A presente colaboração teórica terá como referência principal o terceiro capítulo de Pedagogia da autonomia, um dos últimos textos deste autor, publicado especificamente em finais da década de 1990.
É precisamente nesta obra que Freire expõe sua compreensão sobre a escuta, o diálogo e o cuidado como inerentes à prática pedagógica libertadora. Sua afirmação acentua que a escuta é uma exigência.
Faz-se necessário considerar que há um pressuposto antropológico fundamental primigênio e fundante da epistemologia freireana, perpassando toda a sua prática pedagógica: os seres humanos somos seres inacabados; ou seja, não somos, mas estamos sendo. Trata-se, portanto, de uma característica ontológica. Vivemos e existimos em processualidade, em busca de ser, que o autor nomeia como SER–mais. Esta condição humana se dá mediante a construção da cultura, a criação e a transformação daquilo que chamamos natureza, pela atividade laborativa ou trabalho; fazendo uso da expressão verbal, a fala, a palavra e diversas outras linguagens ou semioses.
Toda a teoria freireana se volta para a afirmação da dialogicidade e da horizontalidade no processo intersubjetivo do conhecimento. De modo que não deve haver separação entre conhecer, ensinar e aprender. Quem ensina aprende e quem aprende também ensina, reciprocamente. Aqui, podemos fazer a substituição do binômio educador–educando, por filósofo/filósofa clínica–partilhante. Partindo dessa situação chamada situação gnosiológica, como momento de conhecimento, é que o autor explicita a necessidade do diálogo, do cuidado e da escuta. Sendo importante não esquecer que toda terapia consiste num processo eminentemente dialógico. O termo terapia, inclusive, tem sua origem num verbo grego que significa cuidar (terapeuw). O exercício da clínica é o exercício do cuidado para com as pessoas. Mas, um cuidado recíproco, entre terapeuta e partilhante; uma vez que Paulo Freire reafirma o conhecimento como processo que se dá na intersubjetividade. Porque a terapia também é um momento de conhecimento. E ninguém conhece sozinho, mas dialogicamente, com outros. Não há um eu penso, eu conheço, desligados do nós conhecemos, do nós pensamos. Assim como também é um processo educativo, pois filósofo/a e partilhante compartilham ideias, significados, perspectivas e visões de mundo.
É importante distinguir que o diálogo não é conversa nem bate-papo, mas o encontro entre pessoas que se respeitam ao pronunciar seus mundos, mediante a horizontalidade da comunicação. E não pode acontecer numa relação antagônica. Não se trata de igualdade niveladora, mas de cuidado na comunicação, pois a comunicação e a inteligibilidade se dão simultaneamente. A relação entre pensamento-linguagem-contexto não pode ser rompida. Vale lembrar o que a Filosofia Clínica chama princípios de verdade. E aqui surge outro componente importantíssimo nesta relação: o silêncio. Escuta, diálogo, cuidado e silêncio integram todo o momento deste encontro. Tais categorias possuem uma natureza ética. Numa referência direta a isto Freire afirma que “no processo da fala e da escuta a disciplina do silêncio, a ser assumida pelos sujeitos que falam e escutam, é condição “sine qua” da comunicação dialógica… É preciso que quem tem algo a dizer saiba, sem sombra de dúvida, não ser o único ou a única a ter o que dizer; nem o que tem a dizer é uma verdade acabada e alvissareira (…) Ao contrário, o espaço do educador democrático, que aprende a falar escutando, é cortado pelo silêncio intermitente de quem, falando, cala para escutar a quem, silencioso, e não silenciado, fala. A importância do silêncio no espaço da comunicação é fundamental. De um lado, me proporciona que, ao escutar, como sujeito e não como objeto, a fala comunicante de alguém procure entrar no movimento interno do seu pensamento, virando linguagem; de outro, torna possível a quem fala, realmente comprometidocom comunicar e não com fazer puros comunicados; escutar a indagação, a dúvida, a criação de quem escutou. Fora disso fenece a comunicação. Escutar é obviamente algo que vai mais além da possibilidade auditiva de cada um. Escutar, no sentido aqui discutido, significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro…”
Aceitar e respeitar a diferença é, deste modo, atitude sem a qual a escuta não pode acontecer. Portanto, escutar, respeitar, fazer silêncio, respeitar a palavra e os silêncios, estão dialeticamente relacionados e integram o cuidado terapêutico-filosófico.