Filosofia Clínica, Auto-ajuda* e cuidado de si

Tem-me incomodado as constantes referências que ouço fazerem ou que eu mesmo faço à expressão auto-ajuda por aí afora. Por isso fui ao dicionário** buscar referência aos termos “autoajuda” (nos dicionários pós-acordo ortográfico já é grafado assim) e “ajuda”.
Autoajuda
substantivo feminino
1 prática que consiste em fazer uso dos próprios recursos mentais e morais para alcançar objetivos de ordem prática ou resolver dificuldades de âmbito psicológico
2 conjunto de informações, orientações, conselhos que visam possibilitar essa prática
Exs.: curso de a.
livro de a.
Ajuda
substantivo feminino
ação de auxiliar, de socorrer; assistência
Desse modo, se ajuda é essa tal de “ação de auxiliar, de socorrer; assistência” e autoajuda é “fazer uso dos próprios recursos mentais e morais para alcançar objetivos ou resolver dificuldades”, por que, então, as psicoterapias e a Filosofia Clínica não poderiam fazer uso desse termo, sendo que têm por objetivo ajudar as pessoas que procuram a terapia a auto-ajudarem-se elas mesmas, no enfrentamento das questões que trazem para a clínica?
Está certo que, talvez principalmente após a explosão e a exploração de inúmeras publicações, bem como a proliferação de cursos e “terapias” que vendem auto-ajuda, o termo passou a ser visto, por muitos, pejorativamente. E até concordo que determinadas ofertas do que se apresenta como tal devam ser questionadas, mesmo porque o mercado capitalista usa de toda e qualquer artimanha para lucrar, mesmo diante da dor e do sofrimento, da angústia e da tristeza das pessoas, da sociedade como um todo. E daí aquela derivação que muitos também usamos de “autor-ajuda”, dado o lucro que o mercado editorial e certos autores têm com esse tipo de produto.
Bem, mas meu incômodo, como disse no início, não é de nos apropriarmos do termo auto-ajuda, mas sim de o ressignificarmos, dando-lhe a direção apontada pelo dicionário. Através de nosso trabalho como terapeutas, como Filósofos Clínicos, deveríamos enfatizar que a terapia objetiva levar as pessoas a auto-ajudarem-se, a serem elas mesmas condutoras de suas vidas naquilo que o pensador francês, Michel Foulcault***, em sua obra Hermenêutica do Sujeito, ressaltou como o cuidado de si.
Nessa obra, o autor busca resgatar das tradições e das escolas filosóficas da Grécia antiga, como a epicurista, a estoica, a cínica****, por exemplo, o cuidado de si, que, para ele, ficou subjugado ao conhecimento de si. O conhece-te a si mesmo não pode sobrepor-se ao cuide-se de si mesmo. O cuidado de si é caminho para o auto-conhecimento e este auto-conhecimento só faz sentido se levar ao cuidado de si.
Faço uso aqui das palavras do Psicólogo Clínico Rafael Trindade: “a intenção de quem cuida de si é fazer emergir uma outra natureza, própria, não dada, e, portanto, originariamente ainda não conhecida”; “o cuidado de si conduz a um novo eu, uma nova relação consigo mesmo. Passamos da verticalidade para a horizontalidade”; “Cuida de ti mesmo, para ser capaz de enunciar de ti mesmo a verdade”.*****
Ao menos para mim, entendo que ninguém consegue ajudar-se sozinho: é na relação com os outros e através da intermediação dos outros que vamos nos auto-ajudando, nos auto-cuidando e nos auto-conhecendo. E, sempre em meu entendimento, a terapia filosófica tem essa grande responsabilidade como intermediadora, aquela que vai oferecer meios, sempre de acordo com a história de vida e o modo de pensar e ser da pessoa, para que ela mesma se auto-ajude, se auto-cuide, se auto-conheça e construa seus caminhos, busque e teça as suas verdades e as coloque diante de tantas outras verdades, com autonomia e abertura para a necessária relação e convivência consigo mesmo e com a coletividade.
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*Embora o novo acordo ortográfico estabeleça que a grafia correta, de então em diante, seja “autoajuda”, quis aplicar o uso anterior ao tal acordo, “auto-ajuda”, nesse caso, tão somente por uma razão estética de minha parte, por achar que fica mais bonito esse modo de grafar o termo no português brasileiro usado até então. Nem sempre precisamos nos submeter aos estrangeirismos, seja de Portugal, seja de onde for…
** Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 2009.3
***Filósofo francês (1926-1984)
****Epicurismo: doutrina do filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.); Estoicismo: doutrina fundada por Zenão de Cício (Grécia – 335-264 a.C.); Cinismo, doutrina fundada por Antístenes, filósofo grego (Grécia – 445-365 a.C.): embora cada uma com doutrina própria, todas praticavam a filosofia como um “estilo de vida”, como uma ética, um modo de pensar e ser diante do mundo. OBS.: Escola Cínica – não confundir com o termo “cínico” e a prática “cínica” corrupta e fascista que sempre marcaram e marcam determinadas políticas, determinados governos e determinados comportamentos individuais/sociais de outrora e de nossos dias.
*****Artigo “Foulcault – Conhecimento e cuidado de si”, in https://razaoinadequada.com/2016/11/27/foucault-conhecimento-e-cuidado-de-si/
Paulo R.Grandisolli

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