Poese e Liberdade em Cecília Meireles

Os dois maiores épicos da literatura brasileira, para mim, são Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. O primeiro, produzido no período literário pré-modernista, em inícios do século XX, um texto denso de conhecimentos de antropologia, sociologia, geografia e historiografia dos sertões nordestinos que revela, ainda hoje, o mundo desconhecido das relações de poder desumanificadoras de milhões de seres humanos, na terra que deveria lhes pertencer, mas que, no entanto, vivem absolutamente entregues à exploração do trabalho semiescravo do latifúndio e à mercê das intempéries das secas. O segundo, um romance histórico poetizado que desenvolve vasto material de reflexão sobre a história da construção da liberdade do Brasil colonizado, especificamente no contexto do século XVIII.
 
É importante destacar que o texto de Euclides não é meramente técnico-científico. Possui uma poesia em sua linguagem, ao falar sobre a psicologia da alma e do corpo dos sertanejos nordestinos. Suas descrições, constatações e narrações estão plenas de um conhecimento sobre a cultura, o ambiente, as árvores, a comida, a vida dos sertanejos, que ultrapassa o âmbito do saber técnico de sua visão como engenheiro. Há um sentimento que anima todo o texto, de origem bem diversa da que lhe foi encomendada e pretendia o autor, inicialmente. Historicamente sabe-se que Euclides foi enviado ao arraial de Canudos para uma cobertura jornalística da ocupação e destruição daquela população pelas forças policiais do governo brasileiro. Todavia, lá chegando, sua visão  se ampliou para outros parâmetros. E graças a sua obra não ficamos sem um registro histórico da tragédia genocida que lá ocorreu.
 
Paralelamente, tempos depois, em uma circunstância bem diversa, mas num processo intelectual que considero análogo, aconteceria com Cecília Meireles, na cidade mineira de Ouro Preto, em Minas Gerais, algo daquilo que havia ocorrido com Euclides, ante a destruição de Canudos.
 
Cecília havia chegado àquela cidade com o objetivo de fazer uma reportagem jornalística sobre os atos litúrgicos e comemorativos das celebrações da semana santa. Simples tarefa de jornalista. Contudo, não sei se de súbito ou progressivamente, o ímpeto poético arrebatou-a e a fez redescobrir outra forma de cognoscibilidade sobre aquilo que contemplava. Seu olhar foi mais longe. Como ela mesma escreveu, certa vez: “eu bebo o horizonte”!
 
Eloquente e belíssima a conferência que escreveu e pronunciou naquela cidade, em 1955, sobre como escreveu o seu Romanceiro da Inconfidência, e que hoje serve como leitura-prefácio indispensável para quem deseja mergulhar na compreensão de seu texto. A poeta narra como aconteceu a sua mudança de percepção para a elaboração deste poema épico cujo tema filosófico central é a liberdade. Somente as palavras da própria Cecília nos podem encher os olhos da inteligência para adentrarmos melhor na sua perspectiva. Por isso quero deixá-la falar.
 
“Quando, há cerca de 15 anos, cheguei pela primeira vez a Ouro Preto, o Gênio que a protege descerrou, como num teatro, o véu das recordações que, mais do que a sua bruma, envolve estas montanhas e estas casas; e todo o presente emudeceu, como plateia humilde, e os antigos atores tomaram suas posições no palco. Vim com o modesto propósito jornalístico de escrever as comemorações de uma Semana Santa; porém os homens de outrora misturaram-se às figuras eternas dos andores; nas vozes dos cânticos e nas palavras sacras insinuaram-se conversas do Vigário Toledo e do Cônego Luiz Vieira; diante dos nichos e dos Passos brilhou o olhar de donas e donzelas, vestidas de roupas arcaicas, com seus perfis inatuais e seus nomes de outras eras. Na procissão dos vivos caminhava uma procissão de fantasmas: pelas esquinas estavam rostos obscuros de furriéis, carapinas, boticários, sacristães, costureiras, escravos, e pelas sacadas  debruçavam-se aias, crianças, como povo aéreo a levitar sobre o peso e a densidade do cortejo que serpenteava pelas ladeiras. Então, dos grandes edifícios um apelo irresistível me atraía: as pedras e as grades da Cadeia contavam sua construção – o suor e os castigos incorporados aos seus alicerces; o palácio dos governadores  ressoava com as irreverências de Critillo; a Casa da Ouvidoria mostrava o desembargador-poeta, louro, amoroso, suave, com um pré-romantismo inglês a amadurecer nos olhos azuis; o sobrado de Francisco de Paula Freire de Andrada insistia em mostrar suas cortinas de damasco (…); a casa de Cláudio ressoava de suspiros a Nise, de epístolas, de sonetos em português e  em italiano… A Casa dos Contos, esta casa onde o destino me faria falar, centralizava tudo isso (…) E assim a minha Semana Santa era aquela que eu estava acompanhando ao longo destas ruas e era muito mais antiga. Era, na verdade, a última Semana Santa dos Inconfidentes: a do ano de 1789.”
 
Assim descreve simbolicamente como foi tomada pelo ímpeto criativo para recontar poeticamente o drama histórico de Ouro Preto, como parte do drama maior que vivia toda a colônia brasileira.
 
Dirige-se aos montes, aos rios, ruas, pedras, estátuas, templos, casas, vendo-os transportados para o acontecido passado. Como sempre faz em toda a sua poesia, Cecília privilegia o pretérito, apelando à memória poética, para melhor compreender o presente. E continua a sua impressionante descrição, como se abrisse as cortinas de um grande teatro em que passam todos os personagens e acontecimentos já quase perdidos num tempo distante, somente recuperáveis pela memória e a imaginação poética. Para Cecília tudo fala.
 

“Tudo me fala e entendo: escuto as rosas /e os girassóis destes jardins que um dia /foram terras e areias dolorosas,/ por onde o passo da ambição rugia /por onde se arrastava, esquartejado,/o mártir sem direito de agonia. /Escuto os alicerces que o passado/ tingiu de incêndio: a voz dessas ruínas/ de muros de ouro em fogo evaporado”.

 
A Poese possibilitou-lhe, portanto, um novo olhar sobre aquele lócus histórico; de tal modo que, de uma perspectiva meramente jornalística que se pretendia, surgiu-lhe um novo horizonte. Qualquer leitor atento a este épico verá que se entrelaçam, nesta obra ceciliana, o saber e o sentir da poesia, o conhecimento histórico e o grande tema filosófico que perpassa seu conteúdo e o fundamenta, lançando-o definitivamente numa reflexão sobre o passado da nossa formação histórica e cultural: o tema da liberdade; que é também um tema universal integrante de toda a sua poesia. Por isto mesmo, atinge e abarca também o nosso tempo presente, pelo alcance da memória poética.
 
Inesquecível a estrofe que escreveu no romance XXIV, que não canso de repetir e repensar: “liberdade – essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”. Essa exclamação de Cecília chegou aos meus olhos e em mim permaneceu latente durante muitos anos. Foi uma das portas da poesia que acenaram para mim, desde meus tempos de criança.
 
Como tudo se relaciona, com o passar dos tempos, num futuro não muito distante, o tema da liberdade se impôs cada vez mais a todos os meus trabalhos como filósofo da educação, revelando-se como elemento central das lutas históricas dos seres humanos, por ser também tema central em quase todas as filosofias, ao longo da história do pensamento humano. O espanto de Cecília me causou um certo alumbramento através desta sua poesia. Alumbramento este que continua até o presente.
 
Este espanto, esta perplexidade da poeta, reabriu uma das janelas do pensamento que acenava para mim quando criança, ao me defrontar com a beleza e a indiferença do mundo.
 
O horizonte da liberdade aparece como uma aspiração humana universal; com certeza, uma entre as mais importantes, na construção da história. Acredito, disto certamente surgiu a exclamação e constatação da poeta, cuja prática política se caracterizou como expressão desta busca, evidenciada em toda a sua obra  poético-pedagógica.
 
A temática da liberdade, presente em seu épico maior Romanceiro da Inconfidência, como tema filosófico, é conteúdo central em toda a história da Ética e da História das Filosofias. Cecília capta muito bem isto. Além do que, evidentemente, efetua uma evocação da época dos movimentos de rebelião dos brasileiros contra a dominação colonial, após a Revolução Francesa. Desde os movimentos rebeliativos no Maranhão, em Pernambuco, Bahia, ao de Filipe dos Santos e poetas mineiros, junto a Tiradentes. Uma época de sonhos e árduas lutas por libertação. Neste épico, a autora expõe sua narrativa poética fazendo uso de um estilo também popular, o romanceiro, que ela mesma explica como sendo uma composição literária narrativa em versos de natureza lírico-épica, vinda de antigas tradições que remontam à Idade Média; em que se procura preservar a verdade histórica sem desprezar as tradições populares, incluindo os contos, as crenças e até mesmo as lendas.
 
Entretanto, seja relembrado, a obra poético-romântica de Cecília ultrapassa o próprio movimento mineiro, apontando elementos de universalidade para uma reflexão em torno da compreensão da humanidade. Ela nos apresenta um relato com todas as tintas da riqueza do seu lirismo a que muitos denominam lirismo absoluto. Mas não deixa, por seu lirismo, de referir-se à concretude da história brasileira naquilo que a temática possui de regionalidade enquanto expressão da consciência nacional e, ao mesmo tempo, afirmação de valores que integram uma aspiração maior da humanidade.
 
A liberdade é desejo que alimenta e possibilita o pensamento filosófico. A atividade pensante se caracteriza precisamente pela vontade de afirmação e busca desta mesma liberdade. Condição inegociável, seja no exercício da busca de realização e afirmação, na sua efetividade, ou na frustração da sua falta, a liberdade se manifesta como força provocadora da ação humanizadora; seja na arte, na organização política, nas ciências e na Filosofia. Paradoxalmente, enquanto se manifesta como busca e falta. Pois a liberdade é também a constatação ativa da não liberdade que nos impulsiona à sua conquista, pela ação criadora ou reinvenção.
 
Liberdade é sonho, diz a poeta-pensadora. Mas, sonho que se traduz na efetividade diária de práticas reveladoras de consciência histórica; como o demonstrou em seu trabalho de jornalista, escritora e educadora. Em muitos dos seus poemas o tema liberdade surge explicitamente; retomado várias vezes no seu grande épico, aparecendo como “céu da liberdade” em sua obra Canções; por ser tema e lema da bandeira dos chamados inconfidentes. Escreve a poeta: “amanhã, como ontem, é amarga a liberdade” (romances XXIV-XXVI). Liberdade, ainda que tarde. Ouve-se em redor da mesa. E a bandeira já está viva. E sobe, na noite imensa. E os seus tristes inventores / já são réus – pois se atreveram/ a falar em Liberdade (que ninguém sabe o que seja).
 
O pensar filosófico, a Filosofia, assim como a arte, surgem e ressurgem em instantes de lucidez por esta procura de liberdade que gera mais liberdade, como busca de ser mais. Assim reflete Cecília, fazendo encontrarem-se o passado, o presente e o futuro históricos numa só temporalidade, que é o tempo da liberdade. Em uma das suas crônicas intitulada “Ouro Preto” ela já havia escrito, em 1949, que aí o Brasil esteve, pela primeira vez, em dia com a literatura, a ciência, a filosofia e a política.
 
Portanto, como separar poesia e filosofia nesses seres humanos que nos legaram tais pérolas de conhecimento literário? A começar pelos próprios poetas do movimento mineiro; iniciadores de um movimento de consciência histórica nacional, pela sua atividade político-poética de contestação.
 
Como negar a presença de uma mundivisão filosófica subjacente na poese de Cecília? São inúmeros os poemas em que tematiza a aprendizagem, a questão metafísica da busca de sentido para a existência; o não sentido da vida, da dor, o tema da angústia, a estética, o conhecimento, a multiplicidade de eus, o enfrentamento da facticidade da morte. Em mais de trinta volumes que compõem sua obra poética, afora sua obra em prosa, esses temas sobressaem a cada verso. Principalmente a questão da temporalidade. O tempo, a memória, são recorrentes e muitíssimo repetidos em suas poesias. Todos são temas filosóficos, embora apareçam sob a perspectiva estética. Por isto mesmo suscitam a reflexão, enquanto refletem a nossa historicidade e humanidade.
 
Como não reconhecer que tais escritores são também pensadores?  Euclides, Cecília, Castro Alves, Machado de Assis, Lima Barreto e tantos outros, poetas e romancistas, nos fazem pensar filosoficamente. E sobre os quais muito ainda teremos a descobrir, em termos de antropologia filosófica e filosofia da literatura.
 
Como deixar de enxergar o diálogo poesia-filosofia nesses escritores? Impossível não reconhecer tal contribuição. Principalmente em se tratando de uma prosa poética de interrogação metafísica, como a obra de Clarice Lispector, por exemplo.
 
A poesia de Cecília chegou até mim exatamente através daqueles versos sobre a liberdade, num livro escolar dos meus tempos de estudante do ensino médio; época em que eu ainda desconhecia essa estrela da literatura brasileira e universal. Em mim ficou, até que nos reencontrássemos pelos mesmos caminhos do desencanto, da dor, da soledade, do encantamento e da busca por liberdade; tão presentes na sua poesia plena daquilo que experimentamos como sensibilidade humana.
 
Gosto de afirmar que Cecília é a poetisa da dor, do tempo, da solidão e da liberdade. Sem pretender, com isto, simplificar a multiplicidade temática presente nos seus escritos. Pois ela mesma repete que é vária, inúmera e múltipla. “Se me contemplo / tantas me vejo / que não entendo / quem sou, no tempo / do pensamento”. “Esta sou eu – a inúmera. / Que tem de ser pagã como as árvores” (in compromisso e auto-retrato).
 
A liberdade em Cecília é tematizada em diversos poemas nos quais fala da vida como reinvenção, imaginação, aprendizagem e memória. Estes termos são insistentemente repetidos. Seu poema “reinvenção” é um exemplo basilar desta repetição.
 
Não apenas sua poesia, mas todo o conjunto de sua obra é expressão de uma multiplicidade de sentimentos, de olhares, de canto, de perplexidade, teatralidade, indignações e indagações filosóficas.
 
Não se pode resumir, enquadrar ou tipificar a sua poesia somente como melancólica, lírica, simbolista, intimista, modernista ou qualquer outro “ista” que anda saltando nas páginas da crítica literária oficial. Sobretudo porque grande parte da população universitária desconhece a Cecília pensadora e crítica aos poderes políticos arrogantes da época da ditadura Vargas, por exemplo. Ignora Cecília como mística que não se enquadra nos padrões da religiosidade oficial; a pensadora interrogante, universalista, epigramática irônica, sem deixar de ser suave, sensível e lírica.
 
Repito: difícil tipificar em poucas palavras o estilo da poese ceciliana.
 
Em estatura intelectual, não temo afirmar, ela ultrapassa Castro Alves. Ambos se equiparam pela força da expressão verbal. Contudo, a produção literária ceciliana é mais ampla que a do poeta dos escravos. Proporcionalmente à sua idade cronológica, este poeta é insuperável, no seu tempo. Cecília vai além, sem nenhuma dúvida, por sua universalidade e produção intelectual. A maior expressão da poesia em língua portuguesa escrita por mulheres; em nada inferior a Fernando Pessoa, Guerra Junqueiro, Camões e outros idolatrados do academicismo. Mesmo assim, pouco conhecida no Brasil.
 
Uma das razões desse desconhecimento da grandeza poética de Cecília Meireles está no fato de que a intelectualidade brasileira sempre foi predominantemente masculina; melhor dizendo: machista. Muito tardiamente as escritoras mulheres se afirmaram. Além das questões ideológicas das elites contra a postura desta poetisa lúcida e corajosa; que não era tão evanescente como disseram alguns críticos da oficialidade.
 
Além disso, no Brasil, as massas acadêmicas conhecem somente alguns versinhos de antologias repetidas sem a necessária contextualização desta escritora. Nesses tempos de modismo virtual, repetem frases soltas via internet. Desconsideram e desconhecem esta mulher que esteve à frente da pedagogia de sua época, trabalhando com pensadores da envergadura de Fernando de Azevedo, Mário de Andrade, o filósofo da educação Anísio Teixeira, Heitor Villa-Lobos; combatendo o autoritarismo religioso imposto à sociedade brasileira pelas elites varguistas. Uma mulher que não hesitou em combater a imposição do ensino religioso católico às escolas e, em suas crônicas, chegou a nomear Vargas como o ditador; esse caudilho que, até hoje, em pleno ano de 2015, ainda é incensado por alguns setores das elites reacionárias e carentes de reciclagem intelectual.
 
Mesmo atualmente, com um número crescente de mulheres escritoras, duvido que as próprias mulheres da intelectualidade oficial gostem de ler Cecília. Principalmente nestes tempos de fundamentalismo religioso crescente; que em nada se afina com a perspectiva crítica desta poeta, primeiro reconhecida mundialmente, antes que em seu país.
 
Este aspecto crítico e independente da práxis ceciliana ainda é bastante ignorado. Consequentemente, pretendem colocá-la na gaiola do simbolismo e antimodernismo. Na verdade, não há classificá-la com apenas um esquema estilístico e interpretativo.
 
Nada melhor para nos fazer mergulhar no seu universo do que reler seus poemas. Principalmente “Mar Absoluto e outros poemas, Retrato Natural”, e o monumental “Romanceiro da Inconfidência”, esse épico praticamente desconhecido pelas maiorias que apenas ouviram  falar ou leram alguns versos de Cecília, isoladamente.
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por Marcelo Bezerra Oliveira
*Poetofilosofia, pag. 81-91, Ed. do Autor
 

Filosofia em Clarice Lispector

Qual ou quais seriam as possibilidades para a identificação de uma mundivisão filosófica na obra literária de Clarice Lispector?
Poderíamos falar de uma filosofia lispectoreana?
Quais seriam os indícios dessa filosofia em seus escritos?
Pensei tomar essas três interrogativas como pontos de partida para perspectivar essa possibilidade.
 
Muito se escreve sobre a obra desta escritora, em termos de análise literária, resenhas, crítica literária e estudos biográficos. Todavia, parece haver poucas publicações objetivando a identificação da tematização especificamente filosófica presente em seus textos.
 
Considero a probabilidade de que seja viável uma Filosofia da Literatura neste sentido. Não apenas sobre a obra de Clarice, mas como caminho para a construção de um pensamento filosófico originalmente brasileiro. Quero dizer: um pensamento filosófico que tome como ponto de partida e objeto de estudo a nossa produção literária; inclusive, evidentemente, a desta escritora.
 
Penso que é necessário reler a nossa literatura sem a postura de dependência e submissão de quem faz apenas uma transcrição do que já foi afirmado por filósofos de outros países, como se quiséssemos legitimar nossa cultura partindo de um contexto estrangeiro; numa espécie de concordismo, muito comum nas academias, que aliás para nada servem a não ser para isto: louvar a razão estrangeira, reproduzindo o colonialismo intelectual da dependência.
 
É ponto indiscutível que a literatura, como criação artística, é expressão da vida. Neste caso, primordialmente, da nossa vida de brasileiros; em segundo lugar, expressão do universal, do mundo; enquanto tematiza a condição humana.
 
Literatura é vida. A literatura de um povo é a expressão mais autêntica de sua vida. Portanto, considero a literatura brasileira como uma fonte essencial do nosso pensamento filosófico. Seja a literatura indígena, escrita e oral, os nossos romances, nossos poemas, crônicas etc.
 
Clarice Lispector não exteriorizava preocupação em dizer que leu tais ou tais pensadores. Não gostava de falar em suas leituras ou possíveis influências de outros escritores na sua mundivisão. Isto ficou bem esclarecido em suas crônicas e na sua única entrevista concedida à TV Cultura, publicada postumamente.
 
Clarice certamente leu, releu e até reinterpretou alguns escritores chamados clássicos; mas criou seu próprio modo de ver o mundo. Fazia as suas leituras e desleituras. Lia e interpretava o mundo imediato que reencontrava todos os dias, mediante uma perspectiva interrogante.
 
Certa vez, intitulou uma de suas crônicas com a afirmação “sou uma pergunta”. Reafirmava sempre que sua tarefa no mundo era saber, nomear, querer descobrir, tentar compreender a existência. Percebia-se como escritora interrogante. Seu ofício literário a conduziu consequentemente à pergunta filosófica. O perguntar é uma atitude constante em suas narrativas. Inclusive, perguntas que a maioria dos escritores em moda jamais fariam, Clarice o faz diretamente ou através de seus personagens. Como alguém que duvida da própria linguagem naquilo que ninguém questiona. Por exemplo, através da personagem Joana, de seu livro “Perto do Coração Selvagem”, pergunta sobre pra que serve ser feliz? O que virá depois que se é feliz? Ser feliz é pra se conseguir o quê? Numa atitude intencional de claro desmantelamento do senso comum que tanto usa e repete a expressão “ser feliz”.
 
Como, de modo geral, quase todo bom e honesto escritor se encontra sempre sozinho naquilo que escreve, foi com certeza na experiência desta solidão que Clarice Lispector (CL) se tornou a Clarice que foi e continua sendo para o mundo atual.
 
Há diversos aspectos no conjunto da obra clariceana relativamente às formas literárias que usou para se comunicar. Com certeza, nem podemos falar em estilo, em se tratando das suas obras. Ela escrevia livremente, sem apego a técnicas estilísticas. De modo geral, as formas principais que usava para comunicar, ver e sentir o mundo eram a crônica, o romance e o conto.
 
Outra modalidade de texto que eu não colocaria entre tais formas literárias, por exemplo, apresenta-se em seus dois  livros intitulados Água Viva (AV) e Paixão segundo GH (PSGH). Vejo-os como monólogos de introspecção metafísica. Principalmente PSGH, verdadeiro texto de reflexão que apresenta claros elementos para uma filosofia da religião, enquanto questionamento sobre a dialeticidade transcendência-imanência ao encarar a questão da experiência mística.
 
Em AV e PSGH está bem nítida uma desestabilização da frase usual e da própria gramatologia tradicional, pelo esvaziamento dos sentidos correntes das palavras e da pontuação. Talvez, uma forma de exteriorizar a desordem existencial que habitava em si mesma e em seus personagens; e que habita em todos nós, em nossos diversos eus.
 
Como classificar tais obras? Reflexão introspectiva? Monólogos? Não sei. Uma prosa poética, talvez. Prosa poética que nomeio como poetofilosofia; uma filosofia poética; ou poese filosófica.
 
A forma de escrita mais direta, fluente e linear usada por Clarice foi a linguagem das suas crônicas.  Os contos predominam no conjunto de sua obra. Porém, suas crônicas são os textos mais acessíveis para quem pretende ter um contato inicial com a sua mundivisão. Não podemos falar em um estilo clariceano, no sentido de estilo predominante ou único. Sua escrita é muito pessoal, subjetivamente marcada pelos momentos existenciais de sua consciência intuitiva.
 
Há certo consenso entre os conhecedores da obra de Clarice, no sentido de que ela não se alia ao estilo dos escritores romancistas de sua época (1930-45); sendo uma antirrealista. Na verdade, nem precisa ser especialista em História da Literatura Brasileira para perceber isto. Sua escrita aparece como um hiato diante dos chamados romances sociais e regionalistas dessa época; sem, no entanto, perder totalmente a sintonia com a condição humana do povo brasileiro. Em seus textos considerados intimistas por muitos críticos CL se distancia do Brasil. Sua temática predominante são os encontros-desencontros e as desorganizações internas dos indivíduos em seus relacionamentos. Sua posição política é tênue em suas obras. Mas seu testemunho ficou bem claro por sua participação nos acontecimentos históricos do Brasil de seu tempo.
 
Sabemos que Clarice viveu a época da ditadura de Getúlio Vargas, a aguda crise da segunda guerra mundial e a ditadura militar a partir de 1964. Enfrentou o fenômeno da angústia produzida pelas relações sociais capitalistas, com o desenvolvimento desordenado das grandes cidades inchadas pelo êxodo rural. Evidentemente, CL não abordava explicitamente tal contexto porque não estava fazendo história. Sua obra é puramente estética. O reflexo desta contextualidade, com certeza, gerou muitos traços da angústia vivenciada em seus personagens.
 
Diferindo dos escritores que faziam certa mímese do real, Clarice efetua uma desfiguração do real operada pelo aspecto estético e/ou antiestético em que se apreende o ser social entrevisto no texto. Pois  não estava preocupada com heróis ou com o estilo do romantismo. O enraizamento do seu humanismo emerge precisamente da intratextualidade de sua obra. Dizendo melhor: surge da confluência entre ideologia e estética. O elemento social brota de algo que compõe o literário (Cf. Oscar Pilagallo, in “O engajamento da introspectiva”, Entre Livros, n. 21, ano 2).
 
Ler as obras de Clarice Lispector implica entrar em contato com uma quebra da linguagem comum e dos sentidos dos fatos mais banais da vida humana que passam a nos desconsertar e provocar ou apontar para uma perplexidade angustiante que tece a existência das coisas e das pessoas.
 
A priori a mundivisão clariceana se caracteriza inegavelmente como uma filosofia “desconcertante”.
 
Pode ser um tanto simplista ou simplificador afirmar que a filosofia fundante da percepção clariceana seja uma filosofia existencialista. Todavia não o é reconhecer esta perspectiva como elemento constituinte de sua mundivisão; plena do sentimento universal da experiência da angústia, da dor, da admiração e da perplexidade perante o fenômeno da própria vida humana. A vida entendida como sucessão de momentos de descoberta constante das contradições que a compõem, em termos de incompreensibilidade e ausência de sentido.
 
A meu ver o pensamento filosófico de CL se manifesta mais explicitamente em PSGH; um texto literário que nos apresenta a experiência da vida em seu aspecto de imanência e materialidade, apontando para uma percepção da condição humana em sua solidariedade cósmica, como bicho, reduzido a inseto, coisa, ser pensante, mas estranhando-se a si mesmo em sua imanência-transcendência. A própria Clarice se coloca como sujeito-personagem-animal, solidária à materialidade e à indiferença do mundo, experimentando a dor, o amor, o sofrimento; buscando uma mística, uma linguagem contra a própria linguagem, face à experiência da incomunicação. Inclusive, por isso mesmo, a autora não hesita em se colocar no mesmo plano ontológico dos bichos.
 
Nesta obra encontramos os principais temas da mundivisão filosófica de Clarice, tratados também no seu texto Água Viva. Não sei se poderia falar em terminologia clariceana. Porém, há diversos elementos temáticos recorrentes, sejam temas ou situações existenciais da condição humana em quase todos os seus livros; mas sobretudo nestes. Todos tratados numa perspectiva angustiante e existencialista; claro, sempre do ponto de vista pessoal da autora, sem perspectivas sociais ou políticas. E certamente por isto a classificam e rotulam como intimista. Na verdade, Clarice é uma escritora mundial, porque sua abordagem temática não é regionalizada. Ela se distanciou da temática predominante entre os escritores brasileiros de sua época. Este é um dos traços de sua singularidade.
 
Entre os elementos temáticos de sua obra há três termos básicos que se distinguem: epifania, instante e náusea. As imagens de sua linguagem despertam e provocam um mundo de associações em fluxo contínuo; fazendo explodirem estranhamento, compreensão e súbitas descobertas. Além destes, outros termos de conotação mística surgem e ressurgem, como por exemplo: beatitude, revelação, êxtase, santidade, graça, estado de graça, mas não com a mesma significação de origem. Clarice os ressignifica, dizendo que sua conotação é puramente arreligiosa; insanta.
 
Se quisermos relacionar ou tentar aproximar sua filosofia com alguma das filosofias do século XX, com certeza  encontraremos traços das antropologias filosóficas de autores como Kafka, Sartre, Unamuno, Hesse e, quem sabe, até Heidegger. Embora, ela mesma certa vez interrogada sobre a relação entre o conceito sartreano de náusea e a náusea de que falava em seus textos foi direta e categórica ao afirmar que a sua náusea era diferente da de Sartre porque ela sentia mesmo (sic)!
 
É preciso considerar que Clarice não pensa categorialmente, conceitualmente; porque está fazendo literatura; está fazendo arte. Portanto, criando um universo distinto de conceitos filosóficos ou categorias epistemológicas. Entretanto, nem por isso deixa de apresentar um pensamento filosófico, uma mundivisão, uma interpretação da vida em termos de totalidade e busca de sentido. Enquanto fez uso da linguagem escrita, procurou pensar a vida, compreender a existência das coisas e do mundo, como subjetividade pensante, mediante a atividade consciente-inconsciente; mais intuitivamente do que por raciocínios lógicos formais. Nisto ela insiste em seus textos. Efetuava uma busca intuitiva; mais instintivamente, dizia; apontando os limites da própria linguagem e do que nós denominamos consciência.
 
Em CL a questão do acento nos limites da palavra para dizer o mundo se faz mais presente do que em outros escritores. Na sua obra a palavra é condição e impossibilidade ou limite. A linguagem também apresenta-se como antilinguagem, discurso e contradiscurso, linguagem e metalinguagem, revelação e ocultamento do que somos e não somos; do nosso ser e do nosso não-ser; dos nossos “eus” e “não-eus”.
 
Diversamente do lugar comum da alternativa do ser ou não ser, em Clarice a dialética acontece justamente na vida como ser e não ser. Ser é também não ser. Querer e não querer, sentir/não sentir, saber/não saber, ver/não ver, compreender/não compreender, silenciar. O conhecimento filosófico não se dá pela via do esclarecimento conceitual, terminológico, mas acategorial, existencialmente, mediante a descoberta intuitiva e a experimentabilidade das contradições e negações, à revelia daquilo que o discurso linear e definitório de causa-efeito determina como verdadeiro e lógico no sentido da lógica formal tradicional.
 
A escrita de CL, ao nomear a vida em sua crueza, dureza e nueza, nos faz perceber a existência mediante a nomeação daquilo que a nega, contradiz e sufoca: o anti-sucesso, o anti-herói, o anti-humano, a anti-vida, a anti-estrela etc. Talvez não pelo fato de que seja apenas uma “existencialista pessimista” ou que proponha uma concepção negativa da existência humana no mundo. Não se trata disto. Mas em razão daquilo que ela simplesmente constata, mostra, indica, sente. E procura nomear, sem conseguir; ficando perplexa com o fato de que a vida se dê tal e qual ela sente, percebe e aponta, apesar de e por causa dos limites da linguagem. Ela escreve como quem sente, mais do que como quem sabe intelectualmente. Escreve como “sentinte”, “omnissentinte”. Elabora um pensar-sentindo. No seu texto “Água Viva” há uma nomeação exatamente assim: pensar-sentir; para referir-se a uma forma de pensamento livre, além de necessidades demasiado limitadas. Insiste na compreensão em que o seu corpo participa, dizendo que só pode compreender algo quando o sente. Em “a hora da estrela” há uma declaração lapidar que resume bem essa sua postura cognitiva, ao dizer: “eu não sou um intelectual, escrevo com o corpo. E o que escrevo é uma névoa úmida. As palavras são sons transfundidos de sombras que se cruzam desiguais, estalactites,renda, música transfigurada de órgão.” Mas, como nomear a dor? Esta uma das perguntas de Clarice; insistindo em que essa palavra não diz o que sentimos – “a dor não é o nome verdadeiro disso que a gente chama de dor” (in PSGH). O imprevisível, a dor, o silêncio, não se deixam cognoscibilizar. Porque as palavras nos aprisionam, nos torturam e nos limitam. Temos de quebrá-las, reinventá-las e usá-las como objetos e não como casulo. As palavras são tudo e nada. Não nos tiram da angústia da condição humana perante a ameaça da dor e da nadificação; não nos realizam nem nos fazem felizes. No entanto, não podemos dispensá-las. Por elas dá-se o extravasamento do que está dentro do nosso corpo.
 
Na escrita de CL não há um solipsismo no sentido cartesiano e estrito do termo. Ela dialoga com as pessoas, como personagem que sente; ouve-as, descreve-as, expressando sentimentos, como quem tem compaixão pela condição dramática do ser humano no mundo. Sua postura mais comum é de perplexidade ante o êxtase e o horror; ante o ininteligível da existência.
 
Outro texto curto, mas denso, sua obra “a hora da estrela” (HE), é também fundamental para o conhecimento de sua visão sócio-filosófica, de modo mais direto e condensado; talvez, por ser sua última produção. Aí a autora expressa a sua percepção da vida em toda a sua “crueza” e tragicidade, ao dizer, no final da narrativa, que “a vida é um soco no estômago”. Algo mais kafkiano? Não conheço.
 
Relativamente à criação da personagem Macabéa, desse texto que alguns chamam romance, fica bem evidente que não é apenas uma mera ficção, uma criação imaginária. Trata-se de um exemplo corporificado e real de muitas mulheres na mais absurda condição de alienação produzida pela exclusão social. Protótipo de uma anti-heroína, dizem os analistas deste romance; que não é tão “romântico”. Protótipo da condição desumanificada, da desgentificação, da negação da vida e do que se chama dignidade. Seria a subumanidade, socialmente produzida.
 
Macabéa é a pessoa transformada em objeto; um não-eu; objetificada. E o sinal ou semiose mais visível desta condição, além da aparência física de miséria, é precisamente o silêncio abafado, a ausência do exercício pleno da linguagem. Macabéa não sabe, quase não fala, não age; é coagida, dessubjetivada, coisificada. Arquétipo de alienação, como inversão da subjetividade que foi transformada em coisa animalizada.
 
Alguns críticos literários que analisam esta obra de CL afirmam que a autora não pôde mais esconder a sua solidariedade com o drama dos nordestinos miserabilizados pelo êxodo rural e empurrados para o Sudeste do Brasil. É possível, mas não há referência explícita sobre isto. Pelo menos relativamente à questão sócio-política da produção da miséria. Até porque Clarice não quis regionalizar sua abordagem.  Principalmente em razão de que não está fazendo história, mas arte. E os critérios são outros. Mesmo assim, não se pode excluir tal propósito latente. Macabéa é o  tipo de nordestina que ela diz ter percebido certa vez na feira de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Pálida, encurvada, aérea. Apenas diz – “preciso falar dessa nordestina, se não sufoco. Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela”.
 
A autora não tematiza diretamente as questões sociais em seus escritos. A sua narrativa padece, de certo modo, da ausência de uma consciência de classe social em seus personagens. Todos sofrem demais os dramas sociais, mas pouco ou não se percebem como sujeitos sociais. Apresentam-se como sujeitos desprovidos de consciência histórica. Sofrem; mas raramente indagam e nunca se rebelam contra estruturas ou instituições sociais; contra o mundo que os oprime. Sucumbem. Além de Macabéa, um exemplo emblemático é “Mocinha”, do conto “viagem a Petrópolis”; outra personagem nordestina, velhinha, abandonada pela suprema crueldade da família que a rejeita, jogando-a na rua e causando-lhe a morte. Do mesmo modo que fazem hoje com os cães e gatos quando não os querem mais em suas casas. Afinal, Clarice, como arguta observadora das relações pessoais dentro das famílias, talvez nem precisou inventar a personagem; pois tal fato parece muito comum nesta sociedade capitalista que se diz defensora da família. (cf. “viagem a Petrópolis”, in A Legião Estrangeira ).
 
Como artista da palavra escrita, há em Clarice o desejo de nomear e indicar a sua experiência de intuição do mundo. Entretanto, a angústia que gera a sua escrita não a plenifica nem alivia. Isto a própria escritora confessa em seus textos, quando se refere ao ato de escrever; sobretudo quando era interrogada sobre como escrevia. No desenvolvimento dos seus textos, falando do presente que gera aquilo que escreve, deixa transparecer, no entanto, que a própria escrita simplesmente a precipita no não ser, no nada. Faz um enorme esforço para a ultrapassagem da linguagem usual, em termos de pontuação, pausas, que chega a denominar “respiração da frase”. Sua sintaxe nem sempre obedece à norma gramatical. Em sua escrita se percebe que há uma certa agonia quando sente que não consegue dizer tudo aquilo que gostaria. É visível sua tensão perante a incomunicabilidade das palavras ao descrever as situações dos seres humanos e das coisas. Escrever é uma questão de libertação que, todavia, não consegue. Seu  sofrimento interior com o que acontece arranca-lhe enorme esforço para buscar palavras que a possam salvar desse sofrimento. Por isso diz que escrever é questão de salvação. Contudo, não consegue se redimir ou se libertar dessa dor. As palavras não conseguem libertá-la dessa agonia que é o viver. Essa perplexidade angustiante se repete em quase todos os seus textos. Sua concepção da existência humana é agonia. Esta palavra é uma das mais usadas em seu vocabulário de traços existencialistas. “A vida está me doendo e não sei como falar”, escreveu em PSGH.
 
Clarice fala das aleluias e agonias do viver. Sobre o ato de escrever ela repete bastante, em suas crônicas, dizendo ser um fracasso, uma maldição e ao mesmo tempo uma questão de salvação. Repetia sempre que não gostava de que a chamassem escritora e intelectual. “Ser intelectual é usar sobretudo a inteligência, o que eu não faço: uso é a intuição, o instinto”.(DM – 152-53).E fala sobre si dizendo – “sou uma pessoa que pretendeu por em palavras um mundo ininteligível e um mundo impalpável” (idem, ibidem). Isto é repetido à exaustão, em seus textos. Afirmava ser uma pessoa que sente e procura a palavra que o exprima. Não tanto pela pura intelectualidade lógica no sentido comum, mas pela sensibilidade inteligente, dizia. Escrever para a escritora significa reunir as contradições do existir, como dor: a dor de escrever livros; a dor de ser. “Ser às vezes sangra”. Ao mesmo tempo que é divinizador do humano, escrever também é maldição, é defrontar-se com o fracasso. Mas o fracasso, a deseroização, a despersonalização, exprimem a condição de possibilidade para ser; que é também não ser. “Ser é não ser. O fracasso, a desistência, a despersonalização, são momentos de revelação da condição humana. O que não sou eu, eu sou. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano” (PSGH). Entenda-se, filosoficamente: aqui esta linguagem tem um caráter de princípio ontológico; não simplesmente lógico. Trata-se da posição dialética encontrada em filósofos como Hegel, Sartre, e em pensadores-poetas como Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Lorca, Machado de Assis. Clarice nos legou uma dialética da existência com a marca de sua singularidade estética, como escritora.
 
A posição filosófica de Clarice, expressa em termos de teoria do conhecimento, é o intuicionismo. Já que ela privilegia expressivamente, não a razão do discurso da lógica formal, mas a intuição, pela unidade entre forma e conteúdo; desejo, instinto, compreensão súbita. Sua posição cognitiva é de quem procura perenemente renomear as sensações, as emoções, as percepções. Eternamente voltada para o seu mundo imediato, escutando, sentindo sons, odores, cores; procurando dar significado a essas sensações; procurando sentir aquilo que dizia amar: as pedras, o mar, os bichos, as flores.  Faz-me lembrar um dos conceitos de filosofia de Fichte: o conhecimento que não brota simplesmente de raciocínios, mas de uma consciência imediata, uma intuição sensível.
 
Clarice nos apresenta uma percepção sensível e estética da existência em seus aspectos de dor, agonia, beleza e revelação súbita do inesperado ou imprevisibilidade. O espanto é uma forte característica da visão clariceana.
 
Acredito também que alguns elementos da posição bergsoniana perpassam a teoria do conhecimento lispectoreana. Aliás, Bergson encontra-se como referência explícita em um de seus textos. Sua concepção de temporalidade e transcendência apresenta claramente o traço da fluidez, característica da teoria de Henri Bergson. A vida é unidade. O tempo é indivisível. O tempo privilegiado em suas narrativas é o tempo psicológico; melhor, o tempo subjetivo; transcendência é a lembrança do passado ou do presente ou do futuro. Para Clarice o tempo é atualidade; uma atualidade que não tem esperança; não tem futuro; pois o futuro será exatamente uma nova atualidade. O tempo clariceano é o tempo do hoje. Não há um tempo cronológico. O agora é o instante. Esse termo “instante” é exageradamente repetido pela autora, em “Água Viva”. É sua concepção de temporalidade. O dia de amanhã será um hoje; e a eternidade é o estado das coisas no presente momento. O tempo presente, o instante, é como um pirilampo que acende e apaga, acende e apaga. Portanto, a categoria tempo, enquanto é narrada e transposta para a subjetividade dos seus personagens e sua, torna-se humanizada, compreendida de um ponto de vista humanizante. Ao mesmo tempo, é como que “destemporalizada”, no sentido de que o tempo histórico desaparece. O tempo cronológico é como que “substituído/ destruído” ou unificado com o tempo metafísico.
 
Assim se expressa a escritora em sua prosa poética, que afirmo ser uma verdadeira poetofilosofia.
 
Clarice vivenciava uma espécie de “sensismo”. Sentir é um termo chave em sua apreensão do mundo; chegando quase à obsessão pela busca de uma espécie de princípio metafísico, que seria o divino, algo inomeável que denominava “it”; ou “o Deus”. Ou seja: tinha, em última análise, um itinerário místico; sem ser religiosa; como se buscasse algo supraconsciente, supraindividual que fundasse as percepções e sensações de sua egoidade; que não era apenas a consciência, mas o inconsciente e intuitivo que nunca soube clarificar pela linguagem da gramática usual. Daí porque buscava outra forma, uma antilinguagem; para expressar aquilo que dizia poder captar na entrelinha das palavras, que não era palavra. Eis uma das principais razões da sua angústia ao escrever. Invertia desde as funções verbais até os elementos sintáticos sujeito-objeto tradicionalmente integrantes da frase, bem como a pontuação da gramática normativa. Falava, por exemplo, em “perdoar Deus”. Em PSGH fala de “antipecado”; a “insanta”, referindo-se a si mesma, como a um gênero de santidade que não é a dos santos; e do divino como sendo o real; remetendo-nos à tese de Espinosa, que concebia Deus como o universo. “Deus é o que existe, e todos os contraditórios são dentro do Deus, e por isso não O contradizem.(…) Falar com o Deus é o que de mais mudo existe. Falar com as coisas, é mudo.(…) O inferno para mim é o meumáximo. O divino para mim é  o real.” Para Clarice o inferno é o horror do sofrimento, está no amor, na dor da carne; no humano que se revela não humano. Transcendência é imanência. A liberdade é o inferno. “Somos livres, e este é o inferno”; declaração em estilo sartreano. Essas e outras intuições da autora podemos verificar, principalmente nos três últimos capítulos desta obra; a meu ver, seu texto mais densamente filosófico.
 
Toda a tentativa de uso das palavras que constituem a linguagem sempre a levavam ao sentimento do absurdo e do silêncio que as palavras não conseguem romper. Buscava, na escrita, uma libertação que, no entanto, não acontecia. Penso que esta é, em parte, a condição dos escritores em geral: enfrentar a vida tentando expressá-la em palavras, num esforço de “suspensão” da evanescência do tempo, pela criação estética.
 
Afinal, a escrita clariceana situa-se como uma prosa poética, por duvidar da total apreensão das coisas, atitudes e modos de ser pela categoria exclusiva do entendimento intelectual. Sua prosa atinge o nível da apreensão estética para além da conceitualidade.
 
Segundo Benedito Nunes, em seu texto de interpretação da linguagem de Clarice (“o drama da linguagem, IV”) a autora atinge o desordenamento poético, o silêncio, a suspensão das convenções vulgares da linguagem, superando a relação vulgar de ser ou não ser revelados na angústia da vida, enquanto vai tomando consciência de sua nadificação progressiva. Sua linguagem atinge uma espécie de insignificância, um horizonte de ultrapassagem dos signos e relações de causalidade, rumo à apreensão estética do ser das coisas e da própria linguagem, ao mergulhar em outras nuances da existência, como a memória, a alegria, a sensualidade, o humor, a tragédia, a dramaticidade. Enfim, como prosa poética. Porém, sua maior expressividade está no paradoxo que ela mesma diz atingir: o silêncio. A não linguagem. E quem lê Clarice também se defronta inevitavelmente em face desse silêncio, após tudo que ela tentou descrever, interrogar e perscrutar. Este é o ápice de sua escrita: não conseguir expressar pela linguagem aquilo que acontece, aquilo que sente, percebe e deseja. Apesar de haver se preparado desde a infância para ter o domínio da palavra, confessa a escritora, em sua desolação. Os acontecimentos a colocam, subitamente, diante de situações inomináveis da condição humana, que é toda perpassada por uma dor, a dor vivida por seus personagens; a dor de viver, a dor de existir. Sua concepção da vida não quer ser pessimista nem otimista, mas um esforço de apresentação da existência naquilo que acontece na vida das pessoas. “Ser é além do humano. Ser homem não dá certo, ser homem tem sido um constrangimento. O desconhecido nos aguarda, mas sinto que este desconhecido é uma totalização e será a verdadeira humanização pela qual ansiamos. Estou falando da morte? não, da vida. Não é um estado de felicidade, é um estado de contato. (…) Quando se realiza o viver, pergunta-se: mas era só isto? E a resposta é: não é só isto, é exatamente isto” (cf. penúltima parte de PSGH).
 
Mas, penso, é precisamente por estas razões, que surge a arte. A produção artística tenta dizer o não dito; aquilo que o discurso não pode, não quer ou não permite dizer. Todas as formas artísticas, inclusive a literatura, tentam expressar aquilo que as ideologias ocultam: os espaços das entrelinhas; que sempre existirão. Este também foi e continua sendo o paradoxo analisado por tantos filósofos da linguagem; desde o Círculo de Viena até Martin Heidegger e outros pensadores contemporâneos.
 
Porém, em meio a tudo isto, Clarice conseguiu trazer para dentro da linguagem escrita aquilo que nenhum outro escritor havia conseguido: o próprio silêncio. Isto é único em toda a literatura brasileira; quem sabe, na literatura mundial. Mais original ainda porque isto está grafado com linhas, traços, pontos, intervalos, entrelinhas; que ora começam, ora interrompem, ora deixam inconclusas suas narrativas (- – -. . .- – – -). Suas obras são cheias de um grande silêncio. Para mim o silêncio da vida, o silêncio do tempo. Silêncio do ser humano em sua absoluta solidão consigo, num mundo totalmente indiferente; sem respostas. Em “a descoberta do mundo” pontuou: “Há um grande silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras. E do silêncio tem vindo o que é mais precioso que tudo: o próprio silêncio.”
 
Clarice não compôs poemas, mas atingiu o limiar do silêncio e do espanto poético, por seu desapontamento face à cotidianidade da vida e naquilo que ela nos apresenta de mais ininteligível: o sofrimento. Pensava registrando a expressividade de seu corpo sentinte. Este é um traço singular de sua composição literária, que a distingue entre outros escritores brasileiros. Lembra-me Cecília Meireles em um de seus poemas de rara beleza e conteúdo fenomenológico, quando escreveu – “o que sou é o que vejo/vejo e sou meu olhar/e meu corpo é minha alma/ e o que sinto é o que penso” (in Canções).
 
Paulo Freire, um pensador brasileiro que apresenta forte conteúdo da Fenomenologia Existencialista, em seu pensamento, também afirmava que a mente não pensa desligada do corpo; pois o corpo é corpo consciente, tomando consciência; e a consciência, dizia, não é uma região espacializada e isolada do corpo. Pensamos com tudo aquilo que sentimos. Do contrário, não é autêntico o nosso pensar, se negamos ou omitimos as nossas emoções. Clarice escrevia em desapontamento, mas demonstrando em verdade aquilo sobre que escrevia. Dissolvia o tempo cronológico, mas não dispensava a memória. Sempre recorria à memória poética lembrando que aquilo que tentava descrever (a vida) é mais importante do que a linguagem, o como descreve. “Viver não é visível; nem relatável” (PSGH).
 
Pensar-sentindo, um pensamento sentinte; eis o que é um pensamento poético. Assim se vela e desvela o pensamento filosófico clariceano.
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por Marcelo Bezerra Oliveira
Poetofilosofia, pag. 128-144, Ed. do Autor.

O viajante de amanhãs

“O filósofo é uma das maneiras pela qual se manifesta a oficina da natureza – o filósofo e o artista falam dos segredos da atividade da natureza. “ Friedrich Nietzsche

O espírito aventureiro impróprio à cristalização do saber, se refaz nas escaramuças de um território movido a movimento. Seu viés de intimidade precursora se alimenta das ruas, estradas, subúrbios desmerecidos. É incomum ser facilmente compartilhável, esses eventos anteriores ao engessamento conceitual.

A irregularidade narrativa como propósito sem propósito, se reveste de uma quase poesia, para tentar dizer algo sobre os eventos irreconciliáveis com a ótica dos limites bem definidos. Essa lógica de singularidades flutuantes se aplica as coisas irreconhecíveis ao vocabulário sabido.

Seu desprezo pelas fronteiras, objetivadas pelos acordos e leis, é capaz de antecipar amanhãs no agora irrecusável. Num caráter de existência marginal entre o cotidiano e a miragem das lonjuras, parece querer se estruturar nas dialéticas do acaso.

Uma espécie de não-lugar se institui numa percepção visionária das coisas e eventos ao seu redor. Os refúgios existenciais descritos na provisoriedade dos apelidos buscam denunciar a multiplicação dos exílios, onde se possa apreciar o projeto pessoal em rotas de recomeço.

Num hoje destituído de ponto final, na quimera dessas errâncias de um talvez, é possível antever os inéditos amanhãs. Por essa indefinição característica dos anúncios, a subjetividade, incapaz de viver sempre igual, se desdobra pelos inéditos movimentos. Assim o instante desordenado, deixando de ser apenas uma coisa ou outra, realiza uma conversação com suas possibilidades.

Por essas expressividades ainda sem objetivação, surgem desconstruções, reconstruções, buscas. Conteúdos sem um chão discursivo legível para se dizer. Uma aptidão de mistura parece estabelecer interseção com as novas verdades, recém chegando de um lugar desconhecido na própria estrutura.
Assim uma correspondência se estabelece, onde a diversidade se anuncia como fonte de originalidades. Um aventureiro a contrariar insinuações de que a vida acontece num só lugar. Viajante precursor a se especializar em um saber itinerante.

Nesse cotidiano estranho que não cessa de chegar, se institui algo indefinível ou apressadamente enquadrado, pelos interesses em classificar seu viés de anúncio. Numa lógica assim disposta, a única garantia é não haver garantias.

Não é tão simples reconhecer a extraordinária matéria-prima nesse devir existencial. Muitas vezes se apresenta como ameaça por ser estranho. Sua erudição de aspecto nômade se apresenta em poéticas de contradição com o mundo conhecido. Para quem acreditava ter visto tudo, o vislumbre dessa perspectiva, por si só, já pode compartilhar autogenias.

É interessante notar seu renascimento como superação de suas cinzas. Uma espécie mesclada de Fênix, Hermes, Dioniso numa alma cuja característica é a percepção inquieta destes instantes diante de si. Seu instinto mutante se abastece das impermanências e redescobre, a partir desse território, os caminhos para descobrir amanhãs.

A epistemologia desses percursos aprecia a crise e o caos como movimento precursor, acolhendo o espírito de alma nova que vai chegando. Suas estéticas de incompletude seguem nas entrelinhas da indefinição, talvez aí resida o medo e a insegurança do mundo normal, o qual teme perder territórios já conquistados.

Uma evidencia dessa provisória integração pessoal, nesses percursos de redescoberta, é a concessão de uma linguagem própria. Para saber mais é impreciso sair da zona de conforto, realizando uma reciprocidade com os tópicos marginais da própria estrutura. Desenvolver uma fluência das variadas linguagens possíveis numa mesma pessoa.

por HélioStrassburger – Filósofo Clínico na Casa da Filosofia Clínica

O corpo e a filosofia clínica

Além das questões verbalizadas em clínica, que dizem respeito ao corpo, como por exemplo, quando o partilhante diz literalmente: “não gosto do meu corpo”, ”me acho desengonçado”, “tenho pouca flexibilidade”, “sou muito magra para usar decotes” ou “sou muito gorda para usar saia curta”, “sou baixo demais para assistir a shows”, “sou motivo de chacota na escola por causa do tamanho de meu pé”, entre tantas outras verbalizações possíveis, devemos observar a postura, o modo de ser corporal do partilhante.
Como assim? Nosso corpo guarda em si, desde o nascimento, certos modos de ação. A forma como nos desenvolvemos fisicamente está diretamente associada ao nosso desenvolvimento histórico-social, já dizia o russo Vygotsky.
Muitas pessoas somatizam seus desconfortos existenciais em dores de cabeça, depressão, gastrites, pressão alta e por aí adiante. Outras tantas somatizam no corpo físico, desenvolvem problemas posturais, articulares, obesidade, anorexia.
O corpo é um meio de comunicação que como os outros tem sua própria linguagem. A dança, o teatro e a mímica são claros exemplos de linguagem corporal. O corpo é a “casa do nosso eu” é também uma forma de nos expressarmos, e em Filosofia Clínica pode ser considerado como um dado de semiose e fundamentalmente um dado epistemológico.
É através do corpo físico que experimentamos, conhecemos as coisas concretas do mundo – é um dado de experimentação e de conhecimento. O filósofo clínico, portanto, deve estar atento a este dado, a esta linguagem. Por vezes o partilhante “conhece” o mundo pelo corpo, mas não conhece o próprio corpo, ou não sabe lidar com ele.
A Filosofia Clínica vê o homem, o individuo em sua totalidade. Não o fragmenta em corpo e mente ou corpo e alma. A Filosofia Clinica e o filósofo clínico verão o indivíduo como este se mostrar, se revelar em sua historicidade. Por vezes o partilhante pode nos chegar com o assunto imediato referente a uma dor nas costas e esta pode ser apenas um dado somático, ou seja, devido a questões de ordens diversas o partilhante desenvolveu a dor nas costas que lhe causa o desconforto existencial.
Além de trabalhar junto ao partilhante a causa existencial, o filósofo clínico, pode também trabalhar a questão da somatização, desse desconforto no corpo. Pode ajudar ao indivíduo a recuperar tranqüilidade, o bem-estar físico.
A Filosofia Clínica dá um sentido humano ao corpo. Somente à luz da totalidade do individuo será possível à compreensão e a valorização do significado humano do corpo e suas ações corporais.
As estruturas corporais, fisiológicas e biológicas, devem ser consideradas, mas por si só não constituem o significado humano do corpo. O corpo pode ser considerado como a configuração sensível do homem, é um campo expressivo da pessoa, é o lugar onde tomam forma concreta às possibilidades de sua existência.
O corpo, em todos os aspectos, participa da realização pessoal do homem. É através dele que humanizamos as coisas, por isso ele pode também ser humanizado.´
Segundo Ponty:**
“O corpo próprio está no mundo assim como o coração no organismo; ele mantém o espetáculo visível continuamente em vida, anima-o e alimenta-o interiormente, forma com ele um sistema.
Ao perceber as características corporais no indivíduo e como ele lida com elas, e de posse de sua historicidade, o terapeuta pode trabalhar estas questões usando o submodo percepcionar que, entre outras funções: “…faz a pessoa permanecer junto do corpo todo o tempo. Ajuda a pessoa a ter consciência do corpo. Mas conecte, grude, plugue para estar em sintonia e haver interseção”
O terapeuta pode intervir fisicamente no partilhante se isto tiver acolhida em sua malha intelectiva. Pode tocá-lo, motivá-lo para que o partilhante o faça para assim fazer com que ele sinta o próprio corpo e vivencie, agende coisas boas – percepcionar. Ou também, para que ele aprenda a lidar com o próprio corpo ou conhecê-lo melhor – epistemologia.
Muitas vezes o partilhante nem percebe que as suas dores existenciais lhe causaram marcas, dores no corpo. Contudo, é muito importante que o percepcionar, assim como os outros submodos, tenha boa acolhida na malha intelectiva da pessoa para que possa se mostrar eficaz. Já o Submodo Epistemologia pode ser usado para que o partilhante conheça, experimente o seu próprio corpo. Ou seja, o percepcionar é a intervenção direta do filósofo no corpo do partilhante, o toque; e o Submodo Epistemologia é o como o partilhante conhece as coisas pelo corpo e como ele conhece o próprio corpo.
“Então este Submodo nos mostra como a pessoa conhece e trabalhamos com ele objetivando esclarecer ou agendar novos dados. Existem pessoas que usam este Submodo com freqüência, ou seja, buscam conhecer, saber, investigar como as coisas acontecem,e de fato experimentam.”
No caso, por exemplo, de um partilhante que seja cartesiano, e tenha dificuldades para lidar com a questão corporal, o indicado são Submodos dirigidos à sua própria Estrutura de Pensamento, no que se referem a conceitos abstratos, pois o choque pode estar lá, em idéias complexas que se formaram com o tempo e a experiência.
Nesse caso, qualquer referência ao corpo e mesmo manobras inadvertidas podem levá-lo ao susto, ao afrontamento, talvez até aumentando-lhe o mal-estar. O que reiteramos é a aguda necessidade de conhecimento da Estrutura de Pensamento da pessoa para um procedimento clínico correto, sem o qual os Submodos podem ter um efeito contrário.
Desse modo, mesmo que seja relatado no histórico do partilhante e na sua queixa inicial um indício problemático quanto ao corpo, há que se pesquisar detidamente os Submodos já existentes em sua estrutura, de forma que o processo terapêutico ocorrerá em torno da utilização e conjugação dessas formas da pessoa lidar com seus tópicos de formação, aliados à possibilidade de ensino de outros Submodos possíveis. Ou seja, cada histórico, infinitamente único, demanda modos de condução estritos e altamente individualizados em sua aplicação.
por Lúcio Packter

A escuta das palavras

A palavra, em deslocamento por seus muitos territórios, também busca uma legibilidade para sua escuta escutando-se. Aptidão rara em meio as ditaduras da semiose verbal. Ao conviver sempre no mesmo lugar, ainda que em línguas diferentes, é excepcional vivenciar as dialéticas da aventura.
 
Em um mundo apropriadamente imperfeito, pode ser indizível, ao dicionário conhecido, encontrar o melhor para si. Essa suspeita se insinua nas possibilidades do instante perfeito nas entrelinhas da imperfeição. Essa transgressão da zona areia movediça de conforto existencial, se aproxima de um mundo razoável e suas contradições. Assim pode acolher e dialogar com a mutante medida de todas as coisas em cada um.
Ao destacar o viés dessas poéticas da irreflexão, se esboça uma negação de que tudo já foi dito, pensado, tentado. Nele um espaço desconhecido se abre como proposta.
Talvez a escola, ao ensinar a ler e escrever, também pudesse incluir aprendizados na arte de ouvir, sonhar, flutuar, experienciar essa matéria-prima diante do olhar, muitas vezes refugiada nas impróprias paredes. Quiçá emancipar-se além do tumulto silencioso das palavras.
Nesse sentido, a convivência aprendiz, a decifração desses códigos da não-menção, presentes nela mesma, pode conceber a crise precursora, o desajuste social, a incompreensão, como rascunho de uma obra acontecendo. Em um chão de incompletudes, os subúrbios da expressividade acolhe o devir dos recomeços.
Ao Filósofo dos casos perdidos, acostumado a ter um não saber como ponto de partida, vislumbra-se essa dialética como um redirecionamento do olhar. Lógica principiante a conjugar o recém chegando vocabulário diante de si. Uma estética a reivindicar o cuidador singular para acolher e contribuir com a nova condição. Ao cogitar dos eventos inesperados o espelho da realidade também se move.
 
por Hélio Strassburger -Filósofo Clínico na Casa da Filosofia Clínica

O que é a filosofia clínica

A Filosofia Clínica, em uma nova abordagem terapêutica, é a filosofia acadêmica adaptada à prática clínica, à terapia. Não trabalha com critérios médicos, com remédios ou com tipologias na construção de uma proposta terapêutica cujo objeto é buscar o bem-estar do ser humano.
O instrumental da Filosofia Clínica divide-se em três partes: os Exames Categoriais, a Estrutura de Pensamento e os Submodos. Nos Exames Categoriais, primeiro momento da clínica, através da historicidade, o filósofo clínico situa existencialmente a pessoa colhendo todas as informações de sua vida, desde as suas recordações mais remotas, até as informações de suas vivências mais atuais.
O material colhido, na história da pessoa atendida – que em Filosofia Clínica é chamada de partilhante, justamente pela condição de ser alguém com quem o filósofo compartilha momentos da existência -, é a base para o desenvolvimento do processo terapêutico.
A partir desses dados, num segundo momento, são verificados os tópicos da Estrutura de Pensamento da pessoa, as relações e os choques entre eles. Posteriormente, no processo terapêutico, entram os Submodos, que são a forma como o conteúdo da estrutura de pensamento é expresso. Os Submodos são utilizados pelo filósofo clínico para trabalhar as questões principais da pessoa. Nesse trabalho terapêutico o filosofo clínico é, antes de tudo, um amigo disposto a ouvir e a dialogar, comprometido eticamente com a busca do bem-estar subjetivo de quem o procura.
“O funcionamento interno de cada pessoa que se processa num centro identificado como Estrutura de Pensamento é singular e único. Por isso, a Filosofia Clínica considera cada pessoa um mundo único no seu ambiente existencial.”
por Lúcio Packter

A partir e em direção ao singular

Convido o leitor a sentar na poltrona do clínico.

Frente a si estará sentada uma pessoa que vem partilhar uma parte de sua existência. Como apreender o que lhe é próprio, para que a clínica se faça para ela?  Como partir de sua singularidade? Isto é possível? A minha hipótese é que a Filosofia Clínica é um método que permite partir do singular e ir em direção ao singular.
 
Nos Seminários de Zolikon (nota 1) Heidegger nota que a  palavra método é composta pelas palavras gregas “meta” que significa “além, para lá” e, a palavra  “odos” que tem o sentido de “caminho”. Em suas palavras: “método é o caminho que leva a algo…não se pode estabelecer de antemão, de que maneira o assunto determina a espécie de caminho que a ele conduz… que permite alcançá-lo”[nota 2].
 
O “assunto” traz um aspecto ético importantíssimo. Na FC a pessoa que vem à clínica é que  deve dizer  o que pretende. O assunto  imediato, trazido muitas vezes como uma queixa inicial,  funcionará temporariamente  como uma bússola,  orientando os primeiros movimentos do percurso. Aos poucos poderá – ou não – ser substituído por outros assuntos, mais constantes, assuntos que pode se tornar – ou não – único, e que se nomeará como “último”. Pode se caracterizar como um telos, presente como uma meta, ou uma ideia orientadora, explícita, implícita, clara ou obscura, próxima ou à distância. E assim poderá influenciar os acontecimentos, a cada vez,  num modo com  intensidade variada ,  que pode aproximar do que se dá aqui e agora,  o que é projetado na distancia do espaço ou do tempo. A cura seria o pretendido em sua variância (pretender: pré/antes; tender/inclinar) pelo partilhante.  A clínica está a serviço das aptidões dessa pessoa,  inclinando-se aos seus “para-que”. “O caráter do ser-apto é o de ter possibilidades e fornecer possibilidades”(nota 3).
 
Cada pessoa tem o seu mundo, produz o seu mundo. Assumo aqui a hipótese de Heidegger:  “o homem é formador de mundo” [nota 4]. O que lhe é próprio, a sua singularidade é seu modo de engendrar e formar o seu mundo.  Mundo seu, que é composto por um si: si-mesmo ou si-próprio.  Mas si-mesmo não é si-proprio: “mesmo” se emprega “no contexto de uma comparação e tem como contrários: outro, distinto, diverso…” [nota: 5] E  “próprio” é o seu mundo, as suas propriedades,  o que lhe é singular.
 
Um clínico que trata das questões existenciais, também compartilha a mesma natureza humana de quem se dispõe a cuidar. Também é formador de mundo, também tem a sua singularidade (si-próprio), também constitui a si e aos outros. No seu trabalho assimila os horizontes do outro aos seus horizontes, porém, sem fusão. A clínica é um modo muito característico de viver-com, de inclinar-se a esse outro, mantendo contato, mas, sem se confundir com ele. “Acredito que o contato…e tudo aquilo que pertence ao vínculo [interseção] participa de um saber inerente à espécie humana….é aquilo que une o próprio (o singular) do analista ao próprio do analisando” [nota  6]. Une sem tornar uno: aproxima. Como clínico eu preciso constituir uma alteridade e manter contato sem me con-fundir.
 
Como me aproximar desse mundo, desse outro, de seus caracteres, seu mix, seu tempero, seu temperamento? Como chegar ao que lhe é próprio, ao que lhe é singular?
 
Singular é algo que é aquilo que é de um determinado modo: a essência deste algo é o que lhe é próprio,aquilo que o define. “Jamais podemos tomar em consideração diretamente o fenômeno do mundo” [nota 7]. O mundo, o outro,  não se dão imediatamente como fenômeno.
 
A  FC  traz essa possibilidade de aproximação ao outro, ao mundo do outro, em seu método,  através da Estrutura de Pensamento, a EP [nota 8]. Ela oferece ao clínico esse recurso precioso para apreender o mundo desse outro, para se aproximar do que lhe é específico sem  misturar-se a ele. A EP é uma estrutura plástica, próxima ao que seria um modelo formal, que é pré – um prejuízo – mas sempre em (re) constituição, em re-aproximação. Cria-se com ela a possibilidade de uma certa permanência à natureza  fugidia do que é próprio a esse outro, a essa pessoa partilhante.
 
Isto é muito importante porque o homem não é apreensível  como um objeto completo. A plenitude de determinações é própria da ciência, porém, inadequada para a filosofia e com maior razão, para a clínica. O mundo humano não é lugar de completudes, de certezas. E não é por outra razão que, a despeito de suas pretensões de verdades definitivas,  são tão precários os resultados dos métodos clínicos científicos no trato com as questões existenciais.
 
Do ponto de vista do clinico, a EP é esse trabalho realizado de assimilação dos modos singulares da pessoa, em constante reelaboração,  sempre provisória,  por sua natureza humana transitória.  A EP é uma representação do outro para o clínico, tornando possível criar e manter uma alteridade, que permite constituir e observar o que  é singular nessa pessoa e ensaiar modos de intervenção, através da linguagem. E assim, exercer uma clínica a partir do singular. O “com” que se dá na clínica, é um elemento facilitador de exposição e de abertura de si, sem ser um gerador de fusão e de indistinção. Em seu modo de intervenção o clínico exerce uma ação com intenção em direção a alterações nos modos de viver da pessoa. Ele dá uma “dica”,  oriunda de um cuidadoso planejamento. E não é mais do que isso, porque sabe as limitações de seu saber, que a assimilação do que é singular é resultado de um fazer permanente e inacabado, partindo do frágil encontro com o outro.
 
Do ponto de vista do partilhante, na clínica,  cria-se um espaço existencial de exercício diferente para seu pensamento, para suas vivências íntimas. Lá, como formador de seu mundo, pode encontrar  para si modos de viver melhor. A clínica é para a pessoa um lugar inusual de acolhimento de seus próprios horizontes,  seus sofrimentos,  suas expectativas,  suas alegrias, suas vergonhas, seu tédio, sua angustia,  seus abismos, suas esperanças, suas frustrações, seus medos, suas fobias, seus sonhos, suas memórias, de seus assuntos, de seu mundo. E este caminho, só seu,  só se perfaz no que se poderia chamar de um pensamento clínico singular para si, singular a seu caso.
 
O pensamento clínico se refaz nesta relação singular que permanentemente se reposiciona, se reinventa;  não se totaliza num plural, desfazendo qualquer  unidade teórica ou conceitual. É preciso pensá-lo a partir da energia radical de sua singularidade, afastando o pensar técnico,  suspender mesmo as  teorizações universalizantes.  Aquilo que é criado  a partir desta relação singular dá  sentido  ao que é uma construção compartilhada. Deste compartilhamento parte uma dica/uma indicação que serve só a esta existência, em seu incessante formar mundo. Jung, um terapeuta experimentadíssimo não disse à toa que “cada relação clínica tem a sua própria teoria” [nota 9]. O que é realizado a partir de sua experiência, nesta relação clínica é criação de mundo para si, partilhante e, experiência para o clínico. Experiência que ele faz a partir de um movimento para fora – “ex” – em que contorna o mundo que se lhe apresenta – “peri” – e se volta ao que lhe é próprio – “encia”.
 
Ao clínico o que lhe incumbe é não falar para si e para o outro em nome da realidade ou do “em geral”. Não há uma realidade que se poderia colocar à disposição do partilhante, como uma espécie de referente ao qual as coisas poderiam estar ligadas, ou  a ele submetidas.Criar mundo, observar mundo está longe da noção de realidade. O real é uma ficção muito precária, porque quem a usa muitas vezes nem percebe que ela – realidade – é ficção. Os mandatários da realidade, entretanto, são poderosos: usam com inteligência e intransigência um modo de alteridade rígido, pelo qual esses outros criados a partir de si, devem obedecer aos seus mandatos em nome do geral, do comum, do que não admite os modos singulares de viver diferentes. No dia a dia do atendimento, o clinico precisa ser rígido na sua disposição metodológica de não recorrer ao “real”, ou ao geral, ou a qualquer  totalizador que se oponha ou dificulte as invenções de mundo, de singularidades.  Se o homem é formador de mundo, o singular é vigência e está sempre por ser feito, por ser retraçado. Pode surgir desta postura clínica  atenta ao singular,uma profunda transformação, vinda  desse convívio confiado. O singular, entretanto,  é descontínuo, precisa ser reinventado a cada vez,  vez por vez.
 
Formar mundo é labor próprio, criação e vivência em terreno singular. Clinicar é se curvar a esses mundos sempre em formação,  à sua  alteridade, ao que lhe é totalmente outro. E por isto não pode haver intencionalidade na escuta clínica. E por isso a importância aos modos dessa colheita pela escuta, em que a  atenção para o que é dito precisa estar flutuante, não dirigida. Admitir o q se oculta, as vigências que não se compreendem de imediato: o que é importante volta por meio dos infinitos recursos das linguagens. Um bom começo para o clínico é ir até o fim sem  admitir os “em-si”, em si mesmo,  podendo sustentar uma escuta ao incondicionado.
 
A clinica filosófica, respeitado o método,  é invenção, é um gesto. Não obedece a nada fora de sua própria circunscrição. Se dá neste viver-com, nesta vigência,  re-inventa  a cada passo.  Um gesto passivo: acolhimento ao outro em sua singularidade.  Ético em sua eticidade.
 
por Cláudio Fernandes


 
Notas
[1] – Heidegger, Martim; Seminários de Zolikon, ed Medard Boss; Ed Vozes, 2001, Petropolis, RJ, Brasil. Os seminários realizados por Heidegger, na cidade suíça de Zolikon, na casa do psiquiatra e psicanalista Medard Boss de 1959 até 1970, para um público, entre 50 a 70 participantes,  predominantemente de psiquiatras.
[2] – Heidegger, M; Sem Zolikon, pg 128
[3] –  Heidegger, M; Os Conceitos Fundamentais da Metafísica ; Editora Forense Universitária, 2006, Rio de Janeiro, RJ, Brasil; pg 269
[4] – Heidegger, M; Conceitos Fundamentais, pg 12
[5] – Ricoeur, Paul; Si Mismo Como Outro;  Siglo XXI Editores, 2011, Cidad Del Mexico, Mexico; pg XIII; Ricoeur faz uma interessate distinção entre “idem”, como igual, idêntico, o mesmo, e “ipse”, que não implica nenhuma afirmação sobre um pretendido núcleo não cambiante da personalidade, como modalidades próprias de identidade
[6] – Zigoutis, Radmila; Vínculo Inédito; Ed Escuta,   , São Paulo, SP, Brasil; pg 37 e 38
[7] – Heidegger, M; Conceitos Fundamentais , pg 341
[8] – deixo de especificar o que é a EP, por me dirigir, predominantemente a um público de filósofos clínicos, que tem o domínio dessa noção central do método da FC
[9] – Junj, Carl Gustav; Memórias, Sonhos, Reflexões; Ed……Brasil; pg

O que é isso que se expressa?

Essa  pergunta  surgiu a partir do tema “expressividade” do 5º. Colóquio Nacional de Filosofia Clínica, realizado em Porto Alegre, maio de 2016. Apesar de  um pouco deslocado  do que certamente seria mais apropriado a  ser discutido – os modos de expressividade – pensei que  poderia ser proveitoso conversar um pouco  sobre “isso” que se expressa.

A noção de expressividade no ambiente da FC, é um tópico da EP- Estrutura de Pensamento –  e também um tópico do Quadro de Submodos, vale dizer, algo que faz parte da constituição e do modo de agir de uma pessoa.
Expressividade de um lado tem um aspecto mental, de outro se liga a  um âmbito material, corpóreo.
Na palavra expressividade o prefixo  “ex” indica um movimento para fora – neste caso do corpo material –  e, “pressividade”, que seria a atividade de pressionar, de fazer pressão. Pressionar, portanto, para fora. E pressionar é por definição “transmitir estímulos”. Talvez mais propriamente, empurrar estímulos; pressão é a força que faz com que os estímulos sejam movidos, transportados, transferidos de um lugar a outro. Os estímulos têm sua origem no próprio corpo material, no organismo ou fora dele. No mundo material são os impulsos nervosos, fenômenos ao mesmo tempo químicos e elétricos. Em outros jogos de linguagem – na medicina chinesa, por exemplo – os impulsos nervosos são nomeados como energia.
E será esse campo entre o mental e o corpóreo que me possibilitará trazer algumas ideias que venho desenvolvendo e que talvez tenham algum interesse para quem lida com o pensamento ou com a prática clínica.
 
Começo pela pergunta: O que é “isso”, a palavra “isso”?
Um pronome. “Pro” – o que vai em direção a; “nome”, linguagem.
 
“Isso” é uma palavra que indica – que dá a dica – sem dizer o que é.  Um pronome demonstrativo, que neste caso, diz, sem mostrar . Quando eu falo “isso”,  já estou na linguagem. Digo mas não mostro,  não estou mostrando um objeto sem nome , mas dando um lugar a ele no que eu falo. Para dar uma dica sobre “isso” eu  preciso antes falar a palavra  “isso” para, então,  poder começar a mostrar o que é que eu quero dizer com “isso”. É como se eu desse um grande privilégio à linguagem: ela passa a ser o lugar a partir do qual algo se mostra e passa a existir.
 
Com o uso do pronome “isso”, eu me refiro ao acontecimento da linguagem, sem entrar no mundo  dos significados.  Quem me lê ou me ouve não sabe o que é isso a que eu estou me referindo – a linguagem, de certo modo,  ainda não aconteceu, não se deu como acontecimento, significando. Será só no interior desse acontecimento que algo será significado e, ao mesmo tempo se dirá o que “isso” é.  Se entrará, então,  na dimensão do “ser”.  Nesse gesto, nesse ato de fala,  o signo passa a significar (passa a ser propriamente signo), aquilo que está indicado diz, passa a dizer. No interior desse acontecimento da linguagem, ao falar eu digo o que “isso” é.
 
Algo foi incorporado, apropriado, num acontecimento de linguagem como uma verdade íntima por mim, a partir de um contato com o mundo, mundo ao qual saindo de mim , acorri, percorri  e que deixei voltando a mim. Experiência realizada: “ex”, para fora; “peri”, o contornar o mundo; “encia”, a volta a si.
 
Verdade íntima apropriada,  que não se refere agora mais aos sentidos  nem ao intelecto, mas que se dá numa instância própria. Um saber próprio, que sabe sabendo, que toma a linguagem naquilo de onde a linguagem surge. A “surgência” da linguagem [nota 1]. A fonte da expressão. Isso.
Mas se “isso” quer dizer essa verdade íntima, o que é “isso” que  contém essa verdade íntima. O íntimo, no seu limite, só se pode dizer a si, numa espécie de flexão de si a si. “Eu” seria o lugar dessa verdade intima?  Mas, o que é  “eu”?
 
De novo um pronome. Desta vez um pronome pessoal.
 
“Eu” designa a pessoa que enuncia. Quando eu digo “eu” é ao mesmo tempo eu que digo “eu”. Eu sou sempre no mesmo tempo de “eu”. “Eu” é um fenômeno de linguagem, de vivência , de percepção instantânea. “Eu” é sempre presente para si. E para si,  um observador eterno; sou sempre eu que vejo, penso, percebo, sinto etc.  Um “centro de experiências”[nota 2], sempre em atividade. Mas “ eu”  não pode ser apreendido nem visto. “Eu” , assim, não pertenceria ao mundo, seria  “um limite do mundo”como observou Wittgenstein.
 
O “eu” não é uma coisa no mundo, não é uma substancia:  não se pode mostrar. Não é um ente zoo-psico-biológico. E ao mesmo tempo eu sempre existo. Não há “eu” sem eu.  “Eu” se funda, se re-inaugura na fala, em cada fala. Existe através da fala que a profere.  Algo fala. Algo que fala é alguém. Alguém fala, um eu.
 
Quem é esse alguém – eu – que fala?  Se eu existo, eu sou um ser vivo. Vivo  num corpo. Eu, como alguém num corpo, talvez seja a minha primeira característica. Como diz Ricoeur um corpo é um “critério de localização num único esquema espaço-temporal” [nota 3]. A partir de um corpo contingencia-se num lugar e num momento qualquer  alguém, um “eu”. Um “eu-corpo”.
 
Esse “eu-corpo”  trafega entre outros “eus-corpos”, trama percepções e sensações para si,  e  através dos impulsos, busca respostas fisiológicas tendo seu próprio organismo como universo. Esses fenômenos elétrico-quimicos preenchem e percorrem os nervos num fluxo energético contínuo. A cessação desse fluxo é o fim desse alguém, desse “eu-corpo”, desse organismo.  Cessa o organismo, cessa a possibilidade de ex-pressão do “eu”. O tempo de existência do “eu” corresponde ao do corpo.
 
Essa imbricação constitutiva nessa noção de  “eu-corpo” possibilita que o “eu”  se represente no reino das coisas, vale dizer, no mundo: é no corpo, no organismo  que o “eu” existe.  E é no transacionar através do organismo  com o mundo que, aquilo que representa o “eu”, se modifica, mais ainda, se constitui. Como “eu”, q não é um ente, não é uma coisa, e que é mental, se modifica no transacionar com o mundo, como organismo?
 
Difícil responder a essa questão mantendo o rigor de pensamento que é próprio da filosofia. Nunca é demais lembrar, que, neste âmbito, o critério é sempre a verdade, isto é , aquilo que é evidente por si.
 
A ciência encontrou alguns modos, talvez menos rigorosos, porém mais práticos. Seu critério principal é o da verificação. Com isso criou uma série de modos de medição, que quando não são possíveis, são substituídos por outros modos de aproximação, como os cálculos probabilísticos. Com isso foi possível criar uma série de protocolos que foram e são úteis, inclusive nos cuidados dos corpos humanos. Mas a relação e a caracterização entre o corpo e a mente ou dito de outro modo, entre o organismo e o espírito, continua sendo um mistério.
 
Se é possível observar como a energia vital – os fenômenos eletro-químicos – circula pelo organismo, nada se sabe em como ela se transforma em ideia, em pensamento, em sentimento, em representação. Como uma energia se transforma numa representação de si, nesse alguém, esse “eu-corpo”.
 
Para  quem  lida no mundo da clínica existencial, que se  inclina para cuidar de pessoas com dificuldades e sofrimentos no viver, essa questão é fundamental. Não se trabalha com uma matéria, não há propriamente um objeto para lidar, ainda que a pessoa venha também como um corpo.  Esse corpo que traz em sua constituição essa parte eu, e que vive uma série de influências corpóreas  a partir dessa parte eu – as somatizações, ou reações psicossomáticas .    É em sua inteireza de ”corpo-eu” que a pessoa  transaciona com aspectos do mundo, através da linguagem.  Esta pessoa que vem à clínica tem como sua natureza essa de ser um organismo capaz de linguagem.  O clínico – também um corpo capaz de linguagem – testemunha diariamente  esse mistério.
 
O  “eu-corpo” existe.  Há algo nele que se ex-pressa. Põe para fora um “isso” que está nele. Nesse “eu-corpo”, há isso que o caracteriza. Isso, esse caráter íntimo do “eu-corpo”,  isso que lhe é próprio – singular, só dele. Esse próprio construído a partir de sua relação consigo, com os outros,  num movimento de natureza reflexiva, em que sai de si para regressar a si. Resultado momentâneo de infinitas ex-peri-ências, que sai de si, é tocado, matizado pelo mundo, para voltar a si transformado. Como essas experiências são compostas de suas relações com o mundo, compreende-se a natureza singular, desse “isso”, próprio a si .
 
Outro pronome. Agora reflexivo.
 
Esse si, próprio, não se dá ao pensamento, não é representável. Si próprio não é si mesmo. Ao buscar pensar em si já se cai numa cisão, numa divisão: esse que olha precisa de um afastamento, criar uma alteridade de si, que modifica sua condição inicial de si. Para ser mesmo – si mesmo –  tem q ser os 2 ao mesmo tempo, um e outro que se identificam, dando a condição de mesmidade. Não há mesmidade onde se supõe unidade. O “si” , ainda que uno, não é algo simples. Contém a relação q une e a relação q separa. Não tende a formar identidade. Forma propriedade.
 
O si, o fato de si, o si em sua facticidade não é original. É produzido, é artifício. O si produz a si na experiência de si. O outro de si é si em que o seu outro é este si e, talvez por esse movimento incessante de mútua constituição, sempre inconclusa e precária, sempre em construção, contingenciado e contingenciador, criador de si e do mundo. O seu aí está sempre em ser, sendo. Não é uma situação de fato, imóvel, como em Husserl e Sartre [nota 4].
 
Agamben traz o conceito heideggeriano de  facticidade para argumentar que o fato de si é produzido, é forjado pela  e-moção. Tome-se  o sentido que a palavra emoção  traz : “e”, para fora, como “ex”; e “moção”, deslocamento. E se compreenderá, como  se desenvolve “isso”, o si.  O si, o fato de si, é o que foi produzido pela e-moção, pelo seu deslocamento para fora. Não há um si original. O si é esse “isso”, em constante produção do início ao fim da vida pelas suas próprias e-moções. Daí porque o si, sendo artifício, é sempre si-próprio.
 
A expressividade acontece quando a linguagem traz ao que é próprio. Ou leva o próprio ao que é dito. É como quando se fala, se gesticula, se dança com uma verdade própria. Isso que se sabe que existe, está presente e que é difícil de nomear. A expressividade é essa ação de linguagem q faz a experiência  do “isso”, que faz com que esteja impregnado  à palavra, ao gesto, à pincelada, à ginga, à voz. Mas ele mesmo, “isso”, não vai, “permanece intransmitido”, como diz Agamben, “sem nome”, pronome.
 
O homem, o animal falante, é o infundado, q se funda indo ao fundo em seu sem fundo e, como in-fundado, repete sem cessar sua ausência de fundamento, abandona-se a si.  E é só assim, desse modo negativo, fundado em si . O “si” é o mistério das origens q a humanidade transmite como fundamento próprio. E que é veiculado na expressividade.
por Cláudio Fernandes


[nota1 : “surgência”, essa bela palavra criada pelo colega Arthur Tufolo]
[nota 2: como sintetizado recentemente por Paula Perroni, colega psicanalista]
[nota 3 Paul Ricoeur “Si Mismo Como Otro” pg 9]
[nota 4:Giorgio Agamben “A Potência do Pensamento” pg 260 e seguintes]