Ensaio testemunho: recomeçando e continuando

Angelo Ricardo de Almeida Guarnieri

Às vezes, é preciso dar o primeiro passo

É preciso começar de algum modo. Toda vez que vou iniciar um novo texto, existem as preliminares. Primeiro, a sensação de que será uma escrita inútil. Depois, que poderia ser a escrita mais revolucionária de todos os tempos. Entretanto, se me fosse perguntado qual dessas duas sentenças vem primeiro, eu não saberia o que responder, ou melhor, depende. Depende do momento em que estou vivendo, ora uma, ora outra e ora nenhuma.

            É certo que o tempo foi aumentando a minha consciência crítica. E quanto mais crítico, menos linhas foram escritas e mais consciência de que menos ainda teria a dizer. Também sei o quanto essa procrastinação me é pertinente. Com isso, tenho todas as desculpas para adiar o que seria uma tautologia literária.

            Contudo, nem sempre posso furtar-me aos deveres daquilo que me proponho profissionalmente. Dessa forma, já me justifico logo de início, sem muitas delongas. Desconfio de tudo aquilo que se diz profissional, a despeito de usar, muitas vezes, esse predicativo em meus discursos e práticas trabalhistas, afinal referir-se a um trabalhador como profissional é trazer o discurso para o lugar de autoridade. E aqueles que não se encaixam nesse sentido estão condenados ao amadorismo e estes não poderão usufruir de todos os benefícios de serem classificados como profissionais. Apesar disso, sinceramente, tenho muita dificuldade para decodificar o que seria, de fato, um trabalhador profissional.

            Um trabalhador profissional seria alguém mais competente que um trabalhador amador? Talvez sim, parece-me, pois, que são justamente os profissionais que alcançam os melhores resultados. Talvez não fosse possível a bomba atômica sem um profissional. Claramente essa discussão poderia incorrer no risco de amaldiçoar os profissionais em detrimento da incompetência e não é essa a minha intenção, mas apenas trazer luz às diversas possiblidades de interpretação de um conceito ou de uma palavra.

            A ideia é discutir a minha aventura de iniciar uma nova jornada depois de mais da metade da vida passada. Isso mesmo, passada, porque vivida, apenas na memória e nos parcos lapsos de que os sentidos ainda me trazem algum frescor. Às vezes, gostaria de congelar alguns momentos como em uma cena com diálogos, sensações e trilha sonora. A dura realidade, porém, é que o tempo tem sido muito mais implacável agora que outrora. Aprendi que estou nos meus últimos melhores anos que ainda me restam.

            Talvez alguém que leia o parágrafo acima possa achá-lo muito triste ou deprimente. Mas quero tranquilizar o leitor. Primeiro, escrevo isso para me tranquilizar. Segundo, apesar de achar que uma vida não basta para viver tudo que ainda espero viver, também tenho plena consciência da minha finitude e da minha impotência diante do tudo.

            Depois de meses procrastinando a escrita deste texto, hoje resolvi começar a digitar as primeiras linhas. Claro que antes me distrai com muitas outras coisas: olhar mensagens do WhatsApp inúmeras vezes; ver vídeos aleatórios nas redes sociais; ler notícias sempre de política e, às vezes, dar uma espiadinha no Corinthians (minha perdição); publicar ou gravar um videozinho desopilador nos meus canais; revirar vídeos e fotos antigas de amores presentes e passados; rever os projetos que estão engavetados no backup do notebook e, por fim, dar aquela espiadinha na biblioteca virtual de centenas e centenas de obras que morrerei sem jamais lê-las.

            Neste último ponto de distração é que mora minha maior queixa e, paradoxalmente, minha libertação. Se, por um lado, seguro-me o máximo que posso para não chatear os outros com minhas idiossincrasias, minha pequenez diante do gigantismo da obra humana, por outro, às vezes, preciso também libertar meus demônios, colocar para fora tudo aquilo que me atormenta, daí o grande reencontro e ao mesmo tempo uma descoberta da minha singularidade. 

            De certo, Nietzsche tinha razão em Ecce Homo quando sentenciou que não devemos ler muitos livros a despeito de nos perdermos nas ideias alheias e não encontrarmos mais quem de fato somos nós e quais ideias seriam nossas de fato. Paradoxal e provavelmente, Nietzsche apenas se tornou esse gigante do mundo das ideias depois de comer todas as ideias e a história da Humanidade. Foram as muitas vozes, os eus e os outros de Bakhtin, que possibilitaram e possibilitam o nosso alargamento singular. 

            Sem dizer que tudo que acabo de escrever não é nada mais, nada menos, que as minhas interpretações e meus desejos de que assim sejam. Ainda incorro no risco de ter feito todas essas intepretações de modo incorreto, seja pela preguiça, seja pela incompetência hermenêutica. É a minha singularidade enganando-me, enquanto eu mesmo a engano no limite vocabular da minha semântica.

A (re)volta da filosofia clínica

            Ao menos comigo é assim. Neste ponto sou partidário de Schopenhauer, o mundo é aquilo que consigo representar a partir de mim mesmo. Obviamente, este mundo que vejo e no qual vivo, segundo minhas interpretações, está cheio de lacunas, tanto visíveis quanto imperceptíveis.

            Recorro a Miles Davis, que disse certa vez: “Não toque o que está lá, mas o que não está.”. Isso para dizer da minha aventura em adentrar por um continente totalmente inóspito para mim, a filosofia clínica.

            Certo de deter o mapa da filosofia, afinal já era graduado e experimentado nessa seara há pelo menos duas décadas e meia, pensei que poderia ter um afinamento muito mais gingado para bailar essa balada. Ledo engano, lembrei-me de um ensinamento popular, só morre afogado quem já sabe nadar. Confiança em demasia está a um passo para a prepotência e para o erro, o que pode ser fatal. E aqui estou recorrendo aos tópicos: ‘epistemologia’, ‘axiologia’ e ‘como o mundo parece’ e muitos outros que poderão vir.

            Entretanto é impossível esquecermos tudo que nos tornamos ao longo de uma jornada, com exceção, claro, do Alzheimer, mas parece que ainda não é o caso. E por isso Davis inspirou-me como uma fresta de coragem e ousadia. Sabia que, com muito afinco e dedicação, poderia compreender este novo mundo. Também tinha consciência de que todas aquelas leituras e o modus operandi até aqui me serviriam para alguma coisa. Enquanto isso, Rubem Alves me atormentava com seu lirismo filosófico bebido e deglutido com Adélia Prado, ou seja, é preciso esquecer o que se sabe se quiser aprender o novo.

            E daí se vão tropeços e mais tropeços, afinal, como esquecer o que supostamente já sabemos para dar lugar àquilo que nem imaginamos? Clarice Lispector é ainda mais implacável, afinal como achar que a liberdade é pouco, já que o que ela queria ainda não tinha nome. Era poesia demais e esclarecimento em ausência demasiada.

            Sim, lembrei-me do velho Abu (Antônio Abujamra), que me disse certa vez, citando a própria Clarice. Às vezes, é preciso olhar por detrás da própria cortina, ou então fica-se preso à própria ignorância. Nesse ponto, Paulo Freire é libertador. De um lado, a ideia do inacabamento, jamais estaremos prontos, estamos sempre em se fazer e refazer. Do outro, ou talvez quem saiba, ainda deste lado, ou de todos os lados, a ressignificação. Eureka, isso mesmo, os sentidos, as verdades, os caminhos, enfim, as ações todas estão sempre por vir. É a dialética do devir.

            Aquilo que parecia apenas poesia e filosofia pueril fica ainda mais claro e vívido. A vida é aqui e agora, porém somente se amplia na medida em que vou recheando e consultando meu repertorio guardado e relembrado, deparando-me com os senões.

            Improvisar não é uma regra, mas como não? Diante de tanta complexidade posta no dia a dia da chamada vida vivida, algumas horas que não passam de minutos, ou segundos são como algo que fosse explodir dentro do peito. Daí é a hora de recorrer ao repertório. Sim, partirei de um imperativo, tópico 18 – Axiologia, somente improvisa bem quem conseguiu construir um bom estofo.

É bem verdade que nem todas as nossas experiências são passiveis da racionalização imediata. Neste sentido, o quero dizer é muito simples, ou seja, nossos sentidos captam muito mais o que expomos ou o que utilizamos no momento da experiência. A neurociência tem trabalhado nisso há um bom tempo, fenômeno da memória seletiva que a arte e a filosofia já bisbilhotavam há séculos com Fernando Pessoa, Aristóteles etc.

Por isso Davis era tão genial, pois toda competência técnica que lhe era peculiar, e não era pouca, nem conhecida, consistia justamente no campo da ousadia, da experimentação e do uso deliberado da criatividade em que residia sua arte de tocar aquilo que não estava lá. Mas, afinal, ele era mágico? Não, ele tinha um estofo tão deliberado das amarras técnicas que se dava a oportunidade de encantar e emocionar a si e a todos que tinham a oportunidade do deleite da sua arte.  

Dito e escrito, faço-me introduzir nesse mundo que me esperou por duas décadas. Na verdade, uma correção: como uma árvore, que nada depende do humano, a filosofia clínica não espera por nada nem por ninguém, apenas acolhe aquele que busca pelas suas sombras e oxigênios. Eis que aqui estou e me apresento.

Não posso negar que ter me graduado em filosofia não seja uma vantagem, mas também preciso confessar que, muitas vezes, ela tem sido um obstáculo vaidoso. Explico melhor. Às vezes, por já ter tido essa ou aquela leitura, corro logo fazendo minhas interpretações do outro. Pronto, lá vem os agendamentos tão perigosos em relação aos partilhantes e, por isso, a tão imprescindível fase dos estágios supervisionados. O que seria de mim se não fosse o professor, mestre Luiz, e suas intermináveis lições, com seus trejeitos e olhares que já me dizem tudo sobre o meu nada?

Vou me arriscar e dar algumas tecladas acerca de algumas preciosidades que me guiaram até aqui: “Nossa clínica vem das humanas, de inclinar-se à história, às equivocidades, à colheita da historicidade para fazer um planejamento.”

Esta bela e profunda ideia me leva a uma das primeiras lições que li nos cadernos do mestre Lucio, nas quais ele trata da nossa disponibilidade e generosidade no acolher e ouvir a história do outro. Penso que não é possível ser um filósofo clínico se não estivermos verdadeiramente ativos no ouvir e interessados em tudo que o partilhante tem a nos dizer e apresentar. Reafirmaria o mestre Luiz, “a clínica é estar ali.”

Lembro de um dos nossos encontros no estágio supervisionado, no qual tratávamos do lugar existencial e ele dizia o seguinte. Na verdade, não sei se ele realmente disse isso, sei o que eu aprendi e consegui inferir da fala dele: “cuidar é, muitas vezes, negociar com o outro, é encontrar sutilezas que ajudem o partilhante a esvaziar algumas angústias. É dar o tamanho do problema que ele realmente tem.”  Isso parece simples. Inclusive, revisitando, agora, enquanto escrevo estas linhas, vejo quão simples é. Mas, então, o que realmente me chamou atenção nisso? Por que voltei a este ponto? Simples. É justamente por ser tão simples que é tão profundo. E umas das hipóteses que tenho está na sofisticação desta lição, ou seja, vivemos em um tempo do mérito, da eficiência, da meta, enquanto a singularidade vai sendo deixada de lado, esquecida. É nesta hora que a filosofia clínica se faz tão necessária, tão útil. É na compreensão de que somos humanos e demasiadamente solitários neste jogo que podemos dar um salto e nos reencontrarmos diante do problema e do quanto podemos resolvê-lo, seja atacando-o, seja convivendo com ele, ou aceitando-o. E vou eu assentando minhas convicções a partir do tópico 20, da epistemologia para me valer das minhas investigações e inferências.

Neste ponto, trago uma lição da qual não posso me esquecer, quando ele disse que “é preciso fazer um saneamento tópico. Às vezes é preciso entender o que a pessoa quer dizer com aquilo que ela está falando, é preciso fazer a tradução… a clínica nada mais é do que conhecer o outro.” E eu me pergunto: será que vou conseguir compreender o outro quando ele mesmo não consegue me dizer o que está sentindo ou vivendo?

Neste ponto tem uma das mais preciosas lições que tirei dos dois anos em que convivi com os mestres Paulo, Glaucia e Cláudio. Não existe a filosofia clínica, mas as filosofias clínicas. Existe sim um paradigma e um método, somos “adeptos” da fenomenologia. Mas qual fenomenologia? Quando faço esse questionamento, não estou intentando na disrupção conceitual, mas na busca de uma singularidade como futuro filosofo clínico a que me intenciono, proponho-me e ouso vir a ser.

Voltando a uma questão fundamental. Alguém me perguntaria. De nada adiantou ter uma graduação em filosofia para agora fazer a formação em filosofia clínica?

A resposta é simples e objetiva. Claro que SIM.

Citarei algumas das vantagens em ter uma formação em filosofia antes da clínica:

  1. Não ficava tão perdido nas aulas quando os professores faziam citações de filósofos e mais filósofos e alguns conceitos tão comuns aos passantes pelas pedreiras filosóficas. E já aviso de antemão, a despeito do google, estudar filosofia por horas a fio e sair, com a bunda quadrada, de um domingo ensolarado, enquanto muitos estão à beira do rio, bebendo cerveja e você, suando e com inveja dos amigos, é muito diferente de ver um videozinho de 5 minutos de quaisquer youtubers e achar que já é um filósofo;
  • O tempo é implacável na formação. Não quero ser determinista, mas é praticamente impossível, depois de décadas estudando gastronomia nuclear, você acordar e acreditar que agora poderá ser o mais renomado neurocirurgião. A não ser no mundo dos coachs milionários, que ganham maratona mesmo estando acima do peso;
  • O senso de ignorância talvez seja o melhor ponto de ter estudado filosofia. Uma lição muito útil da filosofia socrática, ou seja, saber que sabemos muito menos do que sabemos é um imperativo imprescindível para o futuro filósofo clínico, pois apenas com acolhimento ativo, sincero e humilde posso me ater a ouvir o outro. Nesse ponto, aqueles que estudaram e estudam filosofia levam uma vantagem acerca da sua ignorância, ao menos comigo é assim. Aprendi com os filósofos e filósofas que só sei que ainda há muito o que saber e aprender e, por isso mesmo, nada sei;
  • Em tempo, uma grande lição. Estudar filosofia dá a nítida sensação real de que você não é o que disseram que você é. Por outro lado, você é realmente muito mais do aquilo que dizem que você é. Pode até parecer um jogo de palavras, e é, mas também não é. A filosofia oferece o poder sem torná-lo poderoso.

Não estou dizendo que pessoas provenientes de outras formações não possam estudar filosofia clínica, ao contrário, estou apenas dizendo o quão importante me foi ter uma graduação em filosofia. Em outros casos, penso que cada um pode apresentar suas próprias implicações e condições. Como aprendi na minha formação de filósofo clínico e tenho aprendido e aprofundado com o mestre Luiz, cada filósofo clínico é único.

Isso não quer dizer que vale tudo. Logo acima escrevi sobre essa temática. Por isso reafirmo: a filosofia clínica está baseada em um método, na fenomenologia, contudo, um método aberto, capaz de comtemplar a multiplicidade de singularidades, haja vista que um mesmo partilhante poderá e deverá ter experiências diferentes caso possa e queira experimentar a terapia filosófica com filósofos clínicos distintos.

Confesso que sentar aqui e escrever este ensaio-testemunho é um tanto pretencioso. É o risco de arrombar portas abertas e ter a certeza do enfadonho a reflexões gasturáveis. Ninguém exigiu nada de mim. A culpa e o sentimento da mesma são da minha parte. Ainda assim, coloco-me diante de todos aqueles que, porventura, estejam com este texto em mãos para dizer: simplesmente precisava disso, foi um ato terapêutico de mim para comigo na partilha de mim mesmo, precisava me ler e me ouvir no silêncio das palavras escritas.

A vida no chão da existência

            Quantas vidas podemos ter? Seria possível falar de vida no plural? Temos uma vida, é certo, ou temos vidas? Poderia continuar fazendo tantas outras questões acerca da vida, mas farei um recorte que me foi muito caro nessa caminhada da filosofia clínica nestes últimos anos de vida.

            Tive muitas experiências ao longo desta jornada, contudo teve uma que me marcou profundamente: a participação no Congresso Nacional de Filosofia Clínica, na cidade de Bragança Paulista. 

            Os fatos aqui narrados não seguem uma linha cronológica dos acontecimentos, mas o quanto foram marcantes na minha vida de futuro terapeuta das filosofias clínicas. O texto não é capaz de mostrar tudo que foi essa experiência, penso que nem falando consigo descrever o quanto dilacerante e extasiante foi, mas vou tentar.

            A primeira experiência, que me trouxe um sentimento de pertencimento e importância, foi o encontro com o Lucio Packter nas ruas de Bragança. Ele foi muito amável e solícito no encontro, ele foi aquilo que realmente ele escreve e teoriza. Foi a primeira vez que pude entender teoria e prática como algo, de fato, relevante e real na vida vivida. Estou exagerando? Talvez. Pode ser. Mas foi o que senti.   

            A segunda experiência foi participar com os mestres Paulo e Glaucia de um jantar em sua casa. Parece muito pouco, a princípio, mas foi tão acolhedor e profundo aquele encontro, que quase me senti em casa. O Marcos, a Santinha e tantos outros … senti como se fizesse parte de uma comunidade, acho que foi a primeira vez que vivi uma experiência de coletividade tão profunda.

            O encontro com o professor Claudio, na fila do teatro em São Paulo, com toda a sua generosidade e atenção no abraço afetuoso, fez-me pensar que não se trata apenas de aulas e textos, mas de vida e laços de continuidade na possibilidade de vidas em movimento. 

            No congresso em si, vi pessoas sorrindo, chorando, enfim, lembro-me como se fosse agora o que pensei: puxa vida, é um congresso de gente, tem emoções e verdadeiramente há uma vida pulsando em cada apresentador, mesmo quando não concordava. Sem minutas curriculares quilométricas e hierárquicas.

            Penso no doutor Genisson (ele é médico), que teve a coragem de me indicar duas partilhantes para os meus primeiros passos no mundo de filósofo clínico. Como assim? Ele confia em mim para cuidar da saúde psíquica de alguém? Sinceramente ainda não acredito quando, semanalmente, sento-me diante das minhas partilhantes e as ouço. Quanto privilégio ter a confiança de alguém que resolve falar de si para um “estranho” que sou eu.

            Diante de todas estas experiências vividas, leituras novas e releituras ressignificadas que o Recanto me possibilitou, ouso trazer uma pequena contribuição a esta teia de emaranhados, tão bem tecida, que já passa de três décadas de existência e resistência.

            Penso que a contradição seja uma parte considerável das nossas existências. Chego a acreditar que sem ela nada teria sentido. Quando me deparo com os tópicos, nossos lugares existenciais e os nossos submodos, “remédios terapêuticos”, deparo-me com as primeiras contradições. Quanta ironia, um filósofo que, por excelência, deveria cultuar e cultivar a dúvida, agora, terá em suas mãos e ouvidos outros que poderão trazer muitas certezas. E o que nos resta como filósofos clínicos? Ouvir e não mudar a historicidade de ninguém, ao menos não por deliberação ou provocação.

            Na condição de filósofo clínico, precisamos ouvir muito, acolher sempre, ou nos retirarmos, com afeto, principalmente se o que se avizinha é um agendamento cruel, profícuo, libertador, enfim, o que importa não são as nossas idiossincrasias, mas a estrutura de pensamento (EP) do partilhante.

            Ser filosofo clínico é uma contradição em si e per si. Como se calar, se o que a filosofia tem de melhor é a fala falada, escrita, anunciada? Eis aí mais um desafio para a filosofia que é clínica. O silêncio também pode ser o grito mais ensurdecedor, a música mais afinada das sombras sem partitura. É o tecer sem escolher a roupa, apenas o contemplar dos desvelamentos.

            Por isso, volto às contradições. A despeito de não me perder nas suas infinitas interpretações, fixar-me-ei em dois aspectos que, para o momento, vejo-os como mais pertinentes nessa minha empreitada, tentativa de refletir algo do espectro da filosofia clínica.   

Partirei do pressuposto que a contradição é condição sine qua non à existência humana. Apresento, aqui, suas nuances e desdobramentos a fim de compreendermos como este fenômeno se faz presente nas singularidades. Lembro e reafirmo que seria impossível trazer todos os seus aspectos e características à baila, justamente porque a singularidade não se faz única, mas múltipla, provisória e metamórfica.

            As contradições de que tratarei neste testemunho são: lógica e existencial. Para tanto, incorrerei na audácia de explicar cada uma delas. Obviamente, não conseguirei exauri-las em todas as suas complexidades e possiblidades, dado tratar-se de um passo inicial de tentativa, aberto a todas e quaisquer intervenções, inclusive para o descarte, a despeito de salvaguardar o paradigma.

            Contradição lógica: é a contradição do absurdo. Faz parte daquelas ações humanas que jamais poderão coadunar com a vida, mas, na condição de humanos, não somos nada razoáveis. Somos a espécie da impossibilidade. Razoabilidade, definitivamente, não é parte da natureza humana. Talvez nem tenhamos razão. Entretanto, temos vida, por isso a contradição logica. Porém, não somos guiados simplesmente pela lógica da vida. Poderia citar muitos exemplos, mas ficarei com dois.

  1. Vivemos em uma sociedade na qual fomos convencidos de que podemos ser o que quisermos, que podemos fazer nossas escolhas, que, na condição de  adultos, tudo é permitido, desde que haja consenso, enfim, toda essa parafernália liberal de termos escolhas e sermos seres livres. É o que decidimos nas sociedades modernas. Vamos a nossa primeira contradição logica. Ter filhos é uma questão pessoal, ou seja, cada ser humano adulto deverá fazer suas escolhas, entre elas, se terá ou não filhos. Do ponto de vista da lógica e da vida, isso é impossível, a não ser que retiremos a vida da equação. Somente é possível a vida, se seres vivos continuarem a procriarem novas vidas. Claro que não entrarei aqui em particularidades e suscetibilidades, afinal, o planeta já está cheio, tem gente demais, enfim, argumentos contra o povoamento da Terra não faltam. Mas, a intenção aqui é simples: a vida apenas existirá se outras vidas criarem vidas, essa é a lógica;  
  • Em contraposição ao primeiro argumento, mas em demonstração da própria contradição lógica, trago a ideia da morte assassinada, ou seja, ninguém poderá matar outro ser humano. É ilógico assassinar outra pessoa, esta ação contradiz à própria existência da vida, pois seria cruel, irracional, feio, enfim, temos muitos argumentos plausíveis para não dar cabo do outro. Tirar a vida de alguém não corrobora a ação de existir, é uma contradição lógica. Do ponto de vista lógico, assassinar uma pessoa é equivalente a exterminar a vida. Quando uma pessoa tira a vida de outro, isso é como se a criação e o criador deixassem de existir. É o fim da vida, por isso, ilógico, logo, uma contradição lógica;

Como disse, poderia citar outros inúmeros exemplos, mas me fixarei apenas nestes dois exemplos: não ter filhos e assassinar semelhantes. Ambos os casos, optar em não ter filhos e assassinar pessoas, são duas condições de contradições lógicas.

Inclusive, no caso dessas duas contradições, elas não são, necessariamente, inconscientes. Ao contrário, muitas vezes, são planejadas e muito bem delineadas pela faculdade da razão. Não entrarei aqui em nenhum juízo de valor acerca dessas contradições. Seria leviano e desgastante neste momento. A minha intenção é apenas demonstrar que a contradição lógica é parte da existência e da complexidade humana, logo, parte preponderante das singularidades.  

Contradição existencial: se, por um lado, a contradição lógica é um absurdo, por outro, a existencial está intrinsecamente ligada à reflexão do absurdo da contradição lógica. Essa contradição não existiria se não fôssemos seres de opiniões, ideologias, gostos, escolhas, idiossincrasias e afins.

Trarei aqui dois exemplos de contradição existencial e, como na primeira, as possibilidades de reflexão são, praticamente, infinitas. Apenas ressalto que, no caso da contradição existencial, as nuances são muito mais gritantes e pessoalizadas, justamente porque é na historicidade que reside a sua investigação. Há, porém, uma particularidade que precisa ser esclarecida a fim de darmos continuidade a esta reflexão.

Apenas entre humanos é possível essa contradição, pelo óbvio, somos seres culturais. Nenhum outro ser vivo é capaz de criar cultura. Pelo menos ainda não temos nenhuma notícia sobre sítios e empresas epistemológicas entre os outros seres vivos, a não ser impressões e relatos de seres humanos.

Vamos ao exemplo. Enquanto escrevo este texto, há um grande número de pessoas em um festival de música internacional, curtindo os shows, bebendo muito, comendo, devorando fast foods, namorando, paquerando, ou seja, nada de absurdo, tudo dentro do razoável. É o que se espera de jovens saudáveis em uma aglomeração juvenil. Acontece que, neste mesmo momento, a algumas centenas de quilômetros que, dado nosso desenvolvimento tecnológico, ficamos apenas a algumas horas de distância, repete-se uma tragédia humanitária: mais uma vez pessoas, famílias são dilaceradas em suas existências.

As consequências das chuvas são terríveis quando o ser humano não se planeja em suas ocupações urbanas. Sabemos que a falta de recursos financeiros, individualmente, acaba levando um grande contingente de pessoas a ocuparem os espaços de forma irregular. Não exatamente porque assim desejem. Mas, quando não há recursos suficientes para aquisição de espaços seguros, o que resta a essas pessoas? Morar onde é possível. O problema é que este possível, muitas vezes, é mortal. Assim tem sido nos últimos tempos… Parece até filme repetido. Todos os anos vemos no noticiário dezenas de pessoas que morrem simplesmente por morarem, por terem uma casa. E a culpa é de quem? Não vou responder aqui, deixo esse aparte para outras searas da minha vida.

Neste caso, apresentei esses dois exemplos apenas para tratar da contradição existencial. Apenas uma observação histórica. Em outros momentos, nos quais não tínhamos informação globalizada e rápida, em que as pessoas mal sabiam o que acontecia em cidades vizinhas, essa contradição era muito menos latente.

Dando continuidade aos exemplos extremos, de um lado, um grupo de pessoas se divertindo; do outro, pessoas morrendo e sofrendo. Afinal o que isso tudo tem a ver? Tudo e nada. Tudo, afinal não são todos seres humanos? Por esse motivo, não mereceriam todos a diversão ao invés da morte pelo simplesmente pelo fato de estarem em suas casas? Por que essas pessoas que estão se divertindo não param agora e vão em direção aos desabrigados e mortos? Por que essas pessoas que moram nesses lugares não se mudam desses verdadeiros vilarejos de defuntos? Lembrem-se de que disse também nada, afinal, o que poderíamos fazer? Deixar nossas vidas para cuidar dos outros que ainda não estão bem-arrumados em suas vidas … Somente poderei ser feliz quando ninguém mais estiver triste?

Enfim, a questão aqui não é resolver os problemas dos outros, tampouco ficar apontando o dedo moralista para outrem. Mesmo porque essas são apenas algumas das milhões de questões que poderíamos realizar. Inclusive perguntas melhor elaboradas poderiam ser feitas. Meu propósito, entretanto, é apenas dizer que a contradição existencial existe, faz parte da realidade e é impossível superá-la.

Se assim é, então, por que trazê-la à baila? Justamente por ser parte insuperável da vida é que a trazemos ao palco da vida. Seja em consultório, seja na vida social, o primeiro passo para mais um passo é não se furtar a olhar para a questão e enfrentá-la, ainda que seja para admitir a impossibilidade de uma resolução.     

Justamente pelo fato de sermos seres de escolhas, ainda que estejam restritas e limitadas a uma série de questões materiais e contingenciais, ainda assim, somos seres criativos. As escolhas residem no movimento, na ação, na posse, enfim, na mudança de estado físico. Nesse ponto, cito, como exemplo, a pessoa encarcerada, que tem seus movimentos monitorados e limitados. Poderíamos dizer que ela tem muito pouco a escolher diante das possibilidades de externalizar seu corpo existencial.

Entretanto, o que resta ao encarcerado? A criatividade. Somos seres inventores. Inventamos a religião, a ciência, a arte, porque a vida apenas não basta, assim poetizou e profetizou Ferreira Gullar.

Muitas vezes, o encarceramento não está apenas no corpo físico. É nesse ponto que reside a importância e a relevância da filosofia clínica. Ela pode revelar-se uma chave de acesso, o espreitar da vida quando tudo parece perdido e escuro. Às vezes, precisamos de menos luz para vermos o que ninguém está conseguindo sentir e olhar. São aqueles passos que pareciam impossíveis.

Hoje, um pouco mais maduro, perigo de sempre, tenho me convencido de que a terapia é o lugar que criamos para nos encontrarmos com o eu verdadeiro. É o espaço social instituído pela própria sociedade, criado e permitido por ela a fim de cuidar dos eus. Claro que esse verdadeiro é único e singular, mas como se diz no jargão popular, “me engana que eu gosto”, ou, como Cazuza cantou e escreveu em verso e prosa, “mentiras sinceras me interessam”. E ainda caberia uma mentirazinha Suassuna, inocente e reveladora.   

            Posso até nunca ter a filosofia clínica como a minha função primeira e principal, mas jamais voltarei a ser o que era. Posso, inclusive, estar me perdendo ainda mais neste momento, mas entendi algo singular, estou condenado às minhas contradições, mas é justamente por isso que posso sair de lado, olhá-las e enfrentá-las, seja para superá-las, seja para guardá-las e me aceitar melhor nessa caminhada.   

            Por fim, ainda neste breve testemunho, lembro-me de Sartre, quando escreveu e sentenciou que estamos condenados à liberdade. Do outro lado do mundo, ou do lado de cá, pois depende do continente que habitamos, a nossa querida Clarice Lispector foi além, afirmando que liberdade era pouco, pois o que ela queria ainda não tinha nome. Em tempo, peço licença a esses dois gigantes, permitam-me a audácia em dizer que já temos um nome para aquilo de que estamos livres de condenação: na contradição que reside a nossa caminhada livre, singular e criativa. Somos potência de devir.