar. Se se diz que fulano faltou com bom-senso, caberia a pergunta: o que é bom-senso? Se um crítico afirma que a vida em sociedade nos torna neuróticos e prova isso afirmando que desde Freud essa verdade está mais do que provada, inclusive mostrando os livros em que isso é dito, porque haveríamos de aceitar isso como verdade tão facilmente? Poderíamos questionar se de fato existe tal “neurose” e se o método freudiano é científico, válido, atual etc; querer saber o que é ciência e até mesmo buscar descobrir se existe algum método capaz de garantir suficiente segurança para afirmar o que é a verdade a respeito do que se pesquisa. E ainda que encontrássemos tais garantias em uma explicação, possivelmente haveria outras diferentes teorias igualmente bem fundamentadas, com novas perspectivas e conclusões. De resto, do ponto de vista ético, parece não haver dúvidas sobre o princípio básico do respeito: antes do que é dito, saber escutar.
Uma escuta clínica normalmente se interessa por localizar doenças ou tratar doentes. A escuta na Filosofia clínica difere por questionar o conceito de doença e, por conseguinte, o de cura, especialmente quando o assunto, longe das questões de natureza puramente física e biológica, refere-se a aspectos psicológicos e comportamentais, em que tudo não passa de valores comparados com valores. Dizendo assim, não se pode entender por clínica, nesta específica filosofia de consultório, qualquer significado próximo de uma ideia de tratamento daquilo que alguns insistem chamar de “disfunções psicológicas”, e que não passam de simples ou complexos modos individuais de ser, sem comparações diminutivas. Não faz sentido argumentar que o filósofo erra por não possuir conhecimentos científicos necessários para o diagnóstico de psicopatologias, sobretudo porque uma das maiores competências da filosofia está em desfazer falsos problemas e, com eles, a prática equivocada de suas consequências. Os diversos conceitos psicológicos de doenças mentais são muito relativos, por serem culturais, e pela razão de não estarem nem um pouco isentos dos interesses políticos e econômicos, dos mecanismos de classificação, controle e “ajustamento” aos estados de pressuposta normalidade. Em termos éticos, é inaceitável rotular alguém por “normal”, ou qualquer variação do seu contrário, por enquadrar-se nas normas científica e socialmente estabelecidas pelos poderes vigentes ou pelo nivelamento da maioria. É nesse sentido, sobretudo pela dignidade moral, que a Filosofia Clínica alivia o peso dos equívocos de significado da acepção de “loucura” versus “normalidade” e seus correlatos mais brandos (“neurótico”, “desequilibrado/descompensado emocionalmente” etc.), porém não menos cruéis em seu estigma de exclusão. Não há nisso novidades que já não tenham sido ditas em multianálises do poder, por filósofos como Michel Foucault em A História da Loucura e por literatos como Machado de Assis, em O Alienista.
Antes que alguém se arrogue algum direito de poder sob o status de alguma verdade, é preciso que se diga: todas as noções de verdade são discutíveis, com métodos próprios segundo as características de cada tema. O conceito de “verdade” pode se resumir em três tipos de conhecimentos diferentes:

  • O objetivo (do mundo material e das ciências exatas),
  • O intersubjetivo (próprio da cultura, dos desejos de relação, das ciências humanas em geral etc.), e
  • O subjetivo (único e intransferível da percepção de cada individualidade).

Tais dimensões da realidade se interagem constantemente, pois a totalidade da vida as pressupõe a cada instante, no entanto jamais se confundem. Exemplos: ouvir um médico sobre as estatísticas de avanço da metástase de células cancerosas de um paciente, argumentando que Deus não permitirá isso acontecer, é, com total perda de objetividade, não escutar o médico e, possivelmente, nem a Deus. É bastante apropriado afirmar que gosto se discute sim, e com razão; quando isso é relativo a um tempo e cultura específicos, sem valor universal fora desses limites. Neste caso, entre vinicultores, é correto julgar a qualidade ruim de um vinho, afirmando gostos com valor de verdade intersubjetiva. Todavia, seria um crime ético exigir mínima concordância subjetiva a respeito de fé religiosa, da preferência de cores, exprimindo com exatidão os sentimentos, as vivências e sensações comuns, pois ainda que as experiências pessoais se assemelhem nas aparências, a mesma sede, o estado de humor, o paladar e o exato gole de bebida nunca se repetem na vida, nem para si mesmo.
Seja como for, a Filosofia Clínica em particular não se ocupa do que é relativo, embora uma pesquisa da história, da sociedade e da cultura se faça indispensável ao entendimento do seu primeiro interesse: o indivíduo. Tal filosofia se dedica ao que é subjetivo, às pessoas e suas relações íntimas com o meio que as contorna e da maneira ímpar como elas o fazem. O filósofo clínico, enquanto terapeuta, tem uma única finalidade: cuidar daqueles que lhe pedem orientação existencial, entendidos não como pacientes, mas como “partilhantes”. O jeito de ser de cada um, por mais estranho que pareça aos que se acham melhores, não merece ser “curado”. O filósofo, portanto, não cura, cuida.
Todos temos um eixo de gravidade individual, uma estrutura que nos define, um modo próprio de existir, em que nela se pode supor, quem sabe encontrar, o equilíbrio das forças internas. Tal centro de sustentação não se advinha à distância em ninguém. Como planetas no espaço, cada alma é um mundo próprio, movimentando em torno de si mesmo a mesma vida que o leva além. Somos assim: simultaneamente constituídos de um universo interior e de um contorno ambiente. Somos, pois, o resultado e a renovação desse encontro de grandezas. O que às vezes nos parece ser gigante, noutras não é mais que um grão perdido na imensidão das galáxias. A esta estrutura individual da psique humana Lúcio Packter nominou de “Estrutura do Pensamento”. Sem prejulgamentos sobre a personalidade de quem não conhecemos bem, somente com uma profunda ética da escuta é possível “des-cobrir” quais são os elementos psicológicos que formam o centro de influência determinante de uma pessoa, que leva tudo o mais a ser fortemente atraído para ele. Algumas pessoas são marcadas pela emotividade e é através dos sentimentos religiosos que buscam solução para todos os seus problemas financeiros. Outras são muito racionais na educação dos filhos, mas a força do raciocínio depende essencialmente dos humores da vida sexual, de tal maneira que para melhorar os estudos deles é preciso cuidar do erotismo dos pais. Há quem deixe tudo para depois, priorizando a vaidade de sentir atlético em idade avançada, sem nunca haver dado importância ao fato de achar-se feio. Etc. Por fim, cada qual possui, constrói, extingue, reinventa… seu jeito único de ser. Ninguém merece ser tão facilmente “explicado” com um modelo genérico de personalidade que reduz as infinidades de mundos individuais só para justificar alguma teoria de destaque, por mais bonita que seja.
De maneira bem simples, o interior de alguém pode ser descrito e conhecido por meio de três perguntas: o que, para este indivíduo é absolutamente determinante e inegociável, ao ponto de sua presença estimular a vitalidade e na sua falta perder totalmente o equilíbrio de suas forças e, talvez, a própria vida? O que para ele é importante de tal forma que lhe signifique realização pessoal e valha muito o esforço por alcançá-lo; cuja falta seja penosamente suportável, mas perfeitamente substituída por outra coisa ou experiência de igual valor? Além disso, o que lhe é de tão pouco ou insignificante valor que não lhe faz muita ou nenhuma falta? Nos imprescindíveis detalhes, as respostas nunca se repetem de pessoa pra pessoa e, nalguns pontos sim e noutros não, se diferem em cada época e circunstâncias durante a vida. Com espanto, uma investigação rigorosa desses pontos nos obriga a reconhecer que coisas para nós absolutamente sem importância são determinantes para pessoas muito próximas de nós. Costuma ser mais difícil quando a situação é inversa. Uma simples palavra não dita, certo perfume, uma brincadeira ou um gesto qualquer, sem que o saibamos, podem magoar, trazer imensa alegria, recuperar lembranças do passado, ser motivo de amizade por toda a vida… Coisas assim acontecem muito mais do que nos acostumamos a perceber. Quanto maior o conhecimento dos modos de ser de si próprio e dos outros, maior a capacidade ética de respeito.
Mas estas não são questões didáticas a serem feitas em um questionário de avaliação psicológica e entregues ao próximo, muito menos na ante-sala do consultório. Quase nunca são perguntas. São verdades ditas na história de cada um apenas para quem sabe ouvi-las. Ouvir sem prejulgar exige compaixão, para colocar-se o máximo possível no lugar do outro, além de muita filosofia… filosofia da linguagem, epistemologia, lógica, pesquisas de estética, conhecimentos de política, noções de religião, farmacologia, literatura etc. Com muita competência, foi o que Lúcio Packter deu à filosofia: um sentido psicoterápico, um caráter clínico, um método de escuta da subjetividade tal que permite reconhecer todas as categorias de entendimento do ser humano, todos os traços existenciais da individualidade, seus signos, valores, pensamentos, corporeidade, emoções, funções de comportamento etc., tudo, enfim, que se possa afirmar como característica da psique humana e que a história do pensamento já produziu. E porque a filosofia é qualquer coisa que não dogma, este método terapêutico põe-se permanentemente aberto, pelo diálogo, às renovações que ainda hão de surgir.
Fosse a vida didática e a palavra aceita, bastaria explicar isso melhor, com alguns exemplos, dirimir dúvidas e muitos problemas decorrentes estariam definitivamente resolvidos. Eventualmente alguém funciona assim, por certo não a maioria. Há quem aprenda somente quando há uma relação de confiança e amor emanados de quem ensina. Também há quem recuse professores ou amigos e decida aprender tudo sozinho; quem prefira livros a pessoas; quem precise ver para crer ou pensar a respeito etc. Pessoalmente, depois de muito estudo, eu ainda teimo em tirar novas lições daquilo que minha mãe me disse aos nove anos. Teria Freud razão ao me analisar? Seria a psicanálise uma verdade universal em todas as épocas, culturas, idades, contextos econômicos e psicológicos diferentes? Ora… basta que haja a possibilidade de uma única pessoa desigual no mundo, distante do preceito de quem julga, para se cumprir o dever ético de primeiro buscar conhecer aquele que se quer julgar, ter consciência dos vários critérios de julgamento, permanecer autocrítico e humilde, para só depois afirmar conhecimentos da individualidade de alguém. Modelos sociológicos e tipos psicológicos ajudam na compreensão geral e são absolutamente necessários como um ponto de partida, amparados na pesquisa séria dos que se dedicam à ciência. Contudo, defronte a singularidade do outro, face a face, nenhuma teoria pode antecipar ou substituir a escuta, para se evitar os monólogos da tirania e a máscara da bondade. Quem não souber a escuta, saiba o silêncio.

Base Teórica

Curso Base Teórica – forma Especialista em Filosofia Clínica

O objetivo principal é possibilitar à pessoa uma ampla compreensão da Filosofia Clínica, através da leitura e discussão de textos dos principais filósofos que formam a base de seu pensamento. Além disso, mostrar como esse conhecimento é articulado para formar a dinâmica de funcionamento desta metodologia tão própria e rigorosa de terapia existencial. E, ainda, possibilitar um proveito pessoal pelo diálogo constante com visões de mundo muito diversas, a partir dos textos filosóficos e do pensamento e relatos das práticas clínicas.
O foco principal será a leitura e discussão, ao longo do Curso, dos Cadernos de Filosofia Clínica. Como apoio, textos, vídeos e comentários de filósofos clínicos. A prática buscará incentivar uma dinâmica para o aluno a compartilhar o seu aprendizado com os outros, como forma de perceber as infinitas nuances constitutivas desse saber em construção e, de exercitar e ampliar seus modos de escuta do(s) outro(s) e de si.
Da tradição da Filosofia se tomará alguns fragmentos de Heráclito e Parmênides, um diálogo de Platão e, um texto de Aristóteles; sobre a noção de tempo, um texto de Sto.Agostinho; para a constituição da ideia de sujeito e de ciência, Locke, Hume e Descartes e a crítica e o desdobramento feito por Kant; a ruptura de Schopenhauer com a noção de representação e a crescente importância da linguagem com Frege, Saussure e Wittgenstein e da história com Dilthey e a tradição marxista e da vertente fundamental das fenomenologias de Husserl, Merleau-Ponty, Heidegger, Gadamer e Lévinas. Sempre para pensar a existência, seus inúmeros modos de forjar sentidos pessoais e sociais.
Além disso, se tratará de modo sumário as principais referências psicopatológicas ligadas às correntes da psicologia e da psiquiatria (DSM 4 e 5). E se buscará apresentar, também brevemente, como trabalham as clínicas do inconsciente com Freud, Jung, Bion, Lacan e as variantes clínicas da fenomenologia com Jaspers, Medard-Boss (Daseinsanalyse) e Deleuze (Esquizoanalyse).Para ampliar essa compreensão serão escolhidos pequenos textos de Foucault, Derrida, Ricoeur e Agamben e de alguns teóricos clínicos brasileiros, como Luís Cláudio Figueiredo, Renato Mezan, Christian Dunker e daqueles ligados a FC como Lúcio Packter, Hélio Strassburger, José Maurício de Carvalho, Will Goya, Marta Claus, Cláudio Fernandes e Gustavo Bertoche.
Com isso se pretende um modo orgânico de aprendizado e compreensão, num incessante ir e vir do pensamento ao método, do texto lido ao aspecto tópico específico, da ideia inspiradora à questão prática e às vivências pessoais. O aluno que pretender se dirigir à formação clínica poderá iniciar a sua clínica didática, com acompanhamento de um Filósofo Clínico, a qualquer momento, de comum acordo com a coordenação do curso (esta atividade terá custo e horários independentes do curso). Com o intuito de introduzir o aluno nos vários modos em que se dá a Filosofia Clínica e não se cristalizar em um único modo, serão convidados professores de outros Centros de Formação, para troca de saberes e metodologias através da gravação de vídeos-aulas e/ou presentes em atividades
Para receber o Certificado de Conclusão, como Especialista em Filosofia Clínica, o aluno deverá ter cumprido, 75% das atividades estipuladas, entregue um relatório mensal, uma avaliação semestral e outra no final do curso, além do Trabalho de Conclusão e entrevista final.
Custo:
R$ 300,00 mensais. A 1ª será paga na inscrição.
Critérios para inscrição:
Graduados e alunos do último ano de graduação em Filosofia; graduados em Medicina, Psicologia e outras áreas da Saúde; outras graduações, a partir de avaliação em entrevista (poderá ser exigido estudos ou formação complementar em Filosofia, para quem não tem).
Certificação:
Será fornecida pelo Recanto da Filosofia Clínica em parceria com outros Centros de Formação em FC.
Obs.: Para aqueles que desejarem habilitar-se à Clínica, vide informações/orientações no Curso de Habilitação à Clínica.
 
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Gláucia Rita Tittanegro
[FClínica/Inst Packter; docPUG/Roma; pós-doc FSP/USP] professora universitária, pesquisadora saúde pública, filósofa clínica, consultora
 
Paulo Roberto Grandisolli
[FClínica/Inst Packter; Filosofia/UCMG; GSS-FSP/USP] filósofo clínico, professor, administrador serv saúde, consultor
Todos os encontros serão presencial e online ao vivo
 
Márcio José Andrade da Silva
[FClínica/Inst Packter Filosofia/PUCC; mestre/UFRJ; ondoc/UNISO] filósofo clínico, professor, editor, coordenador Inst Campinas e IMFIC.

Poese e Liberdade em Cecília Meireles

Os dois maiores épicos da literatura brasileira, para mim, são Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. O primeiro, produzido no período literário pré-modernista, em inícios do século XX, um texto denso de conhecimentos de antropologia, sociologia, geografia e historiografia dos sertões nordestinos que revela, ainda hoje, o mundo desconhecido das relações de poder desumanificadoras de milhões de seres humanos, na terra que deveria lhes pertencer, mas que, no entanto, vivem absolutamente entregues à exploração do trabalho semiescravo do latifúndio e à mercê das intempéries das secas. O segundo, um romance histórico poetizado que desenvolve vasto material de reflexão sobre a história da construção da liberdade do Brasil colonizado, especificamente no contexto do século XVIII.
 
É importante destacar que o texto de Euclides não é meramente técnico-científico. Possui uma poesia em sua linguagem, ao falar sobre a psicologia da alma e do corpo dos sertanejos nordestinos. Suas descrições, constatações e narrações estão plenas de um conhecimento sobre a cultura, o ambiente, as árvores, a comida, a vida dos sertanejos, que ultrapassa o âmbito do saber técnico de sua visão como engenheiro. Há um sentimento que anima todo o texto, de origem bem diversa da que lhe foi encomendada e pretendia o autor, inicialmente. Historicamente sabe-se que Euclides foi enviado ao arraial de Canudos para uma cobertura jornalística da ocupação e destruição daquela população pelas forças policiais do governo brasileiro. Todavia, lá chegando, sua visão  se ampliou para outros parâmetros. E graças a sua obra não ficamos sem um registro histórico da tragédia genocida que lá ocorreu.
 
Paralelamente, tempos depois, em uma circunstância bem diversa, mas num processo intelectual que considero análogo, aconteceria com Cecília Meireles, na cidade mineira de Ouro Preto, em Minas Gerais, algo daquilo que havia ocorrido com Euclides, ante a destruição de Canudos.
 
Cecília havia chegado àquela cidade com o objetivo de fazer uma reportagem jornalística sobre os atos litúrgicos e comemorativos das celebrações da semana santa. Simples tarefa de jornalista. Contudo, não sei se de súbito ou progressivamente, o ímpeto poético arrebatou-a e a fez redescobrir outra forma de cognoscibilidade sobre aquilo que contemplava. Seu olhar foi mais longe. Como ela mesma escreveu, certa vez: “eu bebo o horizonte”!
 
Eloquente e belíssima a conferência que escreveu e pronunciou naquela cidade, em 1955, sobre como escreveu o seu Romanceiro da Inconfidência, e que hoje serve como leitura-prefácio indispensável para quem deseja mergulhar na compreensão de seu texto. A poeta narra como aconteceu a sua mudança de percepção para a elaboração deste poema épico cujo tema filosófico central é a liberdade. Somente as palavras da própria Cecília nos podem encher os olhos da inteligência para adentrarmos melhor na sua perspectiva. Por isso quero deixá-la falar.
 
“Quando, há cerca de 15 anos, cheguei pela primeira vez a Ouro Preto, o Gênio que a protege descerrou, como num teatro, o véu das recordações que, mais do que a sua bruma, envolve estas montanhas e estas casas; e todo o presente emudeceu, como plateia humilde, e os antigos atores tomaram suas posições no palco. Vim com o modesto propósito jornalístico de escrever as comemorações de uma Semana Santa; porém os homens de outrora misturaram-se às figuras eternas dos andores; nas vozes dos cânticos e nas palavras sacras insinuaram-se conversas do Vigário Toledo e do Cônego Luiz Vieira; diante dos nichos e dos Passos brilhou o olhar de donas e donzelas, vestidas de roupas arcaicas, com seus perfis inatuais e seus nomes de outras eras. Na procissão dos vivos caminhava uma procissão de fantasmas: pelas esquinas estavam rostos obscuros de furriéis, carapinas, boticários, sacristães, costureiras, escravos, e pelas sacadas  debruçavam-se aias, crianças, como povo aéreo a levitar sobre o peso e a densidade do cortejo que serpenteava pelas ladeiras. Então, dos grandes edifícios um apelo irresistível me atraía: as pedras e as grades da Cadeia contavam sua construção – o suor e os castigos incorporados aos seus alicerces; o palácio dos governadores  ressoava com as irreverências de Critillo; a Casa da Ouvidoria mostrava o desembargador-poeta, louro, amoroso, suave, com um pré-romantismo inglês a amadurecer nos olhos azuis; o sobrado de Francisco de Paula Freire de Andrada insistia em mostrar suas cortinas de damasco (…); a casa de Cláudio ressoava de suspiros a Nise, de epístolas, de sonetos em português e  em italiano… A Casa dos Contos, esta casa onde o destino me faria falar, centralizava tudo isso (…) E assim a minha Semana Santa era aquela que eu estava acompanhando ao longo destas ruas e era muito mais antiga. Era, na verdade, a última Semana Santa dos Inconfidentes: a do ano de 1789.”
 
Assim descreve simbolicamente como foi tomada pelo ímpeto criativo para recontar poeticamente o drama histórico de Ouro Preto, como parte do drama maior que vivia toda a colônia brasileira.
 
Dirige-se aos montes, aos rios, ruas, pedras, estátuas, templos, casas, vendo-os transportados para o acontecido passado. Como sempre faz em toda a sua poesia, Cecília privilegia o pretérito, apelando à memória poética, para melhor compreender o presente. E continua a sua impressionante descrição, como se abrisse as cortinas de um grande teatro em que passam todos os personagens e acontecimentos já quase perdidos num tempo distante, somente recuperáveis pela memória e a imaginação poética. Para Cecília tudo fala.
 

“Tudo me fala e entendo: escuto as rosas /e os girassóis destes jardins que um dia /foram terras e areias dolorosas,/ por onde o passo da ambição rugia /por onde se arrastava, esquartejado,/o mártir sem direito de agonia. /Escuto os alicerces que o passado/ tingiu de incêndio: a voz dessas ruínas/ de muros de ouro em fogo evaporado”.

 
A Poese possibilitou-lhe, portanto, um novo olhar sobre aquele lócus histórico; de tal modo que, de uma perspectiva meramente jornalística que se pretendia, surgiu-lhe um novo horizonte. Qualquer leitor atento a este épico verá que se entrelaçam, nesta obra ceciliana, o saber e o sentir da poesia, o conhecimento histórico e o grande tema filosófico que perpassa seu conteúdo e o fundamenta, lançando-o definitivamente numa reflexão sobre o passado da nossa formação histórica e cultural: o tema da liberdade; que é também um tema universal integrante de toda a sua poesia. Por isto mesmo, atinge e abarca também o nosso tempo presente, pelo alcance da memória poética.
 
Inesquecível a estrofe que escreveu no romance XXIV, que não canso de repetir e repensar: “liberdade – essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”. Essa exclamação de Cecília chegou aos meus olhos e em mim permaneceu latente durante muitos anos. Foi uma das portas da poesia que acenaram para mim, desde meus tempos de criança.
 
Como tudo se relaciona, com o passar dos tempos, num futuro não muito distante, o tema da liberdade se impôs cada vez mais a todos os meus trabalhos como filósofo da educação, revelando-se como elemento central das lutas históricas dos seres humanos, por ser também tema central em quase todas as filosofias, ao longo da história do pensamento humano. O espanto de Cecília me causou um certo alumbramento através desta sua poesia. Alumbramento este que continua até o presente.
 
Este espanto, esta perplexidade da poeta, reabriu uma das janelas do pensamento que acenava para mim quando criança, ao me defrontar com a beleza e a indiferença do mundo.
 
O horizonte da liberdade aparece como uma aspiração humana universal; com certeza, uma entre as mais importantes, na construção da história. Acredito, disto certamente surgiu a exclamação e constatação da poeta, cuja prática política se caracterizou como expressão desta busca, evidenciada em toda a sua obra  poético-pedagógica.
 
A temática da liberdade, presente em seu épico maior Romanceiro da Inconfidência, como tema filosófico, é conteúdo central em toda a história da Ética e da História das Filosofias. Cecília capta muito bem isto. Além do que, evidentemente, efetua uma evocação da época dos movimentos de rebelião dos brasileiros contra a dominação colonial, após a Revolução Francesa. Desde os movimentos rebeliativos no Maranhão, em Pernambuco, Bahia, ao de Filipe dos Santos e poetas mineiros, junto a Tiradentes. Uma época de sonhos e árduas lutas por libertação. Neste épico, a autora expõe sua narrativa poética fazendo uso de um estilo também popular, o romanceiro, que ela mesma explica como sendo uma composição literária narrativa em versos de natureza lírico-épica, vinda de antigas tradições que remontam à Idade Média; em que se procura preservar a verdade histórica sem desprezar as tradições populares, incluindo os contos, as crenças e até mesmo as lendas.
 
Entretanto, seja relembrado, a obra poético-romântica de Cecília ultrapassa o próprio movimento mineiro, apontando elementos de universalidade para uma reflexão em torno da compreensão da humanidade. Ela nos apresenta um relato com todas as tintas da riqueza do seu lirismo a que muitos denominam lirismo absoluto. Mas não deixa, por seu lirismo, de referir-se à concretude da história brasileira naquilo que a temática possui de regionalidade enquanto expressão da consciência nacional e, ao mesmo tempo, afirmação de valores que integram uma aspiração maior da humanidade.
 
A liberdade é desejo que alimenta e possibilita o pensamento filosófico. A atividade pensante se caracteriza precisamente pela vontade de afirmação e busca desta mesma liberdade. Condição inegociável, seja no exercício da busca de realização e afirmação, na sua efetividade, ou na frustração da sua falta, a liberdade se manifesta como força provocadora da ação humanizadora; seja na arte, na organização política, nas ciências e na Filosofia. Paradoxalmente, enquanto se manifesta como busca e falta. Pois a liberdade é também a constatação ativa da não liberdade que nos impulsiona à sua conquista, pela ação criadora ou reinvenção.
 
Liberdade é sonho, diz a poeta-pensadora. Mas, sonho que se traduz na efetividade diária de práticas reveladoras de consciência histórica; como o demonstrou em seu trabalho de jornalista, escritora e educadora. Em muitos dos seus poemas o tema liberdade surge explicitamente; retomado várias vezes no seu grande épico, aparecendo como “céu da liberdade” em sua obra Canções; por ser tema e lema da bandeira dos chamados inconfidentes. Escreve a poeta: “amanhã, como ontem, é amarga a liberdade” (romances XXIV-XXVI). Liberdade, ainda que tarde. Ouve-se em redor da mesa. E a bandeira já está viva. E sobe, na noite imensa. E os seus tristes inventores / já são réus – pois se atreveram/ a falar em Liberdade (que ninguém sabe o que seja).
 
O pensar filosófico, a Filosofia, assim como a arte, surgem e ressurgem em instantes de lucidez por esta procura de liberdade que gera mais liberdade, como busca de ser mais. Assim reflete Cecília, fazendo encontrarem-se o passado, o presente e o futuro históricos numa só temporalidade, que é o tempo da liberdade. Em uma das suas crônicas intitulada “Ouro Preto” ela já havia escrito, em 1949, que aí o Brasil esteve, pela primeira vez, em dia com a literatura, a ciência, a filosofia e a política.
 
Portanto, como separar poesia e filosofia nesses seres humanos que nos legaram tais pérolas de conhecimento literário? A começar pelos próprios poetas do movimento mineiro; iniciadores de um movimento de consciência histórica nacional, pela sua atividade político-poética de contestação.
 
Como negar a presença de uma mundivisão filosófica subjacente na poese de Cecília? São inúmeros os poemas em que tematiza a aprendizagem, a questão metafísica da busca de sentido para a existência; o não sentido da vida, da dor, o tema da angústia, a estética, o conhecimento, a multiplicidade de eus, o enfrentamento da facticidade da morte. Em mais de trinta volumes que compõem sua obra poética, afora sua obra em prosa, esses temas sobressaem a cada verso. Principalmente a questão da temporalidade. O tempo, a memória, são recorrentes e muitíssimo repetidos em suas poesias. Todos são temas filosóficos, embora apareçam sob a perspectiva estética. Por isto mesmo suscitam a reflexão, enquanto refletem a nossa historicidade e humanidade.
 
Como não reconhecer que tais escritores são também pensadores?  Euclides, Cecília, Castro Alves, Machado de Assis, Lima Barreto e tantos outros, poetas e romancistas, nos fazem pensar filosoficamente. E sobre os quais muito ainda teremos a descobrir, em termos de antropologia filosófica e filosofia da literatura.
 
Como deixar de enxergar o diálogo poesia-filosofia nesses escritores? Impossível não reconhecer tal contribuição. Principalmente em se tratando de uma prosa poética de interrogação metafísica, como a obra de Clarice Lispector, por exemplo.
 
A poesia de Cecília chegou até mim exatamente através daqueles versos sobre a liberdade, num livro escolar dos meus tempos de estudante do ensino médio; época em que eu ainda desconhecia essa estrela da literatura brasileira e universal. Em mim ficou, até que nos reencontrássemos pelos mesmos caminhos do desencanto, da dor, da soledade, do encantamento e da busca por liberdade; tão presentes na sua poesia plena daquilo que experimentamos como sensibilidade humana.
 
Gosto de afirmar que Cecília é a poetisa da dor, do tempo, da solidão e da liberdade. Sem pretender, com isto, simplificar a multiplicidade temática presente nos seus escritos. Pois ela mesma repete que é vária, inúmera e múltipla. “Se me contemplo / tantas me vejo / que não entendo / quem sou, no tempo / do pensamento”. “Esta sou eu – a inúmera. / Que tem de ser pagã como as árvores” (in compromisso e auto-retrato).
 
A liberdade em Cecília é tematizada em diversos poemas nos quais fala da vida como reinvenção, imaginação, aprendizagem e memória. Estes termos são insistentemente repetidos. Seu poema “reinvenção” é um exemplo basilar desta repetição.
 
Não apenas sua poesia, mas todo o conjunto de sua obra é expressão de uma multiplicidade de sentimentos, de olhares, de canto, de perplexidade, teatralidade, indignações e indagações filosóficas.
 
Não se pode resumir, enquadrar ou tipificar a sua poesia somente como melancólica, lírica, simbolista, intimista, modernista ou qualquer outro “ista” que anda saltando nas páginas da crítica literária oficial. Sobretudo porque grande parte da população universitária desconhece a Cecília pensadora e crítica aos poderes políticos arrogantes da época da ditadura Vargas, por exemplo. Ignora Cecília como mística que não se enquadra nos padrões da religiosidade oficial; a pensadora interrogante, universalista, epigramática irônica, sem deixar de ser suave, sensível e lírica.
 
Repito: difícil tipificar em poucas palavras o estilo da poese ceciliana.
 
Em estatura intelectual, não temo afirmar, ela ultrapassa Castro Alves. Ambos se equiparam pela força da expressão verbal. Contudo, a produção literária ceciliana é mais ampla que a do poeta dos escravos. Proporcionalmente à sua idade cronológica, este poeta é insuperável, no seu tempo. Cecília vai além, sem nenhuma dúvida, por sua universalidade e produção intelectual. A maior expressão da poesia em língua portuguesa escrita por mulheres; em nada inferior a Fernando Pessoa, Guerra Junqueiro, Camões e outros idolatrados do academicismo. Mesmo assim, pouco conhecida no Brasil.
 
Uma das razões desse desconhecimento da grandeza poética de Cecília Meireles está no fato de que a intelectualidade brasileira sempre foi predominantemente masculina; melhor dizendo: machista. Muito tardiamente as escritoras mulheres se afirmaram. Além das questões ideológicas das elites contra a postura desta poetisa lúcida e corajosa; que não era tão evanescente como disseram alguns críticos da oficialidade.
 
Além disso, no Brasil, as massas acadêmicas conhecem somente alguns versinhos de antologias repetidas sem a necessária contextualização desta escritora. Nesses tempos de modismo virtual, repetem frases soltas via internet. Desconsideram e desconhecem esta mulher que esteve à frente da pedagogia de sua época, trabalhando com pensadores da envergadura de Fernando de Azevedo, Mário de Andrade, o filósofo da educação Anísio Teixeira, Heitor Villa-Lobos; combatendo o autoritarismo religioso imposto à sociedade brasileira pelas elites varguistas. Uma mulher que não hesitou em combater a imposição do ensino religioso católico às escolas e, em suas crônicas, chegou a nomear Vargas como o ditador; esse caudilho que, até hoje, em pleno ano de 2015, ainda é incensado por alguns setores das elites reacionárias e carentes de reciclagem intelectual.
 
Mesmo atualmente, com um número crescente de mulheres escritoras, duvido que as próprias mulheres da intelectualidade oficial gostem de ler Cecília. Principalmente nestes tempos de fundamentalismo religioso crescente; que em nada se afina com a perspectiva crítica desta poeta, primeiro reconhecida mundialmente, antes que em seu país.
 
Este aspecto crítico e independente da práxis ceciliana ainda é bastante ignorado. Consequentemente, pretendem colocá-la na gaiola do simbolismo e antimodernismo. Na verdade, não há classificá-la com apenas um esquema estilístico e interpretativo.
 
Nada melhor para nos fazer mergulhar no seu universo do que reler seus poemas. Principalmente “Mar Absoluto e outros poemas, Retrato Natural”, e o monumental “Romanceiro da Inconfidência”, esse épico praticamente desconhecido pelas maiorias que apenas ouviram  falar ou leram alguns versos de Cecília, isoladamente.
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por Marcelo Bezerra Oliveira
*Poetofilosofia, pag. 81-91, Ed. do Autor
 

Filosofia em Clarice Lispector

Qual ou quais seriam as possibilidades para a identificação de uma mundivisão filosófica na obra literária de Clarice Lispector?
Poderíamos falar de uma filosofia lispectoreana?
Quais seriam os indícios dessa filosofia em seus escritos?
Pensei tomar essas três interrogativas como pontos de partida para perspectivar essa possibilidade.
 
Muito se escreve sobre a obra desta escritora, em termos de análise literária, resenhas, crítica literária e estudos biográficos. Todavia, parece haver poucas publicações objetivando a identificação da tematização especificamente filosófica presente em seus textos.
 
Considero a probabilidade de que seja viável uma Filosofia da Literatura neste sentido. Não apenas sobre a obra de Clarice, mas como caminho para a construção de um pensamento filosófico originalmente brasileiro. Quero dizer: um pensamento filosófico que tome como ponto de partida e objeto de estudo a nossa produção literária; inclusive, evidentemente, a desta escritora.
 
Penso que é necessário reler a nossa literatura sem a postura de dependência e submissão de quem faz apenas uma transcrição do que já foi afirmado por filósofos de outros países, como se quiséssemos legitimar nossa cultura partindo de um contexto estrangeiro; numa espécie de concordismo, muito comum nas academias, que aliás para nada servem a não ser para isto: louvar a razão estrangeira, reproduzindo o colonialismo intelectual da dependência.
 
É ponto indiscutível que a literatura, como criação artística, é expressão da vida. Neste caso, primordialmente, da nossa vida de brasileiros; em segundo lugar, expressão do universal, do mundo; enquanto tematiza a condição humana.
 
Literatura é vida. A literatura de um povo é a expressão mais autêntica de sua vida. Portanto, considero a literatura brasileira como uma fonte essencial do nosso pensamento filosófico. Seja a literatura indígena, escrita e oral, os nossos romances, nossos poemas, crônicas etc.
 
Clarice Lispector não exteriorizava preocupação em dizer que leu tais ou tais pensadores. Não gostava de falar em suas leituras ou possíveis influências de outros escritores na sua mundivisão. Isto ficou bem esclarecido em suas crônicas e na sua única entrevista concedida à TV Cultura, publicada postumamente.
 
Clarice certamente leu, releu e até reinterpretou alguns escritores chamados clássicos; mas criou seu próprio modo de ver o mundo. Fazia as suas leituras e desleituras. Lia e interpretava o mundo imediato que reencontrava todos os dias, mediante uma perspectiva interrogante.
 
Certa vez, intitulou uma de suas crônicas com a afirmação “sou uma pergunta”. Reafirmava sempre que sua tarefa no mundo era saber, nomear, querer descobrir, tentar compreender a existência. Percebia-se como escritora interrogante. Seu ofício literário a conduziu consequentemente à pergunta filosófica. O perguntar é uma atitude constante em suas narrativas. Inclusive, perguntas que a maioria dos escritores em moda jamais fariam, Clarice o faz diretamente ou através de seus personagens. Como alguém que duvida da própria linguagem naquilo que ninguém questiona. Por exemplo, através da personagem Joana, de seu livro “Perto do Coração Selvagem”, pergunta sobre pra que serve ser feliz? O que virá depois que se é feliz? Ser feliz é pra se conseguir o quê? Numa atitude intencional de claro desmantelamento do senso comum que tanto usa e repete a expressão “ser feliz”.
 
Como, de modo geral, quase todo bom e honesto escritor se encontra sempre sozinho naquilo que escreve, foi com certeza na experiência desta solidão que Clarice Lispector (CL) se tornou a Clarice que foi e continua sendo para o mundo atual.
 
Há diversos aspectos no conjunto da obra clariceana relativamente às formas literárias que usou para se comunicar. Com certeza, nem podemos falar em estilo, em se tratando das suas obras. Ela escrevia livremente, sem apego a técnicas estilísticas. De modo geral, as formas principais que usava para comunicar, ver e sentir o mundo eram a crônica, o romance e o conto.
 
Outra modalidade de texto que eu não colocaria entre tais formas literárias, por exemplo, apresenta-se em seus dois  livros intitulados Água Viva (AV) e Paixão segundo GH (PSGH). Vejo-os como monólogos de introspecção metafísica. Principalmente PSGH, verdadeiro texto de reflexão que apresenta claros elementos para uma filosofia da religião, enquanto questionamento sobre a dialeticidade transcendência-imanência ao encarar a questão da experiência mística.
 
Em AV e PSGH está bem nítida uma desestabilização da frase usual e da própria gramatologia tradicional, pelo esvaziamento dos sentidos correntes das palavras e da pontuação. Talvez, uma forma de exteriorizar a desordem existencial que habitava em si mesma e em seus personagens; e que habita em todos nós, em nossos diversos eus.
 
Como classificar tais obras? Reflexão introspectiva? Monólogos? Não sei. Uma prosa poética, talvez. Prosa poética que nomeio como poetofilosofia; uma filosofia poética; ou poese filosófica.
 
A forma de escrita mais direta, fluente e linear usada por Clarice foi a linguagem das suas crônicas.  Os contos predominam no conjunto de sua obra. Porém, suas crônicas são os textos mais acessíveis para quem pretende ter um contato inicial com a sua mundivisão. Não podemos falar em um estilo clariceano, no sentido de estilo predominante ou único. Sua escrita é muito pessoal, subjetivamente marcada pelos momentos existenciais de sua consciência intuitiva.
 
Há certo consenso entre os conhecedores da obra de Clarice, no sentido de que ela não se alia ao estilo dos escritores romancistas de sua época (1930-45); sendo uma antirrealista. Na verdade, nem precisa ser especialista em História da Literatura Brasileira para perceber isto. Sua escrita aparece como um hiato diante dos chamados romances sociais e regionalistas dessa época; sem, no entanto, perder totalmente a sintonia com a condição humana do povo brasileiro. Em seus textos considerados intimistas por muitos críticos CL se distancia do Brasil. Sua temática predominante são os encontros-desencontros e as desorganizações internas dos indivíduos em seus relacionamentos. Sua posição política é tênue em suas obras. Mas seu testemunho ficou bem claro por sua participação nos acontecimentos históricos do Brasil de seu tempo.
 
Sabemos que Clarice viveu a época da ditadura de Getúlio Vargas, a aguda crise da segunda guerra mundial e a ditadura militar a partir de 1964. Enfrentou o fenômeno da angústia produzida pelas relações sociais capitalistas, com o desenvolvimento desordenado das grandes cidades inchadas pelo êxodo rural. Evidentemente, CL não abordava explicitamente tal contexto porque não estava fazendo história. Sua obra é puramente estética. O reflexo desta contextualidade, com certeza, gerou muitos traços da angústia vivenciada em seus personagens.
 
Diferindo dos escritores que faziam certa mímese do real, Clarice efetua uma desfiguração do real operada pelo aspecto estético e/ou antiestético em que se apreende o ser social entrevisto no texto. Pois  não estava preocupada com heróis ou com o estilo do romantismo. O enraizamento do seu humanismo emerge precisamente da intratextualidade de sua obra. Dizendo melhor: surge da confluência entre ideologia e estética. O elemento social brota de algo que compõe o literário (Cf. Oscar Pilagallo, in “O engajamento da introspectiva”, Entre Livros, n. 21, ano 2).
 
Ler as obras de Clarice Lispector implica entrar em contato com uma quebra da linguagem comum e dos sentidos dos fatos mais banais da vida humana que passam a nos desconsertar e provocar ou apontar para uma perplexidade angustiante que tece a existência das coisas e das pessoas.
 
A priori a mundivisão clariceana se caracteriza inegavelmente como uma filosofia “desconcertante”.
 
Pode ser um tanto simplista ou simplificador afirmar que a filosofia fundante da percepção clariceana seja uma filosofia existencialista. Todavia não o é reconhecer esta perspectiva como elemento constituinte de sua mundivisão; plena do sentimento universal da experiência da angústia, da dor, da admiração e da perplexidade perante o fenômeno da própria vida humana. A vida entendida como sucessão de momentos de descoberta constante das contradições que a compõem, em termos de incompreensibilidade e ausência de sentido.
 
A meu ver o pensamento filosófico de CL se manifesta mais explicitamente em PSGH; um texto literário que nos apresenta a experiência da vida em seu aspecto de imanência e materialidade, apontando para uma percepção da condição humana em sua solidariedade cósmica, como bicho, reduzido a inseto, coisa, ser pensante, mas estranhando-se a si mesmo em sua imanência-transcendência. A própria Clarice se coloca como sujeito-personagem-animal, solidária à materialidade e à indiferença do mundo, experimentando a dor, o amor, o sofrimento; buscando uma mística, uma linguagem contra a própria linguagem, face à experiência da incomunicação. Inclusive, por isso mesmo, a autora não hesita em se colocar no mesmo plano ontológico dos bichos.
 
Nesta obra encontramos os principais temas da mundivisão filosófica de Clarice, tratados também no seu texto Água Viva. Não sei se poderia falar em terminologia clariceana. Porém, há diversos elementos temáticos recorrentes, sejam temas ou situações existenciais da condição humana em quase todos os seus livros; mas sobretudo nestes. Todos tratados numa perspectiva angustiante e existencialista; claro, sempre do ponto de vista pessoal da autora, sem perspectivas sociais ou políticas. E certamente por isto a classificam e rotulam como intimista. Na verdade, Clarice é uma escritora mundial, porque sua abordagem temática não é regionalizada. Ela se distanciou da temática predominante entre os escritores brasileiros de sua época. Este é um dos traços de sua singularidade.
 
Entre os elementos temáticos de sua obra há três termos básicos que se distinguem: epifania, instante e náusea. As imagens de sua linguagem despertam e provocam um mundo de associações em fluxo contínuo; fazendo explodirem estranhamento, compreensão e súbitas descobertas. Além destes, outros termos de conotação mística surgem e ressurgem, como por exemplo: beatitude, revelação, êxtase, santidade, graça, estado de graça, mas não com a mesma significação de origem. Clarice os ressignifica, dizendo que sua conotação é puramente arreligiosa; insanta.
 
Se quisermos relacionar ou tentar aproximar sua filosofia com alguma das filosofias do século XX, com certeza  encontraremos traços das antropologias filosóficas de autores como Kafka, Sartre, Unamuno, Hesse e, quem sabe, até Heidegger. Embora, ela mesma certa vez interrogada sobre a relação entre o conceito sartreano de náusea e a náusea de que falava em seus textos foi direta e categórica ao afirmar que a sua náusea era diferente da de Sartre porque ela sentia mesmo (sic)!
 
É preciso considerar que Clarice não pensa categorialmente, conceitualmente; porque está fazendo literatura; está fazendo arte. Portanto, criando um universo distinto de conceitos filosóficos ou categorias epistemológicas. Entretanto, nem por isso deixa de apresentar um pensamento filosófico, uma mundivisão, uma interpretação da vida em termos de totalidade e busca de sentido. Enquanto fez uso da linguagem escrita, procurou pensar a vida, compreender a existência das coisas e do mundo, como subjetividade pensante, mediante a atividade consciente-inconsciente; mais intuitivamente do que por raciocínios lógicos formais. Nisto ela insiste em seus textos. Efetuava uma busca intuitiva; mais instintivamente, dizia; apontando os limites da própria linguagem e do que nós denominamos consciência.
 
Em CL a questão do acento nos limites da palavra para dizer o mundo se faz mais presente do que em outros escritores. Na sua obra a palavra é condição e impossibilidade ou limite. A linguagem também apresenta-se como antilinguagem, discurso e contradiscurso, linguagem e metalinguagem, revelação e ocultamento do que somos e não somos; do nosso ser e do nosso não-ser; dos nossos “eus” e “não-eus”.
 
Diversamente do lugar comum da alternativa do ser ou não ser, em Clarice a dialética acontece justamente na vida como ser e não ser. Ser é também não ser. Querer e não querer, sentir/não sentir, saber/não saber, ver/não ver, compreender/não compreender, silenciar. O conhecimento filosófico não se dá pela via do esclarecimento conceitual, terminológico, mas acategorial, existencialmente, mediante a descoberta intuitiva e a experimentabilidade das contradições e negações, à revelia daquilo que o discurso linear e definitório de causa-efeito determina como verdadeiro e lógico no sentido da lógica formal tradicional.
 
A escrita de CL, ao nomear a vida em sua crueza, dureza e nueza, nos faz perceber a existência mediante a nomeação daquilo que a nega, contradiz e sufoca: o anti-sucesso, o anti-herói, o anti-humano, a anti-vida, a anti-estrela etc. Talvez não pelo fato de que seja apenas uma “existencialista pessimista” ou que proponha uma concepção negativa da existência humana no mundo. Não se trata disto. Mas em razão daquilo que ela simplesmente constata, mostra, indica, sente. E procura nomear, sem conseguir; ficando perplexa com o fato de que a vida se dê tal e qual ela sente, percebe e aponta, apesar de e por causa dos limites da linguagem. Ela escreve como quem sente, mais do que como quem sabe intelectualmente. Escreve como “sentinte”, “omnissentinte”. Elabora um pensar-sentindo. No seu texto “Água Viva” há uma nomeação exatamente assim: pensar-sentir; para referir-se a uma forma de pensamento livre, além de necessidades demasiado limitadas. Insiste na compreensão em que o seu corpo participa, dizendo que só pode compreender algo quando o sente. Em “a hora da estrela” há uma declaração lapidar que resume bem essa sua postura cognitiva, ao dizer: “eu não sou um intelectual, escrevo com o corpo. E o que escrevo é uma névoa úmida. As palavras são sons transfundidos de sombras que se cruzam desiguais, estalactites,renda, música transfigurada de órgão.” Mas, como nomear a dor? Esta uma das perguntas de Clarice; insistindo em que essa palavra não diz o que sentimos – “a dor não é o nome verdadeiro disso que a gente chama de dor” (in PSGH). O imprevisível, a dor, o silêncio, não se deixam cognoscibilizar. Porque as palavras nos aprisionam, nos torturam e nos limitam. Temos de quebrá-las, reinventá-las e usá-las como objetos e não como casulo. As palavras são tudo e nada. Não nos tiram da angústia da condição humana perante a ameaça da dor e da nadificação; não nos realizam nem nos fazem felizes. No entanto, não podemos dispensá-las. Por elas dá-se o extravasamento do que está dentro do nosso corpo.
 
Na escrita de CL não há um solipsismo no sentido cartesiano e estrito do termo. Ela dialoga com as pessoas, como personagem que sente; ouve-as, descreve-as, expressando sentimentos, como quem tem compaixão pela condição dramática do ser humano no mundo. Sua postura mais comum é de perplexidade ante o êxtase e o horror; ante o ininteligível da existência.
 
Outro texto curto, mas denso, sua obra “a hora da estrela” (HE), é também fundamental para o conhecimento de sua visão sócio-filosófica, de modo mais direto e condensado; talvez, por ser sua última produção. Aí a autora expressa a sua percepção da vida em toda a sua “crueza” e tragicidade, ao dizer, no final da narrativa, que “a vida é um soco no estômago”. Algo mais kafkiano? Não conheço.
 
Relativamente à criação da personagem Macabéa, desse texto que alguns chamam romance, fica bem evidente que não é apenas uma mera ficção, uma criação imaginária. Trata-se de um exemplo corporificado e real de muitas mulheres na mais absurda condição de alienação produzida pela exclusão social. Protótipo de uma anti-heroína, dizem os analistas deste romance; que não é tão “romântico”. Protótipo da condição desumanificada, da desgentificação, da negação da vida e do que se chama dignidade. Seria a subumanidade, socialmente produzida.
 
Macabéa é a pessoa transformada em objeto; um não-eu; objetificada. E o sinal ou semiose mais visível desta condição, além da aparência física de miséria, é precisamente o silêncio abafado, a ausência do exercício pleno da linguagem. Macabéa não sabe, quase não fala, não age; é coagida, dessubjetivada, coisificada. Arquétipo de alienação, como inversão da subjetividade que foi transformada em coisa animalizada.
 
Alguns críticos literários que analisam esta obra de CL afirmam que a autora não pôde mais esconder a sua solidariedade com o drama dos nordestinos miserabilizados pelo êxodo rural e empurrados para o Sudeste do Brasil. É possível, mas não há referência explícita sobre isto. Pelo menos relativamente à questão sócio-política da produção da miséria. Até porque Clarice não quis regionalizar sua abordagem.  Principalmente em razão de que não está fazendo história, mas arte. E os critérios são outros. Mesmo assim, não se pode excluir tal propósito latente. Macabéa é o  tipo de nordestina que ela diz ter percebido certa vez na feira de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Pálida, encurvada, aérea. Apenas diz – “preciso falar dessa nordestina, se não sufoco. Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela”.
 
A autora não tematiza diretamente as questões sociais em seus escritos. A sua narrativa padece, de certo modo, da ausência de uma consciência de classe social em seus personagens. Todos sofrem demais os dramas sociais, mas pouco ou não se percebem como sujeitos sociais. Apresentam-se como sujeitos desprovidos de consciência histórica. Sofrem; mas raramente indagam e nunca se rebelam contra estruturas ou instituições sociais; contra o mundo que os oprime. Sucumbem. Além de Macabéa, um exemplo emblemático é “Mocinha”, do conto “viagem a Petrópolis”; outra personagem nordestina, velhinha, abandonada pela suprema crueldade da família que a rejeita, jogando-a na rua e causando-lhe a morte. Do mesmo modo que fazem hoje com os cães e gatos quando não os querem mais em suas casas. Afinal, Clarice, como arguta observadora das relações pessoais dentro das famílias, talvez nem precisou inventar a personagem; pois tal fato parece muito comum nesta sociedade capitalista que se diz defensora da família. (cf. “viagem a Petrópolis”, in A Legião Estrangeira ).
 
Como artista da palavra escrita, há em Clarice o desejo de nomear e indicar a sua experiência de intuição do mundo. Entretanto, a angústia que gera a sua escrita não a plenifica nem alivia. Isto a própria escritora confessa em seus textos, quando se refere ao ato de escrever; sobretudo quando era interrogada sobre como escrevia. No desenvolvimento dos seus textos, falando do presente que gera aquilo que escreve, deixa transparecer, no entanto, que a própria escrita simplesmente a precipita no não ser, no nada. Faz um enorme esforço para a ultrapassagem da linguagem usual, em termos de pontuação, pausas, que chega a denominar “respiração da frase”. Sua sintaxe nem sempre obedece à norma gramatical. Em sua escrita se percebe que há uma certa agonia quando sente que não consegue dizer tudo aquilo que gostaria. É visível sua tensão perante a incomunicabilidade das palavras ao descrever as situações dos seres humanos e das coisas. Escrever é uma questão de libertação que, todavia, não consegue. Seu  sofrimento interior com o que acontece arranca-lhe enorme esforço para buscar palavras que a possam salvar desse sofrimento. Por isso diz que escrever é questão de salvação. Contudo, não consegue se redimir ou se libertar dessa dor. As palavras não conseguem libertá-la dessa agonia que é o viver. Essa perplexidade angustiante se repete em quase todos os seus textos. Sua concepção da existência humana é agonia. Esta palavra é uma das mais usadas em seu vocabulário de traços existencialistas. “A vida está me doendo e não sei como falar”, escreveu em PSGH.
 
Clarice fala das aleluias e agonias do viver. Sobre o ato de escrever ela repete bastante, em suas crônicas, dizendo ser um fracasso, uma maldição e ao mesmo tempo uma questão de salvação. Repetia sempre que não gostava de que a chamassem escritora e intelectual. “Ser intelectual é usar sobretudo a inteligência, o que eu não faço: uso é a intuição, o instinto”.(DM – 152-53).E fala sobre si dizendo – “sou uma pessoa que pretendeu por em palavras um mundo ininteligível e um mundo impalpável” (idem, ibidem). Isto é repetido à exaustão, em seus textos. Afirmava ser uma pessoa que sente e procura a palavra que o exprima. Não tanto pela pura intelectualidade lógica no sentido comum, mas pela sensibilidade inteligente, dizia. Escrever para a escritora significa reunir as contradições do existir, como dor: a dor de escrever livros; a dor de ser. “Ser às vezes sangra”. Ao mesmo tempo que é divinizador do humano, escrever também é maldição, é defrontar-se com o fracasso. Mas o fracasso, a deseroização, a despersonalização, exprimem a condição de possibilidade para ser; que é também não ser. “Ser é não ser. O fracasso, a desistência, a despersonalização, são momentos de revelação da condição humana. O que não sou eu, eu sou. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano” (PSGH). Entenda-se, filosoficamente: aqui esta linguagem tem um caráter de princípio ontológico; não simplesmente lógico. Trata-se da posição dialética encontrada em filósofos como Hegel, Sartre, e em pensadores-poetas como Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Lorca, Machado de Assis. Clarice nos legou uma dialética da existência com a marca de sua singularidade estética, como escritora.
 
A posição filosófica de Clarice, expressa em termos de teoria do conhecimento, é o intuicionismo. Já que ela privilegia expressivamente, não a razão do discurso da lógica formal, mas a intuição, pela unidade entre forma e conteúdo; desejo, instinto, compreensão súbita. Sua posição cognitiva é de quem procura perenemente renomear as sensações, as emoções, as percepções. Eternamente voltada para o seu mundo imediato, escutando, sentindo sons, odores, cores; procurando dar significado a essas sensações; procurando sentir aquilo que dizia amar: as pedras, o mar, os bichos, as flores.  Faz-me lembrar um dos conceitos de filosofia de Fichte: o conhecimento que não brota simplesmente de raciocínios, mas de uma consciência imediata, uma intuição sensível.
 
Clarice nos apresenta uma percepção sensível e estética da existência em seus aspectos de dor, agonia, beleza e revelação súbita do inesperado ou imprevisibilidade. O espanto é uma forte característica da visão clariceana.
 
Acredito também que alguns elementos da posição bergsoniana perpassam a teoria do conhecimento lispectoreana. Aliás, Bergson encontra-se como referência explícita em um de seus textos. Sua concepção de temporalidade e transcendência apresenta claramente o traço da fluidez, característica da teoria de Henri Bergson. A vida é unidade. O tempo é indivisível. O tempo privilegiado em suas narrativas é o tempo psicológico; melhor, o tempo subjetivo; transcendência é a lembrança do passado ou do presente ou do futuro. Para Clarice o tempo é atualidade; uma atualidade que não tem esperança; não tem futuro; pois o futuro será exatamente uma nova atualidade. O tempo clariceano é o tempo do hoje. Não há um tempo cronológico. O agora é o instante. Esse termo “instante” é exageradamente repetido pela autora, em “Água Viva”. É sua concepção de temporalidade. O dia de amanhã será um hoje; e a eternidade é o estado das coisas no presente momento. O tempo presente, o instante, é como um pirilampo que acende e apaga, acende e apaga. Portanto, a categoria tempo, enquanto é narrada e transposta para a subjetividade dos seus personagens e sua, torna-se humanizada, compreendida de um ponto de vista humanizante. Ao mesmo tempo, é como que “destemporalizada”, no sentido de que o tempo histórico desaparece. O tempo cronológico é como que “substituído/ destruído” ou unificado com o tempo metafísico.
 
Assim se expressa a escritora em sua prosa poética, que afirmo ser uma verdadeira poetofilosofia.
 
Clarice vivenciava uma espécie de “sensismo”. Sentir é um termo chave em sua apreensão do mundo; chegando quase à obsessão pela busca de uma espécie de princípio metafísico, que seria o divino, algo inomeável que denominava “it”; ou “o Deus”. Ou seja: tinha, em última análise, um itinerário místico; sem ser religiosa; como se buscasse algo supraconsciente, supraindividual que fundasse as percepções e sensações de sua egoidade; que não era apenas a consciência, mas o inconsciente e intuitivo que nunca soube clarificar pela linguagem da gramática usual. Daí porque buscava outra forma, uma antilinguagem; para expressar aquilo que dizia poder captar na entrelinha das palavras, que não era palavra. Eis uma das principais razões da sua angústia ao escrever. Invertia desde as funções verbais até os elementos sintáticos sujeito-objeto tradicionalmente integrantes da frase, bem como a pontuação da gramática normativa. Falava, por exemplo, em “perdoar Deus”. Em PSGH fala de “antipecado”; a “insanta”, referindo-se a si mesma, como a um gênero de santidade que não é a dos santos; e do divino como sendo o real; remetendo-nos à tese de Espinosa, que concebia Deus como o universo. “Deus é o que existe, e todos os contraditórios são dentro do Deus, e por isso não O contradizem.(…) Falar com o Deus é o que de mais mudo existe. Falar com as coisas, é mudo.(…) O inferno para mim é o meumáximo. O divino para mim é  o real.” Para Clarice o inferno é o horror do sofrimento, está no amor, na dor da carne; no humano que se revela não humano. Transcendência é imanência. A liberdade é o inferno. “Somos livres, e este é o inferno”; declaração em estilo sartreano. Essas e outras intuições da autora podemos verificar, principalmente nos três últimos capítulos desta obra; a meu ver, seu texto mais densamente filosófico.
 
Toda a tentativa de uso das palavras que constituem a linguagem sempre a levavam ao sentimento do absurdo e do silêncio que as palavras não conseguem romper. Buscava, na escrita, uma libertação que, no entanto, não acontecia. Penso que esta é, em parte, a condição dos escritores em geral: enfrentar a vida tentando expressá-la em palavras, num esforço de “suspensão” da evanescência do tempo, pela criação estética.
 
Afinal, a escrita clariceana situa-se como uma prosa poética, por duvidar da total apreensão das coisas, atitudes e modos de ser pela categoria exclusiva do entendimento intelectual. Sua prosa atinge o nível da apreensão estética para além da conceitualidade.
 
Segundo Benedito Nunes, em seu texto de interpretação da linguagem de Clarice (“o drama da linguagem, IV”) a autora atinge o desordenamento poético, o silêncio, a suspensão das convenções vulgares da linguagem, superando a relação vulgar de ser ou não ser revelados na angústia da vida, enquanto vai tomando consciência de sua nadificação progressiva. Sua linguagem atinge uma espécie de insignificância, um horizonte de ultrapassagem dos signos e relações de causalidade, rumo à apreensão estética do ser das coisas e da própria linguagem, ao mergulhar em outras nuances da existência, como a memória, a alegria, a sensualidade, o humor, a tragédia, a dramaticidade. Enfim, como prosa poética. Porém, sua maior expressividade está no paradoxo que ela mesma diz atingir: o silêncio. A não linguagem. E quem lê Clarice também se defronta inevitavelmente em face desse silêncio, após tudo que ela tentou descrever, interrogar e perscrutar. Este é o ápice de sua escrita: não conseguir expressar pela linguagem aquilo que acontece, aquilo que sente, percebe e deseja. Apesar de haver se preparado desde a infância para ter o domínio da palavra, confessa a escritora, em sua desolação. Os acontecimentos a colocam, subitamente, diante de situações inomináveis da condição humana, que é toda perpassada por uma dor, a dor vivida por seus personagens; a dor de viver, a dor de existir. Sua concepção da vida não quer ser pessimista nem otimista, mas um esforço de apresentação da existência naquilo que acontece na vida das pessoas. “Ser é além do humano. Ser homem não dá certo, ser homem tem sido um constrangimento. O desconhecido nos aguarda, mas sinto que este desconhecido é uma totalização e será a verdadeira humanização pela qual ansiamos. Estou falando da morte? não, da vida. Não é um estado de felicidade, é um estado de contato. (…) Quando se realiza o viver, pergunta-se: mas era só isto? E a resposta é: não é só isto, é exatamente isto” (cf. penúltima parte de PSGH).
 
Mas, penso, é precisamente por estas razões, que surge a arte. A produção artística tenta dizer o não dito; aquilo que o discurso não pode, não quer ou não permite dizer. Todas as formas artísticas, inclusive a literatura, tentam expressar aquilo que as ideologias ocultam: os espaços das entrelinhas; que sempre existirão. Este também foi e continua sendo o paradoxo analisado por tantos filósofos da linguagem; desde o Círculo de Viena até Martin Heidegger e outros pensadores contemporâneos.
 
Porém, em meio a tudo isto, Clarice conseguiu trazer para dentro da linguagem escrita aquilo que nenhum outro escritor havia conseguido: o próprio silêncio. Isto é único em toda a literatura brasileira; quem sabe, na literatura mundial. Mais original ainda porque isto está grafado com linhas, traços, pontos, intervalos, entrelinhas; que ora começam, ora interrompem, ora deixam inconclusas suas narrativas (- – -. . .- – – -). Suas obras são cheias de um grande silêncio. Para mim o silêncio da vida, o silêncio do tempo. Silêncio do ser humano em sua absoluta solidão consigo, num mundo totalmente indiferente; sem respostas. Em “a descoberta do mundo” pontuou: “Há um grande silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras. E do silêncio tem vindo o que é mais precioso que tudo: o próprio silêncio.”
 
Clarice não compôs poemas, mas atingiu o limiar do silêncio e do espanto poético, por seu desapontamento face à cotidianidade da vida e naquilo que ela nos apresenta de mais ininteligível: o sofrimento. Pensava registrando a expressividade de seu corpo sentinte. Este é um traço singular de sua composição literária, que a distingue entre outros escritores brasileiros. Lembra-me Cecília Meireles em um de seus poemas de rara beleza e conteúdo fenomenológico, quando escreveu – “o que sou é o que vejo/vejo e sou meu olhar/e meu corpo é minha alma/ e o que sinto é o que penso” (in Canções).
 
Paulo Freire, um pensador brasileiro que apresenta forte conteúdo da Fenomenologia Existencialista, em seu pensamento, também afirmava que a mente não pensa desligada do corpo; pois o corpo é corpo consciente, tomando consciência; e a consciência, dizia, não é uma região espacializada e isolada do corpo. Pensamos com tudo aquilo que sentimos. Do contrário, não é autêntico o nosso pensar, se negamos ou omitimos as nossas emoções. Clarice escrevia em desapontamento, mas demonstrando em verdade aquilo sobre que escrevia. Dissolvia o tempo cronológico, mas não dispensava a memória. Sempre recorria à memória poética lembrando que aquilo que tentava descrever (a vida) é mais importante do que a linguagem, o como descreve. “Viver não é visível; nem relatável” (PSGH).
 
Pensar-sentindo, um pensamento sentinte; eis o que é um pensamento poético. Assim se vela e desvela o pensamento filosófico clariceano.
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por Marcelo Bezerra Oliveira
Poetofilosofia, pag. 128-144, Ed. do Autor.

O viajante de amanhãs

“O filósofo é uma das maneiras pela qual se manifesta a oficina da natureza – o filósofo e o artista falam dos segredos da atividade da natureza. “ Friedrich Nietzsche

O espírito aventureiro impróprio à cristalização do saber, se refaz nas escaramuças de um território movido a movimento. Seu viés de intimidade precursora se alimenta das ruas, estradas, subúrbios desmerecidos. É incomum ser facilmente compartilhável, esses eventos anteriores ao engessamento conceitual.

A irregularidade narrativa como propósito sem propósito, se reveste de uma quase poesia, para tentar dizer algo sobre os eventos irreconciliáveis com a ótica dos limites bem definidos. Essa lógica de singularidades flutuantes se aplica as coisas irreconhecíveis ao vocabulário sabido.

Seu desprezo pelas fronteiras, objetivadas pelos acordos e leis, é capaz de antecipar amanhãs no agora irrecusável. Num caráter de existência marginal entre o cotidiano e a miragem das lonjuras, parece querer se estruturar nas dialéticas do acaso.

Uma espécie de não-lugar se institui numa percepção visionária das coisas e eventos ao seu redor. Os refúgios existenciais descritos na provisoriedade dos apelidos buscam denunciar a multiplicação dos exílios, onde se possa apreciar o projeto pessoal em rotas de recomeço.

Num hoje destituído de ponto final, na quimera dessas errâncias de um talvez, é possível antever os inéditos amanhãs. Por essa indefinição característica dos anúncios, a subjetividade, incapaz de viver sempre igual, se desdobra pelos inéditos movimentos. Assim o instante desordenado, deixando de ser apenas uma coisa ou outra, realiza uma conversação com suas possibilidades.

Por essas expressividades ainda sem objetivação, surgem desconstruções, reconstruções, buscas. Conteúdos sem um chão discursivo legível para se dizer. Uma aptidão de mistura parece estabelecer interseção com as novas verdades, recém chegando de um lugar desconhecido na própria estrutura.
Assim uma correspondência se estabelece, onde a diversidade se anuncia como fonte de originalidades. Um aventureiro a contrariar insinuações de que a vida acontece num só lugar. Viajante precursor a se especializar em um saber itinerante.

Nesse cotidiano estranho que não cessa de chegar, se institui algo indefinível ou apressadamente enquadrado, pelos interesses em classificar seu viés de anúncio. Numa lógica assim disposta, a única garantia é não haver garantias.

Não é tão simples reconhecer a extraordinária matéria-prima nesse devir existencial. Muitas vezes se apresenta como ameaça por ser estranho. Sua erudição de aspecto nômade se apresenta em poéticas de contradição com o mundo conhecido. Para quem acreditava ter visto tudo, o vislumbre dessa perspectiva, por si só, já pode compartilhar autogenias.

É interessante notar seu renascimento como superação de suas cinzas. Uma espécie mesclada de Fênix, Hermes, Dioniso numa alma cuja característica é a percepção inquieta destes instantes diante de si. Seu instinto mutante se abastece das impermanências e redescobre, a partir desse território, os caminhos para descobrir amanhãs.

A epistemologia desses percursos aprecia a crise e o caos como movimento precursor, acolhendo o espírito de alma nova que vai chegando. Suas estéticas de incompletude seguem nas entrelinhas da indefinição, talvez aí resida o medo e a insegurança do mundo normal, o qual teme perder territórios já conquistados.

Uma evidencia dessa provisória integração pessoal, nesses percursos de redescoberta, é a concessão de uma linguagem própria. Para saber mais é impreciso sair da zona de conforto, realizando uma reciprocidade com os tópicos marginais da própria estrutura. Desenvolver uma fluência das variadas linguagens possíveis numa mesma pessoa.

por HélioStrassburger – Filósofo Clínico na Casa da Filosofia Clínica

O corpo e a filosofia clínica

Além das questões verbalizadas em clínica, que dizem respeito ao corpo, como por exemplo, quando o partilhante diz literalmente: “não gosto do meu corpo”, ”me acho desengonçado”, “tenho pouca flexibilidade”, “sou muito magra para usar decotes” ou “sou muito gorda para usar saia curta”, “sou baixo demais para assistir a shows”, “sou motivo de chacota na escola por causa do tamanho de meu pé”, entre tantas outras verbalizações possíveis, devemos observar a postura, o modo de ser corporal do partilhante.
Como assim? Nosso corpo guarda em si, desde o nascimento, certos modos de ação. A forma como nos desenvolvemos fisicamente está diretamente associada ao nosso desenvolvimento histórico-social, já dizia o russo Vygotsky.
Muitas pessoas somatizam seus desconfortos existenciais em dores de cabeça, depressão, gastrites, pressão alta e por aí adiante. Outras tantas somatizam no corpo físico, desenvolvem problemas posturais, articulares, obesidade, anorexia.
O corpo é um meio de comunicação que como os outros tem sua própria linguagem. A dança, o teatro e a mímica são claros exemplos de linguagem corporal. O corpo é a “casa do nosso eu” é também uma forma de nos expressarmos, e em Filosofia Clínica pode ser considerado como um dado de semiose e fundamentalmente um dado epistemológico.
É através do corpo físico que experimentamos, conhecemos as coisas concretas do mundo – é um dado de experimentação e de conhecimento. O filósofo clínico, portanto, deve estar atento a este dado, a esta linguagem. Por vezes o partilhante “conhece” o mundo pelo corpo, mas não conhece o próprio corpo, ou não sabe lidar com ele.
A Filosofia Clínica vê o homem, o individuo em sua totalidade. Não o fragmenta em corpo e mente ou corpo e alma. A Filosofia Clinica e o filósofo clínico verão o indivíduo como este se mostrar, se revelar em sua historicidade. Por vezes o partilhante pode nos chegar com o assunto imediato referente a uma dor nas costas e esta pode ser apenas um dado somático, ou seja, devido a questões de ordens diversas o partilhante desenvolveu a dor nas costas que lhe causa o desconforto existencial.
Além de trabalhar junto ao partilhante a causa existencial, o filósofo clínico, pode também trabalhar a questão da somatização, desse desconforto no corpo. Pode ajudar ao indivíduo a recuperar tranqüilidade, o bem-estar físico.
A Filosofia Clínica dá um sentido humano ao corpo. Somente à luz da totalidade do individuo será possível à compreensão e a valorização do significado humano do corpo e suas ações corporais.
As estruturas corporais, fisiológicas e biológicas, devem ser consideradas, mas por si só não constituem o significado humano do corpo. O corpo pode ser considerado como a configuração sensível do homem, é um campo expressivo da pessoa, é o lugar onde tomam forma concreta às possibilidades de sua existência.
O corpo, em todos os aspectos, participa da realização pessoal do homem. É através dele que humanizamos as coisas, por isso ele pode também ser humanizado.´
Segundo Ponty:**
“O corpo próprio está no mundo assim como o coração no organismo; ele mantém o espetáculo visível continuamente em vida, anima-o e alimenta-o interiormente, forma com ele um sistema.
Ao perceber as características corporais no indivíduo e como ele lida com elas, e de posse de sua historicidade, o terapeuta pode trabalhar estas questões usando o submodo percepcionar que, entre outras funções: “…faz a pessoa permanecer junto do corpo todo o tempo. Ajuda a pessoa a ter consciência do corpo. Mas conecte, grude, plugue para estar em sintonia e haver interseção”
O terapeuta pode intervir fisicamente no partilhante se isto tiver acolhida em sua malha intelectiva. Pode tocá-lo, motivá-lo para que o partilhante o faça para assim fazer com que ele sinta o próprio corpo e vivencie, agende coisas boas – percepcionar. Ou também, para que ele aprenda a lidar com o próprio corpo ou conhecê-lo melhor – epistemologia.
Muitas vezes o partilhante nem percebe que as suas dores existenciais lhe causaram marcas, dores no corpo. Contudo, é muito importante que o percepcionar, assim como os outros submodos, tenha boa acolhida na malha intelectiva da pessoa para que possa se mostrar eficaz. Já o Submodo Epistemologia pode ser usado para que o partilhante conheça, experimente o seu próprio corpo. Ou seja, o percepcionar é a intervenção direta do filósofo no corpo do partilhante, o toque; e o Submodo Epistemologia é o como o partilhante conhece as coisas pelo corpo e como ele conhece o próprio corpo.
“Então este Submodo nos mostra como a pessoa conhece e trabalhamos com ele objetivando esclarecer ou agendar novos dados. Existem pessoas que usam este Submodo com freqüência, ou seja, buscam conhecer, saber, investigar como as coisas acontecem,e de fato experimentam.”
No caso, por exemplo, de um partilhante que seja cartesiano, e tenha dificuldades para lidar com a questão corporal, o indicado são Submodos dirigidos à sua própria Estrutura de Pensamento, no que se referem a conceitos abstratos, pois o choque pode estar lá, em idéias complexas que se formaram com o tempo e a experiência.
Nesse caso, qualquer referência ao corpo e mesmo manobras inadvertidas podem levá-lo ao susto, ao afrontamento, talvez até aumentando-lhe o mal-estar. O que reiteramos é a aguda necessidade de conhecimento da Estrutura de Pensamento da pessoa para um procedimento clínico correto, sem o qual os Submodos podem ter um efeito contrário.
Desse modo, mesmo que seja relatado no histórico do partilhante e na sua queixa inicial um indício problemático quanto ao corpo, há que se pesquisar detidamente os Submodos já existentes em sua estrutura, de forma que o processo terapêutico ocorrerá em torno da utilização e conjugação dessas formas da pessoa lidar com seus tópicos de formação, aliados à possibilidade de ensino de outros Submodos possíveis. Ou seja, cada histórico, infinitamente único, demanda modos de condução estritos e altamente individualizados em sua aplicação.
por Lúcio Packter

A escuta das palavras

A palavra, em deslocamento por seus muitos territórios, também busca uma legibilidade para sua escuta escutando-se. Aptidão rara em meio as ditaduras da semiose verbal. Ao conviver sempre no mesmo lugar, ainda que em línguas diferentes, é excepcional vivenciar as dialéticas da aventura.
 
Em um mundo apropriadamente imperfeito, pode ser indizível, ao dicionário conhecido, encontrar o melhor para si. Essa suspeita se insinua nas possibilidades do instante perfeito nas entrelinhas da imperfeição. Essa transgressão da zona areia movediça de conforto existencial, se aproxima de um mundo razoável e suas contradições. Assim pode acolher e dialogar com a mutante medida de todas as coisas em cada um.
Ao destacar o viés dessas poéticas da irreflexão, se esboça uma negação de que tudo já foi dito, pensado, tentado. Nele um espaço desconhecido se abre como proposta.
Talvez a escola, ao ensinar a ler e escrever, também pudesse incluir aprendizados na arte de ouvir, sonhar, flutuar, experienciar essa matéria-prima diante do olhar, muitas vezes refugiada nas impróprias paredes. Quiçá emancipar-se além do tumulto silencioso das palavras.
Nesse sentido, a convivência aprendiz, a decifração desses códigos da não-menção, presentes nela mesma, pode conceber a crise precursora, o desajuste social, a incompreensão, como rascunho de uma obra acontecendo. Em um chão de incompletudes, os subúrbios da expressividade acolhe o devir dos recomeços.
Ao Filósofo dos casos perdidos, acostumado a ter um não saber como ponto de partida, vislumbra-se essa dialética como um redirecionamento do olhar. Lógica principiante a conjugar o recém chegando vocabulário diante de si. Uma estética a reivindicar o cuidador singular para acolher e contribuir com a nova condição. Ao cogitar dos eventos inesperados o espelho da realidade também se move.
 
por Hélio Strassburger -Filósofo Clínico na Casa da Filosofia Clínica

O que é a filosofia clínica

A Filosofia Clínica, em uma nova abordagem terapêutica, é a filosofia acadêmica adaptada à prática clínica, à terapia. Não trabalha com critérios médicos, com remédios ou com tipologias na construção de uma proposta terapêutica cujo objeto é buscar o bem-estar do ser humano.
O instrumental da Filosofia Clínica divide-se em três partes: os Exames Categoriais, a Estrutura de Pensamento e os Submodos. Nos Exames Categoriais, primeiro momento da clínica, através da historicidade, o filósofo clínico situa existencialmente a pessoa colhendo todas as informações de sua vida, desde as suas recordações mais remotas, até as informações de suas vivências mais atuais.
O material colhido, na história da pessoa atendida – que em Filosofia Clínica é chamada de partilhante, justamente pela condição de ser alguém com quem o filósofo compartilha momentos da existência -, é a base para o desenvolvimento do processo terapêutico.
A partir desses dados, num segundo momento, são verificados os tópicos da Estrutura de Pensamento da pessoa, as relações e os choques entre eles. Posteriormente, no processo terapêutico, entram os Submodos, que são a forma como o conteúdo da estrutura de pensamento é expresso. Os Submodos são utilizados pelo filósofo clínico para trabalhar as questões principais da pessoa. Nesse trabalho terapêutico o filosofo clínico é, antes de tudo, um amigo disposto a ouvir e a dialogar, comprometido eticamente com a busca do bem-estar subjetivo de quem o procura.
“O funcionamento interno de cada pessoa que se processa num centro identificado como Estrutura de Pensamento é singular e único. Por isso, a Filosofia Clínica considera cada pessoa um mundo único no seu ambiente existencial.”
por Lúcio Packter