Outridades e Filosofia Clínica

OUTRIDADE: OUTRO/A + IDA + IDADE
A OUTRA pessoa que é minha igual, mas que é, principalmente, ao mesmo e no seu próprio tempo e ritmo, diferente de mim.
A OUTRA pessoa que é IDA, i. é, que vem, que vai, que é movimento, que tem o direito e quer construir seu próprio caminho.
A OUTRA pessoa que tem sua IDADE, i. é, que tem seu tempo, seu ritmo, seu compasso próprio.
Eu e o(s) outro(s). Eu diante do(s) outro(s). Eu ao lado do(s) outro(s). Eu adiante do(s) outro(s). Eu na contramão do(s) outro(s). Eu acima e abaixo do(s) outro(s). Eu com e sem o(s) outro(s). Eu dentro e fora do(s) outro(s). Eu que me aproximo e me afasto d(s) outro(s). Eu que desejo e repugno o(s) outro(s). Eu que sou outro(s). O(s) outro(s) que são eu. Eu igual e diferente do(s) outro(s)…
A(s) outra(s) pessoa(s). O(s) outro(s) homem(ns). A(s) outra(s) mulher(es). O(s) outro(s) animal(ais). As outras plantas. As outras espécies vivas. As outras metades das maçãs. As outras palavras. Os outros aromas. Os outros olhares. Os outros toques. As outras circunstâncias. Os outros sons. Os outros sentidos e sentires. As outras realidades. As outras etnias. As outras sociedades e culturas. Os outros tempos. As outras crenças e descrenças. Os outros lugares. As outras peles. As outras contingências. Os outros pelos. Os outros paladares. As outras relações. As outras geografias. Os outros gumes das facas. Os outros corpos. As outras ideologias. Os outros afetos e desafetos. Os outros espaços. As outras políticas. Os outros amores e dasamores. Os outros lados das mesmas moedas. Os outros assuntos. Os outros sexos e gêneros. As outras tecnologias. Os outros sonhos. As outras orientações sexuais. As outras mundivisões. Os outros mundos possíveis e impossíveis…
O “eu profundo e os outros eus” de Fernando Pessoa. O eu que é “vária” de Cecília Meireles. “O inferno são os outros” de Sartre. A outro como alteridade de Martim Buber. O outro como lucro: mão-de-obra, força de trabalho, objeto exploração e de prazer no mercado do sexo. O outro como objeto de estudo para as ciências. O outro como ensinante e aprendiz de Cora Coralina. A outra face dos Evangelhos…
E o rol de outridades vai ao infinito, mesmo diante das limitações de meu e de nosso modo sentir, pensar, aprender, entender, falar, de expressar enfim.
Tudo assim, sem agrupar essas e tantas outridades possíveis. Pois tudo tem a ver com tudo. Eu sou e nós somos a(s) parte(s) e o(s) todo(s). Não tem como dissociar corpos, gastronomias, políticas, geografias, sexos etc e tal. Até podemos fazê-lo por questões de métodos, didáticas, ideologias, interesses, poderes. Mas, na vida, isso não é possível. Não somos seres divididos. Em tudo sou e somos interdependentes.
Às vezes e quase sempre essas outridades e singularidades dos outros nos interpelam e não nos dizem nada; nos encantam e nos desencantam; nos desafiam e nos apatizam; nos curam e nos ferem. Mas nunca ou quase nunca nos deixem imunes. Acredito que não tenho como me esquivar diante dos outros. Contraditoriamente e ambiguamente eu sou eles e eles são eu. Ao mesmo tempo que singulares, iguais e diferentes.
E admitindo, querendo ou não, sem os outros, sem as diferenças, eu e os outros não teríamos as referências que nos possibilitam pautar a nossa existência. Nós olhamos e somos olhados. Pensamos e somos pensados. Nos construímos e somos construídos. Vivemos e somos vividos. Como diz o jargão popular moderno: tudo junto e misturado.
Diante desses(as) tantos(as) outros(as), quem sou eu? Quem é/sâo o(s) outro(s) e a(s) outra(s). É essa indagação que as filosofias, ao longo da(s) história(s), fizeram e continuarão a fazer. Sim, continuarão, pois eu, os outros e as outras somos processo, somos movimento. Nunca serei, nunca seremos os mesmos e as mesmas sempre. Somos caminho. Somos construção.
Parodiando o poeta: pela longa estrada eu vou, nós vamos; estrada eu sou, nós somos…
Penso que em todo o dito até aqui, está a Filosofia Clínica enquanto terapêutica existencial, enquanto terapêutica da vida. Deverão estar imersos em seus eus e nas outridades, como terapeutas, o Filósofo Clínico e a Filósofa Clínica. Supõe serem pessoas sensíveis, que têm ciência de ser um eu diante de outros eus. De ser singularidades diante de outras singularidades. De ser diferentes e ser iguais. E, por isso, buscarão colocar-se perante as outras pessoas para contribuir, para trilhar com elas caminhos que as levem a entender-se e a viver melhor com as suas igualdades e as suas diferenças, com as igualdades e as diferenças das outras pessoas, com as certezas e as dúvidas, com as perguntas com respostas e as perguntas sem respostas que, penso, todos e todas temos. A viver de forma mais serena com os vários eus que as habitam e com todas as outridades com quem convivem e se relacionam. E respeitando “a dor e a delícia” de cada pessoa ser quem é e construir o que quer ser.
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Paulo R. Grandisolli

Filosofia Clínica e o Feminismo

Lendo a obra de Ivone Gebara, Filosofia Feminista – Uma brevíssima introdução (2017), comecei a pensar, com base no que a autora diz acerca de uma filosofia feminista, se a Filosofia Clínica, tanto em sua concepção como em seu modo de pensar e fazer filosofia, também não seria uma “filosofia feminista”. Mesmo porque, tanto a palavra “filosofia” como a palavra “clínica” são substantivos femininos. E até porque, em sua origem, a Filosofia é considerada a mãe de todas as outras áreas do saber.
A autora afirma que “a filosofia feminista surge quando nós, mulheres tomamos consciência de que também nós somos convidadas à mesa do pensamento, e temos todas as possibilidades de pensar a vida com maestria e sabedoria. Afinal não somos nós que arrumamos a mesa e preparamos a comida? Por isso não desprezemos o convite que a história de hoje nos faz a todas nós: ousar pensar a vida e vivê-la podendo dizer com dor e amor: eis-me aqui”.
Esse “eis-me-aqui”, penso, também é a proposta da Filosofia Clínica, pois ao colocar-se frente a frente com a pessoa, de acordo com sua historicidade e com as dores e as alegrias do cotidiano, buscará, junto dela, ajudá-la a pensar a si mesma, a vida, ao mundo de seu jeito próprio, desengessado pelos padrões impostos. E mesmo que faça uso do conhecimento filosófico construído ao longo da história, procurará abordar esse saber e traduzi-lo de acordo com a singularidade de cada um, de cada uma. Não será a vida que se adaptará a uma ou mais teoria filosófica, mas o contrário: o que esse conhecimento construído pode oferecer para que essa pessoa se conheça melhor e se municie de saber para criar e recriar sua identidade própria e afirmar seu modo de ser e estar no mundo.
Gebara visa, em meu entender, despertar e reforçar nas mulheres essa sua capacidade de sentir, pensar, entender, dizer, expressar a vida desde aquilo que lhes é próprio, não no sentido de que esse “lhes é próprio” já tenha sido determinado pela natureza ou por interpretações que delas fizeram – geralmente feita por homens, mas desde como elas mesmas se sentem, se veem e se mostram para si mesmas e para o mundo.
Assim também a Filosofia Clínica quer contribuir para que as pessoas assumam-se nas suas singularidades, não ficando presas aos padrões e aos pré-juízos que se constroem por terceiros e que se estabelecem enquanto convenções e conveniências de uma sociedade marcada pelos preconceitos, pelos machismos, pelos fascismos e toda ordem de desmandos que buscam enquadrar a pessoa de acordo com o que é considerado “bom” para manutenção da “ordem” e do status quo.
A autora reforça que compete às mulheres que o “pensar filosoficamente a vida, procurando as razões das muitas coisas que vivemos, é de certa forma se retirar das atividades comuns para assumir de forma específica a atividade de pensar, compreender, relacionar, buscar dados e escrever”, admitindo sempre “o limite de nossas percepções e de nossos pensamentos”, mas ousando fazê-lo por si mesmas.
E continua: “não há verdades feitas a serem ensinadas, mas caminhos desde os quais há que aprender a viver na insegurança. Por isso é necessário voltar à trama da vida e acolher a sua constante mobilidade como aprendizado coletivo”.
Igualmente em Filosofia Clínica, filósofo clínico e partilhante buscarão a construção compartilhada de saberes que levem a uma nova atitude perante a vida individual e coletiva.
“Narrar a história dos outros é um enorme exercício de poder sobre eles e elas. É reduzi-los à nossa visão e narrativa”. Por isso, são as mulheres que deverão continuar narrando as suas próprias histórias e não mais admitirem que essas histórias que lhe são próprias, embora partes de uma história maior, sejam narradas por outros, na sua grande maioria homens, que as colocaram e colocam como personagens passivas e submissas, destinadas a reproduzir modelos viciados e opressores de mentes e corpos. É a partir de seus próprios corpos, enquanto algo que lhes é próprio e singular, mas também enquanto afirmação social e política, que essa nova filosofia deve ser construída.
Mais uma vez aqui, a Filosofia Clínica aproxima-se da filosofia feminista, pois o terapeuta jamais deverá narrar a história da pessoa com base em suas interpretações, mas proporcionar à pessoa que ela mesma seja a narradora de sua história, com base no que sente, pensa, entende de si mesma e do mundo. E deverá ter uma escuta atenta à literalidade do que lhe é dito, para assim iniciar o processo de entendimento do modo de ser e estar da pessoa.
Pode ser pura elucubração essa minha tentativa de aproximação da Filosofia Clínica de uma Filosofia Feminista, melhor dizendo, das Filosofias Clínicas e das Filosofias Feministas. Mas vejo que ambas buscam olhar de um modo diferente para a pessoa e para o mundo, resgatando aquilo que deu início ao filosofar, que é essa capacidade de espanto, de angústia, de questionamento frente às coisas da vida e ao mundo.
Sim, a Filosofia Clínica pode ter essa postura feminista também enquanto desafio na construção de um novo filosofar, mesmo porque ao colocar-se frente a frente com as pessoas ou grupos ou organizações, o/a terapeuta terá que ter esse olhar singular para aquela singularidade diante da qual se coloca, seja ela de que gênero for, masculino, feminino ou tudo junto e misturado, assim como é ou deveria ser a vida. O mundo multifacetado exigirá de nós sentires, pensares, agires que nos possibilitem respirar melhor os ares que nos perpassam os corpos individuais e coletivos, buscando mudanças de ares numa sociedade e num mundo onde imperam o poder e a força bruta e os machismos de toda ordem que ainda teimam em dominar mentes e corpos.
Mas, como vem mostrando o movimento feminista, mentes e corpos não podem ser subjugados para sempre. O desejo de liberdade de pensamento e ação é mais forte.
“Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria
Mas é preciso ter manha
É preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida”.
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Paulo R. Grandisolli

É POSSÍVEL MENSURAR O AMOR? – Exercícios filosófico-sentimentais…

“Faça tudo para que, quando estiver prestes a morrer, não se arrependa por ter amado pouco.” (Chiara Lubich, 1920-2008)
Lendo essa frase numa destas folhinhas-calendário vêm-me uma série de questionamentos.
Assumo, de antemão, que apenas a li desta maneira, solta, sem conhecer se essa opinião faz parte de um texto maior, de qual texto, de que momento ou circunstância o mesmo foi escrito ou verbalizado.
E mesmo conhecendo um pouco da autora, se é que foi ela mesma que o disse (tantas palavras/pensamentos são atribuídos a tanta gente sem citação de fonte ou comprovação…) e sabendo de sua confissão e prática religiosa cristã/católica, mesmo assim isso daria motivos para não me atrever a dar uma opinião, pois correria o risco de, desconhecendo o contexto, fazer juízo de valor sobre o dito e sobre quem o diz.
No entanto, vou me arriscar…
E começo por perguntas tais como:
O que seria o amor? O que seria o desamor? De que tipo de amor se fala? Quem ama? Quem é amado? O que se ama? De que forma se ama? Quais as formas do amor? O que é arrepender-se? O que é não arrepender-se? Arrepender-se do que? O que é a morte? O que é estar prestes a morrer? Se for o caso de arrependimento, por que só fazê-lo quando se está prestes a morrer? O que é ter amado pouco? O que é ter amado muito? É possível mensurar o amor? Assim como qualquer outro sentimento?
Tendo essas questões em mim é que me atrevo a discorrer um pouco sobre assunto. Isso porque, como ser questionante e, como diria Clarice Lispector, “eu sou uma pergunta”, não posso e não consigo ficar quieto comigo mesmo diante de tais “frases de efeito”, como tantas que vejo proliferar por aí, especialmente hoje com as redes sociais (facebook, instagram, watsapp etc…) nas quais, a todo momento, hora, dia, semana, mês se deseja a felicidade (feliz segunda, terça, quarta… feliz isso ou aquilo…) e te amo daqui e de acolá… e por aí vai… Isso tudo me incomoda bastante e dá-me a impressão de que, por fazermos uso exagerado de tais “mecanismos”, o fazemos justamente porque nos falta aquilo que exacerbadamente desejamos uns aos outros. Aliás, isso já é “comprovado” pelas teorias psi: amamos aquilo que nos falta.
E, principalmente em tempos sombrios como os que vivemos, onde os valores são invertidos especialmente por aqueles que determinam a ordem estabelecida, ou seja, os políticos e governos de plantão, sempre a serviço das elites financeiras que os mantém, onde as oportunidades parecem cada vez mais escapar da história da grande maioria dos mortais, parece crescer vertiginosamente esse tipo de comportamento, reflexo de um sentir e de um pensar que, na realidade, são pseudo pensamentos, pois buscam numa realidade “ilógica” argumentos para “racionalizar” e mensurar, nesse caso, a capacidade de sentir e os sentimentos das pessoas. Aliás, controlar os corpos e os sentimentos é fundamental para manter o status quo, a (dês)ordem dominante. “Sorria, você está sendo filmado”, quer dizer, “sorria, você está sendo vigiado”. Em Vigiar e Punir, Foucault já apontava para isso. E seria arriscado dizer que hoje, além dos mecanismos tradicionais de vigilância, as redes sociais são os panópticos modernos e estaríamos nós confinados em grandes zoológicos, mesmo quando dentro de nossas casas? Disso tudo é desafiante libertar-se. Isso se se quiser a liberdade como valor maior. Quando se ama a liberdade, podemos assim dizer.
O amor, o desamor, que tipo de amor, quem ama, quem é amado, como se ama, de que forma se ama, o arrependimento, o arrepender-se ou não, a morte, o estar prestes a morrer, o pouco, o muito… tudo depende de cada experiência de vida, da singularidade de cada pessoa, da história que se viveu e se vive, das relações que estabelece ou não, daquilo que é ou não importante em sua vida, da liberdade que se busca e se conquista. Não dá para enquadrar toda e qualquer pessoa num dito como o mencionado acima e daí concluir que tal pessoa, estando prestes a morrer, que é o corte pelo qual passaremos, tenha amado muito ou pouco. As histórias de cada humano ser são muito mais complexas do que podemos supor ou imaginar. Nada na vida é simples, principalmente em se tratando de formas de sentir.
Nosso sentimento para conosco mesmos, para com o mundo, para com tudo o que nele existe, para com as pessoas em particular, suponho, é “algo” de muito profundo e multifacetado, a depender, sempre, dos “estados” em que nos encontramos e das diversas relações estabelecidas ou não, das circunstâncias, dos lugares, dos tempos, dos diversos assuntos, das diversas questões com as quais nos deparamos. Somos um constante processo, no qual vamos aprendendo amores e dasamores.
Como diria Octávio Paz (1914-1998), em seu texto Máscaras Mexicanas: “O amor é uma tentativa de penetrar em outro ser, mas só pode ser realizado sob a condição de que a entrega seja mútua” (O Labirinto da Solidão, 1984, p. 41). E isso, penso eu, deve valer para toda forma de amor. Como canta o poeta, “toda forma de amor vale a pena, toda forma de amor vale amar”.
E caberá a cada pessoa dispor-se a essa entrega. Na vida, e no amor, quase sempre saltamos no escuro. Estando ou não prestes a morrer. E não há medidas…
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Paulo Roberto Grandisolli

Filosofia e Política

A dúvida, a inquietação, a contestação e a busca são próprias da investigação filosófica. As filosofias nasceram dessas atitudes diante das questões que instigam e inquietam mulheres e homens ao longo da história, desde os “mistérios” da natureza, passando pelas questões cruciais da existência humana, como o sofrimento, a morte, as angústias, até as questões éticas, políticas, sociais e culturais. No filosofar tudo cabia e tudo cabe, desde que o exercício do pensamento não permaneça no mero senso-comum ou apenas no bom senso, que não se reduza a mera especulação e teorização, mas traga contribuições e transformações concretas e necessárias para a vida cotidiana, em termos do que se chama filosofia da práxis.
Práxis, aqui entendida como um pensamento, uma reflexão que estimula a prática; mas uma prática que instigue o constante pensar, repensar e refazer conceitos, teorias etc, objetivando a transformação da realidade. Práxis não é mera prática; mas, ação, conduta. Ação e conduta que se identificam com o próprio modo de pensar, ser a agir no mundo, não só enquanto ação de indivíduos, mas principalmente enquanto ação coletiva. Um pensar e agir coletivos que levem a uma transformação social. Rosa Luxemburgo (Polônia/Alemanha, 1871-1919), Antonio Gramsci (Itália, 1891-1937), Adolfo Sánchez Vázquez (Espanha/México, 1915-2011), Paulo Freire (Brasil, 1921-1997), Carlos Nelson Coutinho (Brasil, 1943-2012), são alguns desses filósofos que contribuem para nosso entendimento acerca da práxis. Vale lembrar, principalmente, Karl Marx (Alemanha/Londres, 1818-1883), ao afirmar que os filósofos, até então, haviam interpretado o mundo; a questão mais importante é transformá-lo.
Atualmente, em várias partes do mundo, particularmente no Brasil, vivemos num chamado estado de exceção, que no dizer do filósofo italiano Giorgio Agamben (1942-), é aquele que “apresenta-se como forma legal daquilo que não pode ter forma legal”*; uma frágil democracia se mescla ao autoritarismo. Em nosso país, após um golpe midiático-político, instalou-se um governo declaradamente submisso às oligarquias econômico-financeiras nacionais e internacionais cujo propósito é consolidar o neoliberalismo, em que o mercado tem absoluta liberdade para ditar e implantar as regras da política, restringindo a ação do Estado sobre a economia. Daí os chamados direitos civis e sociais passarem a ser gerenciados pelas grandes corporações como mercadoria, imperando a suposta “livre” negociação, sobretudo nas relações de trabalho. Sabe-se daí, como diz o ditado, a corda sempre arrebenta do lado mais fraco. E toda essa forma de pensar e gerir a política estende-se como uma “práxis perversa” para todos os aspectos da vida humana, como a educação, a saúde, a cultura. Sejam observados projetos como o escola sem partido, o escanteio de matérias como Filosofia e Sociologia nos currículos escolares, a privatização de serviços básicos como energia e saneamento, a expropriação de territórios de populações indígenas e quilombolas, as intervenções em exposições e performances artísticas, entre outras, que temos presenciado ultimamente.
Enfim, o estado de exceção expõe um obscurantismo nas áreas do direito e da democracia, instaurando-se um estado policialesco, no qual o judiciário age como mandatário supremo, à guisa dos outros poderes, todos mancomunados, espetacularizando ações, inquéritos, conduções coercitivas, prisões… E os grandes meios de comunicação, especialmente a TV, corroboram e contribuem para levar ao delírio uma grande parcela da população que não foi e não é estimulada a pensar por si mesma, repetindo o pensamento único veiculado e tido como verdadeiro. Daí, pensamentos e comportamentos preconceituosos e discriminatórios (xenofobia, LGBTfobia, misoginia, linchamentos, intolerância religiosa etc) afloram e se sentem legitimados por boa parte dos que ocupam e usurpam cargos no Congresso, nos Supremos Tribunais e demais instâncias governamentais.
Mas, e daí? Para que serve afinal a filosofia? M. Gadotti, filósofo brasileiro, em artigo publicado no periódico Reflexão (PUCCAMP)**, já tematizava essas questões aliadas ao ensino e estudo da Filosofia. Naquela época, então sob uma ditadura militar, constatava que “na ordem do sistema capitalista, a única filosofia tolerada é a filosofia da alienação. O capital precisa cada vez mais de homens alienados. (…) As discussões sobre a opressão e a ditadura certamente não terão lugar numa classe de física ou de matemática”. Afirmava também que “a filosofia deixou de ser o lugar do debate dos grandes (e graves) problemas do homem contemporâneo. (…) Pretensiosamente, a filosofia dos especialistas, dos filósofos por profissão, recusa-se a tratar dos problemas concretos e urgentes dos homens, para servir às organizações políticas e econômicas do capitalismo”. Vivemos uma situação análoga. Daí a urgência de nos reapropriarmos da filosofia, entendermos a necessidade de um filosofar, como “exercício do livre debate, ensinar e aprender a problematizar o que parece evidente, necessário, correto; ensinar e aprender a contestar (…). Nesse sentido, cada vez mais o filósofo me parece como o homem da suspeita, o homem que não duvida apenas, mas vai além da dúvida, suspeita sistematicamente e sobretudo das evidências, das coisas que se apresentam de forma definitiva, das coisas claras, que há sempre algo que não se mostra, que está escondido atrás das aparências, suspeita da parcialidade daquilo que vê”.
Consideramos parte essencial do pensamento filosófico ver para além das aparências e debruçar-se sobre as questões do cotidiano, de um sistema que submete homens e mulheres como meros componentes de uma pretensa “máquina pensante” e lhes incute a ideologia de se tornarem, como diz o filósofo chileno V. Safatle***, empreendedores de si mesmos, cujos pensamentos, corpos e desejos são controlados pelos grandes “centros de tecnologia-entretenimento-informação” formadores de “um tripé basilar da economia mundial”, reduzindo-os a objetos e negando-lhes as individualidades e o primordial direito ao pensamento e ao agir autônomos. Defendemos um filosofar que colabore para o restabelecimento e a consolidação da democracia brasileira, inclusive pensando noutros modelos, que não apenas o modelo democrático representativo, como as democracias comunitárias e participativas, em que as pessoas, o povo possa se pronunciar em sua soberania e como origem do poder político.
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*Giorgio Agamben, Estado de Exceção, 2004.
**Moacir Gadotti, Para que serve afinal a Filosofia? Reflexão, PUCCAMP, 4/13, jan-abr/79.
***Vladimir Safatle, O Cirucuito dos afetos – Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo, 2015.
Marcelo Bezerra Oliveira / Paulo Roberto Grandisolli

A razão cínica*

Previamente quero esclarecer que o termo razão cínica não tem aqui a conotação ética da escola grega dos tempos pré-socráticos.
Denomino razão cínica ao procedimento que pretende justificar ou pelo menos querer legitimar aquilo que pelas vias do raciocínio lógico rigoroso é injustificável e inaceitável.
Trata-se de uma postura cínica no sentido antiético e vulgar.
O movimento filosófico denominado Escola Cínica, atribuído aos pensadores ditos cínicos, caraterizava-se pelo desprezo das convenções e preconceitos relativos ao comportamento do senso comum. Objetivava uma vida de simplicidade radical e renúncia à posse de bens. A provocação de um choque mediante a quebra de tabus e convencionalismos rígidos. Uma postura de cepticismo e questionamento.
Atualmente, o discurso pautado pela razão cínica, longe desta tendência, consiste numa posição superficial, autoritária e afirmativa do conformismo subserviente à estabilidade do sistema dominante. Trata-se de uma razão cega, porque vê, mas finge não ver. Sabe, mas não reconhece; por ser politicamente conveniente e submissa aos interesses ideológicos dos que fazem a negação das evidências. Enquanto a filosofia cínica dos gregos antigos tinha uma posição cognitiva de contestação aos padrões dominantes, a razão cínica atual, sendo conformista, sequer se assume como tal, porque pretende se camuflar enquanto discurso que defende exatamente a manutenção desses padrões, pelo discurso falacioso sem nenhuma força de argumento que mereça o nome de racionalidade lógica. O próprio termo razão, neste caso, está impróprio, já que se trata mais de uma negação da própria racionalidade. Seria uma espécie de desrazão ou anti-razão. Relacionadas de tal modo que racionalidade e cinismo se confundem, sem que um anule o outro. Nesse contexto só é possível ser racional sendo cínico.
Um dado estatístico evidente a todos, por exemplo, passa a ser evitado, negado ou simplesmente invertido, sem que se apresente uma razão suficiente para tal, afora o interesse do interlocutor que o nega. Trata-se mais de um discurso falacioso que pretende dissimular certo autoritarismo, mediante dados verdadeiros, porém invertidos; pelo avesso, digamos. Uma negação de dados verdadeiros, exceto para quem os rejeita, por invertê-los em razão de malignidade e má fé.
A razão cínica em sua postura poderá até usar o que chamamos má fé e malignidade. Embora, diga-se, não se confundem. Pelo fato de que se funda no saber e em sua negação.
No momento atual esse tipo de irracionalidade inconseqüente e irresponsável é usado para disfarçar o absurdo inocultável nomeado como crise econômica, crise de paradigmas, crise da razão. Contanto que não se nomeie como crise do sistema capitalista.
As “razões” da razão cínica são geralmente as chamadas “razões ocultas”, os interesses inconfessados, o que está escondido por preferências, negociatas, desvios, conveniências pessoais, corporativas, de classe social etc. Seriam os resquícios da famosa mão “invisível” de Adam Smith. Aquilo que está camuflado, que não aparece nem é nomeado, porém transparece nas decisões e escolhas dos sujeitos falantes. E assim já não é tão oculto. Em síntese, é o tipo de discurso em que o sujeito falante, fazendo uso de falácias, atinge um nível acentuado de inescrupulosidade. Paralogismo? Não. Pelo fato de que o simples paralogismo possui apenas uma falha de natureza lógico-formal no argumento, sem necessariamente usar de malignidade; enquanto o discurso da razão cínica sabe que é inverídico e perverso. Usa o que denomino perversão ideológica. Embora não se reduza a mera questão de ideologia enquanto falsa consciência.
Alguns exemplos de falácias freqüentes no discurso sociológico reacionário podem nos esclarecer. Quando se afirma que o encontro entre europeus e indígenas foi pacífico. Que os nativos foram bem tratados e presenteados. Afirmar que a escravidão dos africanos não foi uma questão racial, mas apenas econômica. Que os negros conviviam pacificamente com os brancos portugueses no território brasileiro. Afirmar que todo brasileiro pode ser candidato a presidente da república. Que todos são iguais perante a lei. Que os Estados Unidos querem implantar a democracia nos países do oriente. Que nos últimos quatro anos cerca de quinze milhões de brasileiros saíram da classe baixa para a classe média. Que o crescimento econômico de percentuais do PIB de um país traz melhoria de vida para o povo. Enfim, tais discursos fazem uso da perversão estatística, pela inversão de dados. Trata-se de uma forma de legitimação e justificação do injustificável e ilegitimável. Um discurso que recusa enxergar os fatos visíveis e a perversão interna de sua falácia. Não se trata de uma falácia que leva à perversão, mas é a própria perversão em palavras inócuas que se pretendem consistentes.
Além desses exemplos, outro tipo emblemático de máximo cinismo acontece quando o próprio arcabouço jurídico permite que parlamentares ou empresários criminosos de alta periculosidade, tendo comprovadamente desviado milhões dos cofres públicos, como membros de quadrilhas, sejam defendidos por advogados particulares filiados à própria ordem dos advogados. Em nome do “direito”!
Sempre um discurso vindo do poder que pretende justificar a própria necessidade de transgressão ou ilegalidade pelas brechas da legalidade. Pior ainda por se tratar de uma perversão ideológica produzida pelas elites dentro das universidades. Que não teve origem aqui, mas nas universidades dos Estados Unidos e dos países europeus. Países onde, segundo o discurso dessas mesmas elites cínicas, “tudo funciona”. Entenda-se: a alta criminalidade. A exemplo da Suíça, com seus paraísos bancários; a França e a Itália racistas; todos com seus esconderijos para a bandidagem internacionalmente organizada em torno do dinheiro.
Não seria difícil reconhecer que este tipo de postura também se faz presente no comportamento das massas, que geralmente tendem a repetir o senso comum e o banditismo das elites. Neste sentido ambas não se diferenciam tanto. As elites possuem poder para impor o absurdo. O comportamento inescrupuloso das elites, o seu banditismo, a sua delinqüência, incentiva a delinqüência assassina e mortífera das massas; como analisou e previu o pensador Jurandir Freire Costa, há vinte anos, em entrevista sobre a razão cínica das elites brasileiras de fins da década de oitenta; e que nos dias atuais só tem piorado (cf. A ética e o espelho da cultura).
As massas não dispõem de poder, mas consentem, aplaudem, apoiam e imitam a prática das elites no que há de mais sórdido. Por isso são tão horrorosas. A meu ver um dos obstáculos mais difíceis para uma prática pedagógica conscientizadora está justamente nesse cinismo generalizado que funciona como corruptor das populações.
Penso ser possível também identificar a presença da razão cínica no comportamento das massas. Claro, de maneira irrefletida. O que me deixa mais estarrecido e perplexo é a sua cegueira e conivência com os opressores. Gostam de aplaudir e cultuar os tiranos. Sofrem fome, discriminação, marginalidade; entretanto, ao menor convite para inaugurações de monumentos, comícios e pseudo-festas, lá estão em multidões, para aplaudir os chefes. Pior ainda, estão sempre dispostas para apoiar as ditaduras e todo tipo de autoritarismo. Sua dispersão adere à ordem do mais forte. Em momentos especiais da história da humanidade as massas sempre consentiram o assassinato de grandes lideranças potencialmente libertadoras, como Jesus Cristo, Gandhi etc. E ainda hoje continuam dispostas para o mesmo tipo de crime. São adeptas do coitadismo e ao mesmo tempo dispostas a apoiar os interesses dos tiranos. Dissimuladas e violentas. Isto esconde o reflexo da razão cínica inerente ao poder autoritário.
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*In Filosofia Popular, 2009, p. 126-130, de Marcelo B. Oliveira