FILOSOFIA CLÍNICA-FC / EPISTEMOLOGIA

A palavra epistemologia é formada pela junção de dois termos de origem grega, a saber:
Episteme: conhecimento, ciência.
Logia (derivação de logos): elocução, explicação, discurso, pensamento, razão explicativa, faculdade da razão.
E logos também pode ser traduzido por palavra, verbo, investigação ou teoria de um tópico particular.
Desta forma, epistemologia é: “Teoria do conhecimento, o ramo da filosofia que investiga a natureza e a possibilidade do conhecimento. A epistemologia trata também do alcance e dos limites do conhecimento humano, e do modo como este é adquirido e retido. Investiga ainda algumas noções correlatas como, por exemplo, percepção, memória, prova, indício, crença ou certeza” (Dicionário de Filosofia, Direção de Thomas Mautner, Ed. Lexis 70, p. 255).
Epistemologia também é um tópico abordado em Filosofia Clínica-FC. Tópicos, podemos dizer, são “partes” da Estrutura de Pensamento-EP que sinalizam, para o Filósofo Clínico, aquilo que é preponderante para a compreensão de como está organizado o pensamento e como se dão os modos de pensar do partilhante, a pessoa que procura a clínica para partilhar sua história e sua vida com o terapeuta. Ressaltamos que ao usar o termo “partes”, não queremos dizer com isso que o pensamento seja “partido” ou “dividido”. Esse é apenas um recurso metodológico usado para o entendimento do “todo” que é aquela pessoa, na sua singularidade, com seu modo próprio de pensar, de ser e estar no mundo.
Ao abordar este tópico, o Filósofo Clínico irá “pesquisar” como o partilhante busca e constrói, quais os modos, os caminhos que o levam ao aprendizado, ao conhecimento.
Mesmo que esse não seja um tópico determinante para a pessoa, talvez valha investigá-lo, pois o terapeuta poderá fazer uso dele, como já dissemos acima, para entender quais os caminhos e meios que ela usa para conhecer, ou mesmo para ajudá-la na construção ou na tomada de consciência desses meios. Sabendo como aprende e como busca o conhecimento, melhor dizendo, quais os modos que contribuem para um melhor aprendizado e conhecimento, aquela pessoa poderá, com mais tranquilidade, assimilar os conhecimentos necessários para a sua existência em todos os aspectos e circunstâncias: pessoal, familiar, profissional, social etc. Fazendo uso desse recurso, o Filósofo Clínico estará aplicando a epistemologia como sub-modo. Além de serem apontados como tópicos, em FC, os sub-modos são a maneira formal, o método que o terapeuta usa para ajudar a pessoa a trabalhar suas questões; são também a maneira informal que a pessoa usa com este mesmo fim.
Podemos considerar que a FC também é e tem uma epistemologia, pois constrói caminhos próprios que levam ao aprendizado, ao pensar e ao agir filosóficos. A FC usa esse conhecimento para reinterpretar, reelaborar, ressignificar e aplicar na vida cotidiana. Com isso facilita e incentiva os mais diversos modos de pensar, ser e atuar no mundo e, assim, se abre e reconhece as singularidades que o compõem.
Paulo R. Grandisolli/Cláudio Fernandes
 
 

Filosofia e Natureza

Em Filosofia, uma das concepções e interpretações mais antigas é a de Natureza “como princípio de vida e de movimento de todas as coisas existentes. (…) ‘Permitir a ação da Natureza’; ‘Entregar-se à Natureza’; ‘Seguir a Natureza’ e assim por diante são expressões sugeridas pelo conceito de que a Natureza é um princípio de vida que cuida bem dos seres em que se manifesta” (Dicionário de Filosofia, NIcola Abbagnano, Martins Fontes, 2007, p. 814).
Aproveitando o ensejo do “Dia da Árvore”, um dos símbolos da Natureza, e para que não nos esqueçamos, poderíamos reforçar a interpretação de que “a Natureza cuida bem dos seres em que se manifesta”. Vale nos questionarmos se nós, animais da espécie humana, nos consideramos seres em que a Natureza se manifesta ou se nos vemos como apartados dela.
Se nos tornamos e nos consideramos seres apartados, nosso pensamento e comportamento é e continuará sendo de dominação e devastação. Pensamento e comportamento de uma elite político-econômica-financeira que tem se embrutecido descaradamente a cada dia.
Mas ainda é tempo de não nos esquecermos que fazemos e somos parte da Natureza, se assim quisermos, se essa fora nossa vontade e determinação.
E, falando em lembrança, a memória de nossas origens é de fundamental importância para que, assim como “a Natureza cuida bem dos seres em que se manifesta”, nós também tenhamos esse mesmo cuidado para com as árvores, para com o conjunto da Natureza da qual somos e fazemos parte.
Paulo R. Grandisolli

UM ASPECTO DO FILOSOFAR DA FILOSOFIA CLINICA

Em sua obra Filosofia e Circunstâncias*, no Epílogo – O que significa filosofar, o filósofo espanhol Adolfo Sanchez Vázquez (1915 – 2011), ressalta a necessidade e importância de distinguir a produção filosófica e a prática do filósofo, sendo esta última efeito da primeira, supondo que todo filósofo produza filosofia e filosofe desde um lugar referenciado, contextualizado.
Citando o filósofo Immanuel Kant (Alemanha, 1724 – 1804), Vázquez ressalta que a filosofia é a produção de “objetos que são as doutrinas, teorias, categorias ou conceitos filosóficos” e o filosofar o modo como esse conhecimento insere-se “na própria vida do filósofo”.
É pertinente, segundo Vázquez, ainda citando Kant, fazer a distinção “com a qual o acento se coloca, sobretudo, não na filosofia, mas no filosofar. O que, por sua vez implica pôr o acento na aspiração, finalidade ou intenção com que o sujeito – o filósofo – produz certo objeto ou exerce sua atividade”.
Ele ainda faz referência a Karl Marx, outro filósofo alemão (1818 – 1883), cujo distintivo “é por em primeiro plano essa atividade prática, vital, que (…) suporta o imperativo moral de transformar o mundo que, para o filósofo, converte-se no próprio imperativo de pôr seu filosofar em concordância com essa finalidade”.
Sendo a Filosofia Clínica uma terapêutica existencial, podemos dizer que ela também é um exercício prático da filosofia, é um filosofar praticado pelo Filósofo Clínico junto ao partilhante, caminhando com ele, durante o processo clínico, no sentido de auxiliá-lo a buscar as transformações necessárias para o seu modo de ser, de estar e de agir no mundo, sempre de acordo com o que a pessoa almeja. E em se tratando, por exemplo, de alguém que tenha um envolvimento com as causas político-sócio-ambientais etc, e que traga essa questão/inquietação para a clínica, obviamente, o Filósofo Clínico colaborará para que o partilhante atue, como diz Vázquez, para “transformar o mundo humano que, por injusto, não podemos nem devemos fazer nosso, (…) e não se deve aceitar a injustiça. Trata-se de transformar o que é não só porque ainda não é, mas também porque deve ser”.
Vale observar que o Filósofo Clínico, como terapeuta, embora coloque sua ênfase no filosofar, não significa dizer que ele também não produza filosofia enquanto teoria, pois estuda e busca construir um conhecimento teórico que dê sustentação para sua prática filosófica e para seu agir na transformação de si e do mundo.
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*Ed. Civilização Brasileira, 2002, p. 541-549.
Paulo Roberto Grandisolli
 

A filosofia e o filosofar

O filósofo espanhol Adolfo Sánchez Vázquez (1915-2011), que viveu exilado no México devido à perseguição política da ditadura do General Francisco Franco Bahamonde na Espanha (1939-1975), similar à ditadura militar brasileira (1962-1985), guardadas as devidas proporções, defende uma filosofia engajada, isto é, se a produção e a prática da filosofia, pautada na concepção de Karl Marx, filósofo alemão (1818-1883) não contribuir para transformar o mundo, pode tornar-se, a Filosofia, ela mesma, mera interpretação.
Em sua obra Filosofia e Circunstâncias*, no Epílogo, Que significa filosofar?, Vázquez ressalta a necessidade e importância de distinguir a produção filosófica e a prática do filósofo, sendo esta última efeito da primeira, pois todo filósofo filosofa desde um lugar referenciado, contextualizado, embora, muitas vezes, sua produção ganhe “corpo em determinados textos que em sua trama abstrata, conceitual e objetiva parecem apagar as marcas do homem que o produziu.”
O autor aponta a clássica distinção feita por outro filósofo alemão, Immanuel Kant (1724-1804), “que pressupõe a distinção entre filosofar como atividade e filosofia como seu produto ou resultado”, sendo a filosofia “as doutrinas, teorias, categorias ou conceitos” e o filosofar o modo como esse conhecimento insere-se “na própria vida do filósofo, seja como prática especializada, profissional ou acadêmica (…), seja fora da universidade ou da sala de aula, como acontece com o filosofar rueiro de Sócrates, o prático-político de Marx ou o mundano de Sartre” (Jean-Paul Sartre, filósofo francês, 1905-1980).
É pertinente, segundo Vázquez, ainda citando Kant, fazer a distinção “com a qual o acento se coloca, sobretudo, não na filosofia, mas no filosofar. O que, por sua vez implica pôr o acento na aspiração, finalidade ou intenção com que o sujeito – o filósofo – produz certo objeto ou exerce sua atividade”.
Nesse texto, o próprio Vázquez coloca-se como filósofo produtor de um conhecimento próprio, perguntando-se e assinalando “qual é a finalidade prática, vital, à qual ele pretendeu servir: transformar o mundo humano que, por injusto, não podemos nem devemos fazer nosso. (…) Por isso, diante das recentes lições da história e as incertas perspectivas que alimentam, cabe também perguntar por que empenhar-se nessa transformação e não deixar as coisas como estão? A pergunta provoca uma resposta que ultrapassa a dimensão política, a saber: porque esse mundo é injusto, e não se deve aceitar a injustiça. Trata-se de transformar o que é não só porque ainda não é, mas também porque deve ser. A política tem que impregnar-se de um conteúdo moral que impeça seja ela reduzida a uma ação instrumental.”
(Não fosse outra a intenção, caberia aqui fazer uma analogia com a realidade brasileira atual, quando vivemos sob os desmandos de um governo que pratica uma política “reduzida a uma ação instrumental” voltada para os interesses das elites e oligarquias financeiras nacionais e internacionais. Mas esta seria uma outra história, embora tudo esteja relacionado, de alguma forma.)
Nota-se que Adolfo Vázquez, como dito no início, produziu e praticou filosofia também desde sua experiência de perseguido e exilado político, engajando-se na luta pela transformação da realidade sócio-política-econômica em que viveu, tanto na Espanha/Europa como no México/América Latina-Caribe** estando essa última, à época, sob o jugo do imperialismo e da exploração das grandes potências mundiais, especialmente os EUA.
Como consideração final do texto, o referido autor diz que: “Na verdade, toda filosofia tem efeitos práticos, ainda que sua finalidade, ao produzi-la, tenha sido meramente teórica”, citando novamente Marx, cujo distintivo “é por em primeiro plano essa atividade prática, vital, que, como temos salientado, suporta o imperativo moral de transformar o mundo que, para o filósofo, converte-se no próprio imperativo de pôr seu filosofar em concordância com essa finalidade”.
Queremos aqui ressaltar, em nossa mundivisão e em nosso modo de ver a filosofia, a importância de estudarmos, relermos, reinterpretarmos toda a produção filosófica realizada até então, como também a de produzirmos outras filosofias, que nasçam desde uma determinada realidade e que provoquem posturas filosóficas, filosofares que contribuam para as necessárias transformações do mundo em que vivemos, a começar, e paralelamente, pelas próprias transformações que, porventura, cada pessoa busca para sua vida, para o seu cotidiano.
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*Edição da Civilização Brasileira, 2002, p. 541-549.
**À época, a América Latina vivia sob o jugo do imperialismo e da exploração das grandes potências mundiais, especialmente os EUA. Passado o tempo e destarte todas as lutas pela independência e autonomia enquanto Pátria Grande e bloco de importância geo-político-econômico estratégico mundialmente, podemos dizer que a exploração e a dominação continuam, interna e externamente. Por isso, em nosso entendimento, faz-se necessário um filosofar que pense e atue na direção de um pensamento e de uma prática autônomos e que contribuam para firmarmos modos próprios de ser e estar no mundo enquanto povo latino-americano e caribenho.
Paulo Roberto Grandisolli

Poetofilosofia*

Da antiguidade até o presente, a história das filosofias e das literaturas em geral estão cheias de pensadores-poetas. Desde os pré-socráticos gregos, que eram filósofos-poetas, até Frederico Nietzsche e Gaston Bachelard, em cujas obras se mesclam voos filosóficos plenos de uma literatura acenando claramente para a poesia. Foram autores de uma prosa poética extraordinária.
A mundivisão filosófica não admite fronteiras rígidas e separadas nas áreas do conhecimento. Razão por que está sempre apontando para um “não-se-sabe-o-quê”, que poderá ser atingido poeticamente.
Como saber dialogante, em todos os povos que a cultivam, desde os primórdios de sua tomada de consciência como razão, a Filosofia se encontra tangencialmente com a Poese. Está em constante diálogo com a literatura. Enquanto atividades culturais podemos afirmar que, embora distintas, são inseparáveis. Consequentemente, Filosofia e poesia, que não se confundem nem são complementares, sempre se reencontram na história do pensamento. Diversas, mas dialogantes; enquanto participam da literatura, surgem nas literaturas das diversas culturas. A Poesia, por ter sido cronologicamente a primeira forma de pensamento, nos mitos e cosmogonias; a Filosofia, mais tardiamente, como logos, discurso conceitual e explicativo, surge como interpretação e crítica das mitologias, mas sem tomar o lugar da Poese. E é precisamente no campo da literatura dos povos cultivadores da escrita que elas dialogam, através dos seus pensadores, sobretudo aqueles que se dedicam à ficção literária, no romance, através da prosa. Inclusive, como dado literário inegável, torna-se difícil separar, na maioria dos autores, prosa e poesia. São escritores que escrevem fazendo uso de uma prosa poética.
Quanto à tematização da relação entre Filosofia, Literatura e Poesia podemos rastrear e vislumbrar isto desde o pensamento dos gregos, em Platão e Aristóteles, passando pelos renascentistas, pós-renascentistas, como Giambattista Vico, até os escritores modernos de meados do século XX, a exemplo de Bachelard, Michel Foucault, Blanchot, Heidegger, Sartre, Deleuze; sem esquecer György Lukács, grande especialista em Literatura e Filosofia da Arte. De modo que, mesmo não tendo escrito poemas, todos tiveram a literatura como temática de suas reflexões.
Enfim, na grande maioria dos melhores escritores, principalmente romancistas, torna-se impossível separar prosa e poesia. Alguns que não se dizem poetas, entretanto, escrevem como poetas. Fazem uso de uma prosa poética, pela forma e o recurso das metáforas e imagens com que se instrumentalizam para expressar a sua relação com o mundo da vida. Tais escritores, evidentemente, pensam o mundo mediante a sua produção literária.
Para mim os melhores escritores são especialmente aqueles que possuem esta característica de escritores-poetas; mesmo que não recorram às formas específicas do gênero poético tradicionalmente conhecido, como sonetos, paralelismos, estrofes e rimas. Aqueles que mais atingem e expressam a humanidade. Certamente porque compreendem e intuem que a vida é muito complexa e enigmática para ser comunicada e pensada apenas mediante conceitos. Mais ainda, por outra razão que considero princípio epistemológico: por perceberem que o sujeito humano, em sua condição existencial de sujeito cognoscente, não o faz de modo compartimentado. Pois é um sujeito que indaga, pergunta, busca, duvida, investiga, percebe, não somente através do raciocínio técnico, lógico-dedutivo, mas movido pelo desejo, como corpo que se apercebe em contínua tomada de consciência; como totalidade de sentimentos e sensações. Como sujeito que sofre, alegra-se, projeta, se entristece, imagina, cria e toma consciência de sua finitude enquanto parte de um cosmos virtualmente infinito que não se deixa apreender em sua totalidade inacabada. Sujeito que faz a experiência da complexidade da vida enquanto exprimível/inexprimível, enquanto dialética de sentido/não sentido; mediante a atitude poético-filosófica enquanto fronteiras intercomunicantes que detectam a própria experiência da incomunicabilidade: a perplexidade face ao desconhecido e imprevisível que é a vida.
Pensadores que dialogam com as diversas fronteiras do conhecimento filosófico-literário são produtores de uma poetofilosofia; uma poesia pensante. Sem a pretensão de eliminar a necessária distinção entre o filosófico e o poético, Filosofia e Poesia.Saberes diferentes, sim, mas dialogantes, enquanto formas de literatura.
É no campo da literatura que elas dialogam, porque toda forma de saber sempre supõe fronteiras, ao se deparar com seus limites. Ao mesmo tempo, é necessário que tais fronteiras não se fechem. Isto não é uma mera questão de metodologia, mas uma necessidade que brota do desejo humano de indagação e busca de respostas que possibilitem melhor fruição dos momentos da vida. A Filosofia enquanto esforço explicativo, conceitual, como sapiência “onisciente”, argumentativo; a Poesia como “omnissentiencia”, (uma forma de sentir tudo); admiração contemplativa, indeterminabilidade. O poema é canto, por ser ritmo e rima; convoca-nos ao silêncio; mas também nos move à ação-reflexão. Enfim, ambas são saberes. Poesia não é puro sentimento, imaginação ou delírio; pois encerra uma forma de percepção, ao pretender pronunciar o mundo numa outra perspectiva de saber – a perspectiva estética.Por isso se torna pensante. A poesia é memória; um tipo de memória que pode recuperar até mesmo aquilo que a nossa mente julgava perdido. Isto encontra-se na raiz da história do pensamento. E a ponte entre ambos se efetua pelo diálogo. Um diálogo entre pensador e poeta, filósofo e poeta, dirigido pelo pensamento, originando um pensar poético.Num mesmo pensador ou entre vários, naturalmente.
*Marcelo B. Oliveira – in Poetofilosofia/2015

Filosofia Clínica, Auto-ajuda* e cuidado de si

Tem-me incomodado as constantes referências que ouço fazerem ou que eu mesmo faço à expressão auto-ajuda por aí afora. Por isso fui ao dicionário** buscar referência aos termos “autoajuda” (nos dicionários pós-acordo ortográfico já é grafado assim) e “ajuda”.
Autoajuda
substantivo feminino
1 prática que consiste em fazer uso dos próprios recursos mentais e morais para alcançar objetivos de ordem prática ou resolver dificuldades de âmbito psicológico
2 conjunto de informações, orientações, conselhos que visam possibilitar essa prática
Exs.: curso de a.
livro de a.
Ajuda
substantivo feminino
ação de auxiliar, de socorrer; assistência
Desse modo, se ajuda é essa tal de “ação de auxiliar, de socorrer; assistência” e autoajuda é “fazer uso dos próprios recursos mentais e morais para alcançar objetivos ou resolver dificuldades”, por que, então, as psicoterapias e a Filosofia Clínica não poderiam fazer uso desse termo, sendo que têm por objetivo ajudar as pessoas que procuram a terapia a auto-ajudarem-se elas mesmas, no enfrentamento das questões que trazem para a clínica?
Está certo que, talvez principalmente após a explosão e a exploração de inúmeras publicações, bem como a proliferação de cursos e “terapias” que vendem auto-ajuda, o termo passou a ser visto, por muitos, pejorativamente. E até concordo que determinadas ofertas do que se apresenta como tal devam ser questionadas, mesmo porque o mercado capitalista usa de toda e qualquer artimanha para lucrar, mesmo diante da dor e do sofrimento, da angústia e da tristeza das pessoas, da sociedade como um todo. E daí aquela derivação que muitos também usamos de “autor-ajuda”, dado o lucro que o mercado editorial e certos autores têm com esse tipo de produto.
Bem, mas meu incômodo, como disse no início, não é de nos apropriarmos do termo auto-ajuda, mas sim de o ressignificarmos, dando-lhe a direção apontada pelo dicionário. Através de nosso trabalho como terapeutas, como Filósofos Clínicos, deveríamos enfatizar que a terapia objetiva levar as pessoas a auto-ajudarem-se, a serem elas mesmas condutoras de suas vidas naquilo que o pensador francês, Michel Foulcault***, em sua obra Hermenêutica do Sujeito, ressaltou como o cuidado de si.
Nessa obra, o autor busca resgatar das tradições e das escolas filosóficas da Grécia antiga, como a epicurista, a estoica, a cínica****, por exemplo, o cuidado de si, que, para ele, ficou subjugado ao conhecimento de si. O conhece-te a si mesmo não pode sobrepor-se ao cuide-se de si mesmo. O cuidado de si é caminho para o auto-conhecimento e este auto-conhecimento só faz sentido se levar ao cuidado de si.
Faço uso aqui das palavras do Psicólogo Clínico Rafael Trindade: “a intenção de quem cuida de si é fazer emergir uma outra natureza, própria, não dada, e, portanto, originariamente ainda não conhecida”; “o cuidado de si conduz a um novo eu, uma nova relação consigo mesmo. Passamos da verticalidade para a horizontalidade”; “Cuida de ti mesmo, para ser capaz de enunciar de ti mesmo a verdade”.*****
Ao menos para mim, entendo que ninguém consegue ajudar-se sozinho: é na relação com os outros e através da intermediação dos outros que vamos nos auto-ajudando, nos auto-cuidando e nos auto-conhecendo. E, sempre em meu entendimento, a terapia filosófica tem essa grande responsabilidade como intermediadora, aquela que vai oferecer meios, sempre de acordo com a história de vida e o modo de pensar e ser da pessoa, para que ela mesma se auto-ajude, se auto-cuide, se auto-conheça e construa seus caminhos, busque e teça as suas verdades e as coloque diante de tantas outras verdades, com autonomia e abertura para a necessária relação e convivência consigo mesmo e com a coletividade.
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*Embora o novo acordo ortográfico estabeleça que a grafia correta, de então em diante, seja “autoajuda”, quis aplicar o uso anterior ao tal acordo, “auto-ajuda”, nesse caso, tão somente por uma razão estética de minha parte, por achar que fica mais bonito esse modo de grafar o termo no português brasileiro usado até então. Nem sempre precisamos nos submeter aos estrangeirismos, seja de Portugal, seja de onde for…
** Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 2009.3
***Filósofo francês (1926-1984)
****Epicurismo: doutrina do filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.); Estoicismo: doutrina fundada por Zenão de Cício (Grécia – 335-264 a.C.); Cinismo, doutrina fundada por Antístenes, filósofo grego (Grécia – 445-365 a.C.): embora cada uma com doutrina própria, todas praticavam a filosofia como um “estilo de vida”, como uma ética, um modo de pensar e ser diante do mundo. OBS.: Escola Cínica – não confundir com o termo “cínico” e a prática “cínica” corrupta e fascista que sempre marcaram e marcam determinadas políticas, determinados governos e determinados comportamentos individuais/sociais de outrora e de nossos dias.
*****Artigo “Foulcault – Conhecimento e cuidado de si”, in https://razaoinadequada.com/2016/11/27/foucault-conhecimento-e-cuidado-de-si/
Paulo R.Grandisolli