Epistemologia: Paulo Freire e Gaston Bachelard

APROXIMAÇÕES EPISTEMOLÓGICAS:  PAULO FREIRE e GASTON BACHELARD

                                                                           Marcelo Bezerra Oliveira*

 

Paulo Freire (1921-1995) e Gaston Bachelard (1884-1962) são contemporâneos em termos históricos e em perspectivas teóricas, por pertencerem ao construtivismo dialético-fenomenológico. Ambos compartilharam a afirmação básica da historicidade do conhecimento. Este é o traço geral que os aproxima, em suas características múltiplas e diferenciadas. Nestas anotações consideraremos somente alguns capítulos dos volumes citados na bibliografia.

Paulo Freire elabora sua gnosiologia tomando como base o binômio natureza e cultura, estabelecendo a distinção fundamental entre ambas; compreendendo por natureza tudo aquilo que os seres humanos encontram no mundo e que não foi criado por eles; e por cultura tudo aquilo que é construído pelos sujeitos humanos, tomando como objeto de transformação a natureza, mediante o trabalho. Natureza, trabalho e cultura são conceitos básicos para a compreensão da epistemologia freireana. Aqui, por enquanto, não vamos adentrar na questão da historicidade do próprio conceito de natureza. Apenas destacaremos as teses da epistemologia freireana, com as referências que faz à epistemologia de Bachelard. Não se trata de estabelecer paralelismo entre ambos. Daremos destaque para duas obras de Freire: Pedagogia da tolerância e Pedagogia dos sonhos possíveis. De Bachelard – A poética do espaço e O novo espírito científico.

Para Paulo Freire o ser humano está sendo no mundo com outros; como ser inacabado, inconcluso e consciente de sua inconclusão; que se constitui pelas relações com outros e o mundo cultural que inventa ao fazer história. O ser humano não se naturaliza, mas se historifica. A historicidade já aproxima os autores, por afirmarem essa dinâmica dos seres humanos e dos saberes que constroem.

A construção do conhecimento, em Paulo Freire, acontece no confronto intersubjetivo. O conhecimento é construído coletiva, social e culturalmente. Não há um saber produzido exclusivamente pelo indivíduo. O conhecimento se dá na relação dialógica, na dialogicidade entre dois ou mais sujeitos. Por conseguinte, não há um “eu penso”, “eu conheço”, desligados do “nós conhecemos”, “nós pensamos”. Não é o “eu penso” que constitui o conhecimento, mas o “nós pensamos” é que estabelece o “eu penso”, “eu conheço”. A dialogicidade é constitutiva de sua ontologicidade, de sua condição como ser-no-mundo-com-outros. Certamente neste modo afirmativo da intersubjetividade Freire se diferencia de Bachelard, que ainda permanecia na perspectiva da teoria clássica tradicional do conhecimento concebido como relação entre sujeito-objeto, embora, evidentemente, tivesse consciência da construção coletiva do saber científico.

Aproximam-se em suas epistemologias por não desligarem a construção do saber científico da atividade filosófica. Bachelard se refere constantemente à filosofia como indispensável no processo de construção do conhecimento das ciências. Inclusive, relativamente à produção das artes.  A Filosofia e as ciências devem estar em aproximação. Em suas obras não há separação entre filosofia, poesia, literatura e psicanálise.  Portanto, ambos possibilitam uma reflexão epistemológica sobre as dimensões da cultura. Uma reflexão aberta à diversidade epistemológica. Isto merece ser destacado.

Segundo Paulo Freire, somente diante de uma realidade cultural cognoscível mediatizadora da relação entre as pessoas (educador-educando, filósofo clínico-partilhante), poderá se estabelecer dialogicamente o encontro e a busca compartilhada do conhecimento (ou dos saberes). E só em tal condição é possível a inteligibilidade e a compreensibilidade dessa realidade objetivada na comunicação. Sendo oportuno relembrar a complexidade do que denominamos realidade, que jamais pode ser definida nem compreendida exaustivamente, por abarcar tudo aquilo que está para além do imediato.

Há uma historicidade na construção do conhecimento. Desde então, aparecem ou podem reaparecer os diversos níveis de diversidade e profundidade de saberes; seja o saber popular, o científico, o ideológico ou de classe, de gênero, etnia, etc. Paulo Freire surge no contexto das teorias do conhecimento com esta originalidade que consiste na afirmação, sistematização e fundamentação histórico-filosófica do caráter essencialmente dialógico do conhecimento. Algo que pensadores de tendências filosóficas anteriores não o fizeram, senão enquanto simples acenos tangenciais. Como Martin Buber, com a dialética EU-TU, assim como outros pensadores das filosofias existenciais que destacavam o ser-com-outros-no-mundo, denominada “comunicação das consciências”. Tal expressão tem sido usada para designar, por oposição ao subjetivismo, a experiência imediata da consciência do outro; por exemplo, no olhar, na corporeidade. Paulo Freire afirma que o ser humano é um corpo consciente, e que a consciência não é uma região espacializada do ser humano.  Assim, Karl Jaspers nomeava esta relação usando o termo “Daseinskommunication”, ou seja, uma comunicação existencial em que o si busca apreender o outro como si. Quiseram expressar que “eu não tomo consciência daquilo que sou como ser isoladamente”. Eu me experimento na comunicação com outrem; que Freire chama “outreidade”. Tais elementos conceituais foram considerados pela epistemologia freireana, mas repensados na dialogicidade exercida pelos sujeitos no mundo cultural e histórico.

O intento de toda a obra freireana é pedagógico, mas a sua sustentação ou embasamento teórico é radicalmente de caráter filosófico. Ele a elaborou em sintonia com as epistemologias de Gaston Bachelard e de outros pensadores de sua contemporaneidade, a exemplo de alguns filósofos existencialistas, como Gabriel Marcel, Jean-Paul Sartre, Karl Jaspers, Martin Buber; psicanalistas como Erich Fromm, Frantz Fanon, acrescidos do suporte de outros clássicos da Filosofia, como Hegel, Karl Marx, Gramsci, Husserl; além de diversas referências pedagógicas de destaque no século XX, entre as quais Anton Makarenko e Anísio Teixeira. No entanto, sem aderir a nenhuma teoria ou ideologia que o caracterizasse como dependente. De modo que não se pode adjetivar a epistemologia fundante de sua teoria pedagógica com apenas um autor ou tendência filosófica exclusiva. O que se pode afirmar é que sua epistemologia se fundamenta no construtivismo dialético-fenomenológico, referenciado numa enorme diversidade de pensadores. Isto, entretanto, não significa ecletismo.

A filosofia de trabalho de Paulo Freire tem origem num elemento ético fundamental, muito mais que em teorias. O seu método cognitivo-pedagógico teve como objetivo essencial uma perspectiva filosófica que se empenhou em reafirmar e recuperar a palavra como direito humano, entre populações de trabalhadores analfabetos e silenciados. Sua pedagogia propôs a afirmação do ser humano como ser da palavra. Daí que encontramos, na fundamentação filosófica da sua obra principal, Pedagogia do Oprimido, um belíssimo texto-prefácio do professor Ernani Maria Fiori, intitulado “aprenda a dizer a sua palavra”. É desta raiz ética que desponta a sua epistemologia, fundada na dialogicidade e em pressupostos de filosofia da história.

A contribuição de Paulo Freire se orienta no sentido de possibilitar uma educação libertadora das condições opressivas. Por isto denominada pedagogia do oprimido, mediante a educação concebida como prática da liberdade. Lembrando que a categoria “oprimido” possui mais conotação ética do que mesmo sociológica; nomeando o explorado, excluído e silenciado pela cultura do latifúndio, que se caracteriza pela redução dos trabalhadores a uma condição de silenciados. A sua metodologia veio para restaurar a dignidade humana daqueles que, transformados em “quase-coisa”, não podem dizer a sua palavra. No sentido de ultrapassagem desta desgentificação. Afirmar e restaurar a condição humana desses excluídos como seres da palavra e da ação. A palavra e o diálogo são exclusivos da ontologicidade humana. Portanto, também numa condição de terapia existencial, tomando como exemplo a Filosofia Clínica; pois somente é possível a sua efetivação autêntica através do diálogo, através da palavra existenciada em condições de liberdade. Freire, inclusive, referiu-se a este processo educativo como um esforço de expulsão do opressor hospedado na consciência dos oprimidos. Pois os oprimidos se tornam hospedeiros dos opressores. Aliás, uma terapia verdadeiramente humanizadora não pode acontecer em situação antidialógica. Sem diálogo não há construção de pensamento, nem é possível restaurar ou refazer a existência. Por isto a epistemologia freireana poderá contribuir bastante no processo cognitivo-construtivo da Filosofia Clínica.

É mais precisamente na obra Extensão ou Comunicação? que Freire expõe a sua epistemologia, a sua teoria do conhecimento. E a inovação essencial desta gnosiologia consiste em superar a teoria tradicional que resumia o conhecimento à relação entre sujeito e objeto (S—–O). Para afirmar a precedência da intersubjetividade ou dialogicidade; porque nenhum sujeito conhece sozinho, mas com outros, mediatizados pelo mundo. Consciência e mundo coexistem simultaneamente; não há mundo sem consciência, nem consciência sem mundo. Disto vem outro princípio básico de sua teoria: a leitura do mundo precede a leitura das palavras. Não há “eu penso”, mas “nós pensamos”, no encontro dialógico mediatizado pelo mundo cultural dos sujeitos (S¹——–mundo——–S²).

No segundo capítulo deste volume o autor faz um verdadeiro redimensionamento da História das Filosofias, expondo sua crítica ao subjetivismo da teoria tradicional do conhecimento, desde os pré-socráticos até os pensadores existencialistas.

Freire, na sua teoria epistemológica, refere-se ao processo educativo que possibilita aos sujeitos envolvidos na ultrapassagem do senso comum, da consciência ingênua, da curiosidade ingênua, em direção à consciência crítica, à curiosidade epistemológica ou científica, pelo exercício dialógico do compartilhamento intersubjetivo dos saberes, objetivando a transformação de suas vidas, de sua realidade, rumo ao nível mais elevado do conhecimento reflexivo – a “práxis”. Esse termo resume o nível mais profundo da filosofia social, chamada desde Antônio Gramsci, filosofia da práxis.  Isto supõe a educação, o trabalho cultural de reflexão, na construção dialógica, que é problematizadora das condições objetivas desses sujeitos. Pela educação como prática da liberdade, como busca. Isto supõe o perguntar, duvidar, não apenas “facilitar”, como pretendem as teorias conteudistas, psicologizantes e comportamentistas.

Na relação intersubjetiva, pelo encontro dialógico, as pessoas efetuam a admiração e readmiração da sua realidade cultural. Neste processo, essencialmente dialógico-horizontal, em que nenhum sujeito deverá se sobrepor aos demais, a realidade objetivada (admirada) se presentifica à percepção dos sujeitos do conhecimento. Todos se encontram para conhecer, perguntar, investigar, partindo dos conteúdos de sua realidade vivencial. Em Filosofia Clínica (FC) isto poderá ser posto como integrante da historicidade do partilhante. Todos sabem e não sabem algo. Todos ensinam e aprendem algo. Não há saber nem ignorância absolutos. Ambos são relativizados. Esta condição oferece o ponto de partida da busca e construção dos saberes da existência humana.

  • Num primeiro momento os elementos do conhecimento/investigação surgem como algo de que apenas a pessoa se dá conta, como algo que é pouco percebido.
  • No segundo momento, acontece o adentramento mais profundo do objeto percebido ou admirado e destacado da realidade ou contexto maior (a totalidade). São objetos, fatos, temas, assuntos, sentimentos, situados num contexto mais amplo, que pode ser uma história do lugar, da pessoa… (historicidade).
  • No terceiro momento, os sujeitos dialogantes (educador/a-educando/a, filósofa/o clínica/o-partilhante), dirigindo perguntas relativas a esses conteúdos, penetram mais na razão de ser daquilo que está sendo conhecido – o “ontos” do objeto; e a sua razão de ser, o “logos”. Dá-se o começo da tomada de consciência.

Esse dar-se conta, passando ao momento do pensar, possibilitará uma opinião ou doxa. Acontece, assim, um mergulho na profundidade do “objeto” (coisa, fala, ideia, acontecimento…), estabelecendo-se relações. Assim vai tendo lugar a cognoscibilidade do que foi “mirado”, “ad-mirado” e “re-ad-mirado”. Pela re-ad-mira-ação abrir-se-á o caminho do conhecimento, como busca das suas razões de ser e/ou não-ser.

Nesse caminho de escuta, observação, silêncios, ad-mira-ação e re-ad-mira-ação da realidade acontece o momento de se fazer o que Freire nomeou com os termos codificação e decodificação da realidade vivenciada e/ou observada. Certamente, aqui, no âmbito da FC, pode-se fazer uma referência ao tópico Semiose, visto se tratar da codificação das diversas formas de expressão, linguagens, etc. A codificação se refere às várias representações de mundo trazidas pelos educandos/partilhantes. São as representações gráficas, pictóricas, fonéticas, artísticas, que expressam as vivências pessoais e culturais dos sujeitos em dialogicidade. Refletem a polissemia da linguagem. Que, todavia, não pode ser confundida com uma representação unívoca, do tipo publicidade.  À codificação segue-se a decodificação como leitura ou leituras e interpretações do que foi codificado. Trata-se de um dos momentos mais complexos da construção do conhecimento, para que haja o que Freire chama conscientização.

 Na verdade Freire fala em interconscientização, por ser recíproca, para ambos, no processo dialógico. Há um co-pensar, uma interconscientização de ambos, seja educador/a e educando/a; ou filósofo/a clínico/a-partilhante. Pois ninguém conscientiza ninguém; mas todos se conscientizam no processo de construção dos saberes. Há co-aprendizagem, co-pensamento e interconscientização. Num processo de dialogicidade e reciprocidade que se pode chamar transcognitividade.

Deste modo, acontece a tomada de consciência, num primeiro momento; que tenderá e poderá ser progressiva, em direção à “conscientização”. Entretanto, isto não é automaticamente. Pois a consciência é transitiva, dinâmica, mas poderá intransitivar-se. Poderá interromper o processo cognitivo, se submetida a situações de opressão, autoritarismo; enfim, quando a dialogicidade é rompida. Quando a comunicação se torna ausente e a relação passa a uma condição de verticalidade, ou seja: quando uma das partes envolvidas no processo se impõe autoritariamente provoca a interrupção da comunicabilidade e do compartilhamento; e o diálogo pode ser rompido. Isto atinge “os princípios de verdade” (PV). Quando se gera antagonismo entre as pessoas envolvidas, fraturando-se a horizontalidade dialógica, não haverá mais comunicabilidade. Porque foram atingidos negativamente os PV. Lembre-se: isto não se refere à diretividade ou momentos expositivos de conteúdos da aprendizagem, que devem acontecer. O que Freire refuta é o autoritarismo e o nivelamento entre as partes do processo. O professor não pode ser antagônico ao aluno, nem querer nivelar-se. São diferentes, mas não antagônicos. Também não se devem confundir. O mesmo vale para a relação filósofo clínico/partilhante. Sobre isto deve incidir uma reflexão sobre a eticidade desta condição para ambos.

Em situações de trabalho social, cultural ou político, na inexistência ou ruptura da dialogicidade, pode acontecer o extremo da intransitivação, pela fanatização da consciência. Freire se fundamenta teoricamente em Gabriel Marcel, ao nomear esta contradição. Havendo isto, desde então, as pessoas buscam soluções mágicas, lideranças autoritárias, etc. Acontece a perda da confiança dos próprios sujeitos envolvidos, a perda da amorosidade, a rejeição à mudança, por medo da liberdade. Este medo da mudança e da liberdade tende a gerar a crença em soluções imediatas, rápidas, tecnicistas e, inclusive, com apelo à violência, dando origem a situações que chegam ao ódio e à desesperança, naturalizando até a morte; como nas situações históricas de desenvolvimento de práticas que a Sociologia e a Psicanálise nomeiam como fascistas. Instalam-se o ódio ao diferente, o ódio à diversidade, a rigidez de princípios, o dogmatismo, incentivando o ódio de classe, como estamos constatando atualmente, no Brasil e em diversos países do mundo atual. Instala-se uma falsa consciência de que a história pode ser estacionada e negada em termos de processo.

À parte esta referência sociológica necessária, Freire sempre se refere aos dois momentos da cognitividade como sendo a curiosidade ingênua e a curiosidade epistemológica. O conhecimento gerado pela dialogicidade possibilita a saída da primeira rumo à segunda. Isto só acontece mediante uma orientação educativa. E a educação é sempre uma situação gnosiológica. Por conseguinte, a situação de busca que acontece na terapia filosófico-existencial, por exemplo, no contexto da FC, também se constitui como uma situação educativa e gnosiológica entre filósofo/a clínico/a e partilhante. Pois a terapia em geral possibilita outras perspectivas de conhecimento.

Decorrentes da complexidade do processo cognitivo brotam os chamados erros e obstáculos epistemológicos, compartilhados pelas terminologias de Paulo Freire e Gaston Bachelard, ambos pertencentes à concepção histórico-construtivista do conhecimento. Em duas obras de Freire há referências diretas a Bachelard: Pedagogia da tolerância e Pedagogia dos sonhos possíveis. Ambas tratam da leitura do mundo e da leitura das palavras, destacando as questões relativas aos erros e obstáculos impostos aos sujeitos no processo de aprendizagem e sistematização dos saberes. Aqui vale destacar as contribuições de Freire e Bachelard à crítica da interpretação positivista dos fatos e saberes. Para ambos não há dados fixos, fatos puros, ciência pura. Os dados são dados dando-se.  Bachelard se rebelou contra o que chamava “imortalidade dos fatos”; que o senso comum da ideologia neoliberal quer impor como o termo “domínio dos fatos”. Pois os fatos sempre são interpretados. Não há fatos soltos. Tudo está num contexto. O conhecimento sempre tem algo de interpretação. Fatos não são coisas, como afirma o positivismo sociológico.

Em Pedagogia da tolerância, especificamente no capítulo 3, em forma de diálogo, Freire reflete com o interlocutor (Patrick) sobre questões de etnociência e senso comum, partindo da pergunta: “há episteme no saber dos indígenas”? Freire responde afirmando que “em todo processo de compreensão do mundo há um processo de produção e compreensão do conhecimento. Em todo processo de produção do conhecimento, está implícita a possibilidade de comunicar o que foi compreendido, o que você faz não apenas com a linguagem oral, mas também com desenhos e com várias outras linguagens. (…) A minha convicção é de que a gente tem que partir mesmo da compreensão de como o humano com quem a gente trabalha compreende (…) a minha grande preocupação é com a ética: como é que eu respeito a cultura do outro. Mas respeitar a cultura do outro não significa manter o outro na ignorância sem necessidade; fazê-lo superar sua ignorância não significa ultrapassar os sistemas de interesses sociais e econômicos de sua cultura. É como se houvesse gente inteligente num outro planeta, noutro universo, e viesse aqui e dissesse a mim que eu devo pensar da forma absolutamente contrária àquilo que penso, pois lá já se pensa diferente. Não posso me submeter a uma coisa dessas.” E Freire repete que “o conceito de ignorância é um conceito relativo; pois, em primeiro lugar, ninguém é absolutamente ignorante. Ninguém. Você ignora coisas e sabe coisas. O ser humano fundou-se com base na curiosidade. Esta é a fonte fundamental do conhecimento. Mas a curiosidade também gera interesses e usa interesses. É preciso compreender como a compreensão do outro se dá e se na chamada cultura científica você tem um caminho que dá um resultado possivelmente mais exato que o outro caminho que está sendo usado. No mínimo você se obriga a mostrar que há. Eu sou pela defesa permanente da revelação, ao educando, das diferenças, que há diferenças, e que vale dizer que você não pode ficar numa perspectiva estreita e exclusivista: só como eu penso é verdade, mas pelo contrário, discutir as possibilidades das diferenças legítimas. E´ por isso que, nessa questão epistemológica da passagem do saber do senso comum para um saber científico, eu acho que há uma superação, e não uma ruptura. A curiosidade que empurra o conhecimento é a mesma, seja a do índio e a da gente; o que há é uma superação no encontro dos achados; quer dizer, pode ser que até, eticamente, a gente fique atrás, mas, do ponto de vista da compreensão da realidade e do mundo, a gente, rigorizando a busca do objeto, pode achá-lo com mais precisão, o que não significa que você invalide o achado do índio. Eu acho que há muita arrogância nossa, dos intelectuais, dos cientistas. Isso nos faz cair na arrogância, é autoritário e não democrático; e viola as qualidades ontológicas do ser humano”.

 O diálogo trata da pesquisa de um estudante que teve sua tese rejeitada por um professor que não admitia o saber indígena como episteme, pois dizia que só há episteme na ciência. E conclui o diálogo perguntando: “…mas o conhecimento do índio não tem esse rigor que você está dizendo, porque eles não sabem a escrita. Mas como posso dizer que não tem rigor, quando eles conversam todos os dias sobre os acontecimentos e estão se socializando? (…) Um conhecimento que faz tantos anos que vem sendo elaborado e socializado, porém não escrito, mas vivenciado. Como você pode dizer que não é um conhecimento que tem tanto rigor quanto o seu? (…) No fundo, quer dizer que, lamentavelmente, isso é uma tese de Bachelard, grande epistemologista francês, filósofo e poeta. Gaston diz claramente que a passagem de um nível para outro é radicalmente fundada na ontologia, acho que isto é superação. E, precisamente porque o nosso lado é o lado do poder, a superação se dá em favor de nós; se o lado do poder estivesse no dos índios, a superação seria deles; mas como eles não têm poder de mandar em nós, nós dizemos que superamos em favor de nós”.

Em outro texto, Pedagogia dos sonhos possíveis, especificamente no capítulo “alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra”, ainda discute a mesma temática, com ênfase nas categorias do “erro” e dos “obstáculos epistemológicos” no contexto da aprendizagem. Coloca em destaque a constatação das duas leituras: a leitura do mundo e a das palavras. Acrescenta que “os educandos relacionam a essa leitura anterior do mundo, se relacionam os signos e símbolos da interação local do estar-no-mundo, dessa presença no mundo que se vai construindo enquanto comunicação e historicidade”. Sua insistência principal se volta para o respeito que educadoras e educadores devem ter relativamente aos níveis de conhecimento que os educandos trazem ao ambiente educacional, e que necessariamente expressam sua identidade cultural e passam pelo corte de classe social.  “… educandos trazem uma linguagem, uma sintaxe, uma semântica; que os linguistas chamam competência linguística. Entretanto, em geral nas escolas há um desprezo burocrático por tudo isto que se deu antes das escolas, e que vai continuar se dando, apesar da escola. Como se a escola assumisse por decreto divino a tarefa de apagar da memória e do corpo consciente dos meninos essa linguagem, que é também sentimento, comportamento e percepção do mundo. Ou seja, desrespeita-se a dialética própria no reconhecimento e construção dos seus referenciais de tempo, espaço e, portanto, de sua situação histórica. A negação deste saber experiencial revela uma ideologia elitista e autoritária da escola. A escola é autoritária e elitista, entre outras razões, porque só aceita como válido o saber já montado, o saber pseudamente terminado. Aí há um erro científico, também um erro epistemológico. É que não há saber nenhum que esteja pronto e completo. O saber tem historicidade pelo fato de se construir durante a história e não antes da história nem fora dela. Então, o saber novo nasce da velhice de um saber que antes foi também…”

Não se trata de manter os educandos no nível de saber em que eles se acham. Pelo contrário. Mas é preciso evitar que educadores pensem numa progressão de conhecimento no sentido da hierarquização atual do conhecimento; como se o estabelecimento de uma norma culta para a escola fosse o único caminho para se chegar a uma norma mais culta, com critério ideológico. Passando a conotação de que na escola se ensina um saber puro cuja excelência deva ser defendida das impurezas da linguagem das classes trabalhadoras.

Freire propõe que educadores/as e educandos/as progridam reconhecendo outros conhecimentos, inclusive das classes populares, das minorias étnicas, etc. E declara: “lembremos Bachelard, que sugere verdadeira “pedagogia do erro”, na qual o erro deve ser revisto não como reflexo do espírito cansado, mas, na maioria das vezes, como um obstáculo epistemológico, um obstáculo ao ato de conhecer e um desafio da realidade ao seu enfrentamento …é o obstáculo ideológico ao não prosseguimento no reconhecimento ou na construção de outros conhecimentos… Seria preciso que a compreensão do erro em Bachelard fosse democratizada. O que quero dizer é o seguinte: que a grande maioria dos educadores passasse a entender o erro assim e passasse também a acrescentar à compreensão do erro, enquanto obstáculo epistemológico, a compreensão da força da ideologia, quase sempre na raiz do obstáculo epistemológico. E em lugar de óbice para o processo de conhecer, o erro passaria a constituir-se como um momento do processo. Quer dizer, um momento importante. Um momento fundamental do processo de conhecer é errar…  isto diminuiria o autoritarismo de educadores que fazem do erro um motivo de punição. O que a gente precisa fazer na prática pedagógica é mostrar que, se a curiosidade se equivoca ou erra, não deve, por isso, ser punida. Eliminar essa conotação punitiva.  Avaliar sim, mas considerando também aquilo que houve no tempo vivido pelos educandos, não apenas no tempo da escola, considerando que a escola raramente busca fazer a ligação do que ela aprende na escola com o que aprende no mundo. E considerar que não existe rigorosidade pura. Toda rigorosidade convive com o seu contrário; pois a ingenuidade é ponto de partida para a própria rigorosidade. Não despreze a ingenuidade, não ponha entre parênteses as emoções e sentimentos”.

Tais são alguns dos tópicos que podemos discutir com base nestes pensadores, em termos de epistemologias que contribuem para o aprofundamento do pensamento filosófico em geral e, especificamente, da Filosofia Clínica.

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BIBLIOGRAFIA:

BACHELARD, Gaston. Os Pensadores. S. Paulo; Abril Cultural, 2ª ed. 1984.

FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro; Paz e Terra, 2013.

___________. Pedagogia da Tolerância. Rio de Janeiro / São Paulo; Paz e Terra. 2016.

___________ Pedagogia dos Sonhos Possíveis. Rio de Janeiro / São Paulo; Paz e Terra, 2018

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*Autor do livro “Pressupostos epistemológicos da pedagogia freireana”, publicado como edição do autor, pela Type Digital Solutions, São Paulo, 2020.